26 Janeiro 2021
Uma década atrás, revolta, esperança e sonhos de um futuro melhor varreram as ruas da capital egípcia. Hoje não há mais nada além de memórias desbotadas, opina Farida Layl*, jornalista, em artigo publicado por Deutsche Welle, 25-01-2021.
* Nota da Deutsche Welle: Para proteger a identidade da autora, foi usado um pseudônimo. O texto reflete a opinião pessoal da autora, e não necessariamente da DW.
Eis o artigo.
No dia em que o ex-presidente egípcio Hosni Mubarak deixou o cargo, em fevereiro de 2011, eu fui embora da Praça Tahrir tarde da noite, enquanto as comemorações continuavam. Fui de micro-ônibus para casa. O motorista queria aumentar o preço da passagem, explorando os passageiros que viajavam àquela hora.
A euforia era palpável. Os passageiros pediram ao motorista que não aumentasse a tarifa. Eles defendiam um novo Egito sem avareza e sem favoritismo; um Egito onde a justiça prevalecesse. O motorista obedeceu, e nós não pagamos a mais. Eu também acreditei que a esperança nascera naquele dia. Eu sonhava em sair da jaula da corrupção. A Primavera Árabe havia chegado – mas não durou muito.
Em 2013, num dia quente de verão no Cairo, Abdel Fattah el-Sisi – então ministro da Defesa – apareceu na TV pedindo aos egípcios que tomassem as ruas e o incumbissem de lutar contra a potencial violência. Sisi se referia ao governo de Mohammed Morsi e sua Irmandade Muçulmana. Todos estavam vidrados em seus aparelhos televisivos, ouvindo o general. Era a calmaria antes da tempestade.
Como mulher que acredita na liberdade individual e como jornalista que acredita na liberdade de expressão, eu não apoiava o governo da Irmandade Muçulmana. Eles restringiam nossas liberdades e empurravam o país para o extremismo. As palavras de Sisi foram as precursoras do regime militar.
Alguns meses depois, passei por um posto de controle a pé com meu filho. O oficial me revistou completamente. Meu filho olhou para o policial com um sorriso amedrontado e perguntou: "O que você está procurando? Uma bomba?"
Era apenas a imaginação do meu filho. Eles estavam interessados em outras coisas em vez de bombas. Era uma câmera na minha bolsa. O policial me questionou sobre a câmera. Ele examinou as fotos nela. E então me lançou um olhar sarcástico e me deixou ir para casa.
A cena, que durou vários minutos, me aterrorizou. Eu imaginei todos os possíveis cenários que alguns de meus colegas haviam vivido, muitos dos quais acabaram presos. Um deles foi colocado em um micro-ônibus, espancado e levado para interrogatório. Outro foi detido enquanto fazia seu trabalho de fotojornalista. Ainda assim, essa situação não é nada comparada aos muitos casos de desaparecimentos forçados, tortura e prisão.
Eventos como esse voltaram a se repetir recentemente. A polícia verifica os telefones das pessoas nas ruas. Eles conferem suas redes sociais, fotos privadas e contatos, em busca de qualquer indicação de dissidência. Pessoas vão para a prisão por uma postagem no Facebook, um vídeo no TikTok ou uma camiseta com as palavras "Sem tortura". O governo regulamenta as notícias que deseja ler por meio de mensagens de texto aos jornalistas. O jornalismo sério está morto. No Egito de Sisi, a vida em si foi fortemente censurada, e cada egípcio é uma presa em potencial.
Em cada conversa com amigos que ainda moram no Egito, eu pergunto: "Como está o Egito?"
Essa pergunta sempre desencadeia respostas sentimentais. Nada é como antes. A política é mais uma vez um tabu. Parece que o Egito está sofrendo de uma depressão coletiva. A maioria dos egípcios não tem nada pelo que ansiar. Para mim, a resposta mais difícil é a de que o Egito está muito pior agora do que antes da revolução.
Cada traço da revolução foi extirpado. A famosa Praça Tahrir não é mais o símbolo de antes. Qualquer memória visual de nossa luta foi apagada. Na narrativa do Estado, a revolução de 2011 é a origem de todo o mal: somos traidores e criminosos. Eles estão apagando e reescrevendo a história. Quanto a nós, tudo que nos resta são nossas memórias. Não podemos esquecer.
O 10º aniversário dos protestos é uma dolorosa lembrança do nosso fracasso. Nenhum dos objetivos que perseguimos foi concretizado: nada de pão, liberdade ou justiça social. Em vez disso, vivemos com austeridade, opressão e injustiça.
Ao sair do país, fui forçada a deixar uma parte de mim para trás. Deixei o Egito angustiada, carregando a minha própria derrota e a derrota de todos nós dentro de mim. Mas eu sou uma das mais sortudas. Os azarados estão mortos ou na prisão.
Alaa Abdel-Fattah, o ativista preso, foi quem nos melhor descreveu ao escrever: "Sou o fantasma da primavera passada." Isso foi em março de 2019, após sua libertação da prisão, onde havia passado os últimos cinco anos. Seis meses depois, ele foi preso e encarcerado novamente.
Eu não tinha mais sonhos quando parti. Nenhuma ilusão de uma pátria estável, ou de poder trabalhar como jornalista, ou de viver sob um Estado de direito que se aplica a todos. A crítica não é tolerada; a sátira é um crime, e ter uma opinião é um pecado.
O Egito agora é sinônimo de desesperança. A memória do que poderia ter sido está desaparecendo e, sim, Abel-Fattah acertou em cheio: somos fantasmas de uma primavera passada.
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Dez anos após Primavera Árabe, Egito é sinônimo de desesperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU