11 Março 2022
É hora de Francisco falar a verdade sobre o ataque assassino à Ucrânia. É hora de falar tão claramente sobre o belicismo de Putin quanto sobre as premissas e consequências desastrosas do neoliberalismo. É hora de chamar as coisas pelo seu nome. Esta é a guerra de Putin e ela é má.
Publicamos aqui o editorial do jornal National Catholic Reporter, 10-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A invasão russa da Ucrânia é a primeira guerra na Europa do século XXI. Como tal, ela levanta desafios únicos para o mundo. E o papa, a voz de autoridade moral mais universalmente reconhecida no mundo, deve encontrar a sua voz e calibrá-la para enfrentar esses desafios.
O primeiro fato que chama a atenção é que o agressor também é uma potência nuclear. Quaisquer passos que aumentem a escalada da guerra devem ser ponderados contra a possibilidade de que tal escalada possa atrair o presidente russo, Vladimir Putin, a ordenar o uso de armas nucleares. Essa linha não é cruzada desde 1945 e não deve ser cruzada nunca mais.
A analista da situação russa Fiona Hill alertou que os mísseis nucleares hipersônicos da Rússia são uma ameaça real. O papa precisa falar, e falar claramente, para estigmatizar qualquer recurso até mesmo a armas nucleares táticas.
A ascensão do etnonacionalismo desafiou a visão de uma Europa pacífica e unificada pela qual o Vaticano trabalha há tanto tempo. O presidente húngaro, Viktor Orban, é um bandido, mas não invadiu seus vizinhos. O Brexit foi estúpido, não assassino. A violência do ataque à Ucrânia torna ainda mais necessária a voz moral do papa.
Este é um dos primeiros conflitos em que a onipresença dos dispositivos portáteis resultou na documentação em tempo real das atrocidades que estão sendo cometidas. Uma coisa era ler sobre os assassinatos em Srebrenica ou sobre o genocídio em Ruanda. Agora, todos os dias, vídeos de bombas russas atingindo edifícios residenciais nos subúrbios de Kiev e de Kharkiv chegam às televisões de todo o mundo.
O Santo Padre precisa dar voz às pessoas que sofrem na Ucrânia, ao sentimento de solidariedade e de raiva que todas as pessoas decentes sentem quando confrontadas com tais atrocidades.
Sabemos que o Papa Francisco é capaz de articular com clareza uma visão moral. Ao longo de seus quase nove anos de papado, ele lamentou uma série de conflitos em todo o mundo e muitas vezes disse que estamos vivendo uma “terceira guerra mundial em pedaços”. O papa também criticou duramente governos individuais, incluindo os de Mianmar, Síria e Emirados Árabes Unidos.
Francisco também tem sido o único entre os líderes mundiais – e entre os bispos católicos – em relação ao nível de paixão e de especificidade que ele traz para a sua denúncia dos efeitos maléficos do neoliberalismo e de seus maus filhos, a desigualdade de renda e a degradação ambiental. As críticas incisivas do Santo Padre entraram no léxico moral de todos nós: “cultura do descarte”, “globalização da indiferença” e “economia da exclusão” são agora usadas por teólogos e eticistas em todo o mundo.
Portanto, não é de se surpreender que alguns observadores vaticanos tenham ficado intrigados com o fato de que a voz de Francisco sobre a Ucrânia tem sido mais ambivalente, menos estridente. Ele foi à embaixada russa junto à Santa Sé no dia em que a guerra eclodiu, um gesto poderoso, sem dúvida, mas a visita não foi acompanhada por nenhum tipo de denúncia pessoal da agressão.
O secretário de Estado vaticano, cardeal Pietro Parolin, ecoou de fato um dos pontos de discussão de Putin em um apelo de paz gravado em vídeo e divulgado no dia 24 de fevereiro, dizendo: “Este apelo adquire uma urgência dramática após o início das operações militares russas em território ucraniano”. Pelo menos no dia 6 de março, o papa foi mais preciso quando disse, durante seu discurso semanal do Ângelus: “Rios de sangue e de lágrimas correm na Ucrânia. Não se trata apenas de uma operação militar, mas de guerra, que semeia morte, destruição e miséria”.
O papa também anunciou que estava enviando dois cardeais para a região, Konrad Krajewski, esmoleiro papal, e Michael Czerny, prefeito interino do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral. Os dois estarão focados em abordar o desastre humanitário que é uma consequência imediata da guerra.
É claro que a Igreja deve estar na vanguarda dos esforços para aliviar o sofrimento de quem está fugindo da Ucrânia. E ninguém quer ver um papa pedindo qualquer tipo de guerra santa. O emaranhado do cristianismo com o nacionalismo é quase sempre feio e lamentável.
Também notamos que esse papa foi mais longe ao redirecionar o ensino da Igreja rumo à não violência, levantando questões sobre a aplicabilidade contínua da teoria da guerra justa.
Admitimos, também, que não conhecemos a extensão dos esforços do Vaticano para afetar uma resolução diplomática da crise. O Vaticano se ofereceu como mediador do conflito e pediu a criação de corredores humanitários.
Mas ninguém na Santa Sé foi tão longe quanto o arcebispo Stanislaw Gądecki, presidente da Conferência Episcopal Polonesa, que denunciou inequivocamente a invasão. “Chegará a hora de resolver esses crimes, inclusive perante os tribunais internacionais”, escreveu Gądecki em uma carta do dia 2 de março ao Patriarca Kirill, chefe da Igreja Ortodoxa Russa. “No entanto, mesmo que alguém consiga evitar essa justiça humana, há um tribunal que não pode ser evitado”.
Com base nas evidências dos últimos anos, qualquer esperança de que o patriarca russo possa se levantar contra Putin ou mesmo tentar servir como um mediador honesto é infundada. O adjetivo que circula pelo Vaticano é “delirante”. O Patriarca Kirill não passa de um peão de Putin, e não há razão para pensar que isso mudará.
O que quer que esteja acontecendo nos bastidores, é hora de Francisco falar a verdade sobre o ataque assassino à Ucrânia. É hora de falar tão claramente sobre o belicismo de Putin quanto sobre as premissas e consequências desastrosas do neoliberalismo. É hora de chamar as coisas pelo seu nome. Esta é a guerra de Putin e ela é má.
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É hora de o Papa Francisco se pronunciar sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU