28 Fevereiro 2020
Em 12 de março de 1977, o padre jesuíta Rutilio Grande García foi assassinado, aos 49 anos de idade, no setor hoje conhecido como “As Três Cruzes” na estrada que leva à cidade de El Paisnal.
Enquanto dirigia seu carro Volkswagen Safari branco, juntamente com Manuel Solórzano, 70, e Nelson Rutilio Lemus, 16, uma unidade da Guarda Nacional lhes fez uma emboscada, metralhando-os na estrada; seus corpos apresentavam muitos furos de balas de calibres diferentes.
O trabalho do padre Rutilio Grande caracterizou-se por defender os mais despossuídos e denunciar os abusos cometidos pelas autoridades desde sua paróquia de Aguilares, no departamento de San Salvador. O padre Grande criou as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), causando reação adversa dos proprietários de terras da região, que o qualificaram como agitador comunista. O padre Rutilio Grande é considerado o primeiro mártir da Igreja salvadorenha.
Na cidade de Los Angeles, Califórnia, pudemos entrevistar Julio Sánchez – que concordou em usar seu nome real –, um emigrante salvadorenho que era membro do GN e ex-membro do S2 (Seção de Inteligência) do mesmo corpo repressivo desde meados da década de 70. Julio concordou em falar sobre sua participação no assassinato do padre Rutilio Grande e seus dois companheiros.
A entrevista é de Carlos Santos, publicada por Contrapunto, originalmente em 20-05-2015 e republicada em 22-02-2020, pelo reconhecimento do martírio do padre Rutilio Grande. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em uma visita à cidade de Los Angeles, conheci Julio Sánchez, por sorte. Alguns amigos me convidaram para um casamento e Julio estava bêbado e não parou de chorar por sua participação no crime do padre Rutilio Grande. Fiquei muito impressionado com as informações verdadeiras com que ele lidava sobre o assassinato. Estabeleci um vínculo amigável com Julio Sánchez para investigar sua participação no referido crime.
Ao retornar a El Salvador, pude ver que Julio havia participado da guarda nacional e pertencido aos esquadrões da morte.
A entrevista foi realizada dois anos após a nossa primeira reunião, porque Julio começou a se deteriorar fisicamente. Naquele momento ele foi diagnosticado com a doença de Parkinson, além de sofrer de diabetes e ter sofrido um derrame que paralisou metade do seu corpo.
Julio defendeu que buscava relatar os fatos como eram, para mostrar que ele não era unicamente culpado e, assim, encontrar algum alívio para sua alma atormentada, como ele mesmo confessou.
Carro onde estavam padre Rutilio Grande, Manuel Solórzano e Nelson Rutilio Lemus
— Eu vou falar pela primeira vez para que as pessoas saibam como foram as coisas – me afirmou Sánchez com uma pitada de tristeza.
— De onde você é?
— Oratório de Concepción, do departamento de Cuscatlán – responde laconicamente.
Precisamente neste local, os habitantes que sobreviveram à guerra se lembram de Julio Sánchez como membro dos Esquadrões da Morte, desalmado, que perseguia e assassinava sem piedade os designados como comunas. Várias famílias inteiras foram mortas e seus corpos foram exibidos publicamente por membros da guarda nacional, na unidade comandada por Julio Sánchez, disseram várias testemunhas.
— Você participou diretamente do assassinato do padre Rutilio Grande e de seus dois companheiros? – pergunto-lhe bruscamente, para ver se ele realmente estava na unidade que cometeu o assassinato.
— Aqui está meu cartão da Guarda Nacional. Eu cheguei (na GN) aos 17 anos, nasci em 1957, na cidade de Suchitoto – responde fugindo da pergunta.
— O que aconteceu naquele dia 12 de março de 1977, quando eles emboscaram o padre Rutilio Grande?
— Foram ordens que recebemos diretamente do diretor da Guarda Nacional (como diretor-geral da GN de 1975 a 1978, trabalhou o general Ramón Alfredo Alvarenga), fomos oito membros da guarda selecionados. Eu não estava encarregado da operação, acho que éramos seis ou oito (membros da guarda) que foram selecionados para cumprir a missão.
— Eles sabiam quem iam matar? – interrogo, procurando nos olhos uma resposta sincera. Julio move insistentemente as mãos e a cabeça, devido à doença de Parkinson.
— Nos deram a instrução de eliminar o padre, porque ele era comunista, criava um levante entre os camponeses e falava mal do governo – conclui agitado.
Em 13 de fevereiro de 1977, o padre Rutilio Grande pregou um sermão que passou a ser chamado de "sermão de Apopa", denunciando a expulsão do padre Bernal, pelo governo salvadorenho. O discurso da dizia assim:
“Queridos irmãos e amigos, compreendo que muito em breve a Bíblia e o Evangelho não poderão atravessar as fronteiras. Somente as capas nos alcançarão, pois todas as páginas são subversivas contra o pecado, se entende...? Portanto, se Jesus cruzar a fronteira perto de Chalatenango, eles não o deixarão entrar. Eles acusariam o Deus-Homem de agitador, de um estrangeiro judeu, que confunde o povo com ideias exóticas e estrangeiras, ideias contra a democracia, isto é, contra minorias. Ideias contra Deus, porque é um clã de Caim. Irmãos, não há dúvida de que o crucificariam novamente. E eles proclamaram”.
— Disseram a eles que matariam um padre – reitero a pergunta.
— Já sabíamos quem era o alvo, lembro que fomos várias vezes verificar o local (onde emboscariam o padre), seguimos várias vezes, dias antes de termos escapado porque ele não apareceu e não conseguimos realizar a operação.
— Como foi a emboscada? Onde esperavam por ele? Vocês estavam em roupas civis ou uniformes?
— Estávamos vestidos com roupas de civis, mas alguns quilômetros antes estavam elementos uniformizados da Guarda, eles nos informaram que o carro estava indo em nossa direção, esperamos na rua e, quando apareceu, abrimos fogo, todos abrimos fogo ao mesmo tempo, de diferentes pontos da rua, vi que o carro se afastava e continuávamos atirando – Julio faz uma pausa.
Padre Rutilio Grande, Manuel Solórzano e Nelson Rutilio Lemus
— No carro havia uma criança, um idoso e o padre Rutilio Grande. Os três morreram naquele dia – digo a ele mostrando um recorte de jornal, com a fotografia do carro da Volkswagen, metralhada na beira de uma estrada de terra.
— Eu recebi ordens, eles me disseram que ele era um mau padre, comunista... e odeio comunistas – respondeu secamente.
— Depois de atirar neles, eles se aproximaram para ver os corpos do padre e dos companheiros para executá-los?
— Tínhamos ordens para não os deixar vivos, nos aproximamos e atiramos neles.
— Eles deram o golpe de misericórdia? – pergunto atônito pela frieza com que ele relata o assassinato.
— Repito, foram ordens para não os deixar vivos. Eu não sabia que o padre estava acompanhado, principalmente de um homem idoso e uma criança. Mas mesmo que eu soubesse, tinha que cumprir as ordens que eles nos deram – concluiu irritado.
— O que aconteceu com todos os membros que participaram do assassinato do padre Rutilio Grande?
— Alguns morreram na guerra, outros deixaram o país, não por medo, porque não tínhamos medo de ninguém. Se estou falando sobre isso agora, é porque não sei como foram as coisas e me sinto muito doente, sempre se pensou que somos os bandidos e apenas recebíamos ordens.
— O que teria acontecido se tivessem se recusado a cumprir essas ordens? – interrompo Julio.
— Não sei, realmente não sei.
— Após o assassinato, o que fizeram? Para onde foram?
— Fomos diretamente à Guarda Nacional de San Salvador para fazer um relatório, lembro que eles nos deram três dias de folga, quando voltamos eles nos alocaram em outras unidades, e comecei a trabalhar na S2.
Dom Oscar Arnulfo Romero, ao saber dos assassinatos, foi ao templo onde os três corpos descansavam e celebrou a missa. Na manhã do dia seguinte, depois de se reunir com os padres e conselheiros, Romero anunciou que não participaria de nenhuma ocasião ou atividade governamental ou de qualquer reunião com o presidente, que eram atividades tradicionais do posto, até a morte ser investigada.
Como nenhuma investigação foi conduzida, dom Romero não compareceu a nenhuma cerimônia de estado durante seus três anos como arcebispo.
Romero era amigo pessoal do padre Rutilio Grande, que também era seu confessor.
Em entrevista que dom Oscar Romero concedeu em 1979 ao jornalista Juan Arias, na cidade de Puebla, México, Romero confessou que se considerava um convertido. “Ele me disse que estava do lado dos ricos, do poder, morando em um palácio, até que um dia foi assassinado um padre que considerava um santo: Rutilio Grande. Ele foi morto enquanto explicava o catecismo. Pensa-se que o acusavam de ser comunista”, disse dom Romero a Juan Arias.
A morte de Rutilio Grande foi a gota que transbordou o copo, monsenhor Romero entendeu que ele estava do lado errado. Ele deixou o palácio e se entregou à causa dos perseguidos para defender os direitos humanos.
Então, em 24 de março de 1980, Romero seria assassinado com um tiro certeiro no coração, um franco-atirador que trabalhava para os esquadrões da morte tirou sua vida, em um crime como o do padre Rutilio Grande, cujo assassinato ainda não havia sido esclarecido.
— Eles nunca te disseram por que mataram o padre, qual o motivo?
— É que muito se falava contra o governo, e lembro que os comunistas sequestraram e mataram um homem rico, não lembro o nome dele, mas ele trabalhou com o governo e acho que esse foi um dos motivos; os ricos estavam com raiva daquele assassinato.
Em 26 de fevereiro de 1977, foi encontrado o corpo do empresário Roberto Poma, funcionário do governo salvadorenho e sequestrado em janeiro de 1977 pelo Exército Revolucionário do Povo - ERP, uma organização radical de esquerda.
Em 20 de fevereiro do mesmo ano, a oposição política denunciou a fraude nas eleições presidenciais, o governo respondeu com repressão contra os manifestantes: “O povo se concentrou na Plaza Libertad, no centro de San Salvador, para protestar contra a fraude e exigir que o resultado fosse respeitado. Em 28 de fevereiro, os militares cercaram a praça e reprimiram a concentração. Havia pelo menos sessenta pessoas mortas”, lembra um sobrevivente.
— Faz muitos anos desde aquele dia fatídico, esse dia em que vocês mataram um padre desarmado que estava saindo com um velho e uma criança, você já se arrependeu? Você se perguntou o que teria acontecido se tivesse desobedecido às ordens?
— Sim, muitas vezes me arrependi, mas só cumpri as ordens, e agora é tarde demais para me arrepender – Julio se levanta da mesa com dificuldade, me diz que não quer mais conversar, que podemos continuar mais tarde, pede licença dizendo que se sente cansado.
Depois daquela reunião que durou apenas uma hora, foi quase impossível fazer com que Julio Sánchez continuasse com a entrevista. Em março desse ano, ele concordou em terminá-la em um quarto de hospital onde se encontrava agonizando. Um dia antes de embarcar na viagem à cidade de Los Angeles para concluir a entrevista, fui informado de que Julio Sánchez havia morrido de ataque cardíaco, a sua condição física e mental havia se deteriorado.
Devido ao diabetes, teve as duas pernas e um braço amputados, da cama do hospital onde ficou por 4 meses, Julio implorou gritando para que o matassem.
A morte de Julio Sánchez, um dos assassinos confessos do padre Rutilio Grande, foi amarga; mas a antessala é muito pior. Eu pude investigar que sua vida em Los Angeles era cheia de turbulências: álcool, drogas e uma vida familiar cheia de violência. Diariamente, ele era perseguido pelo remorso de suas ações, o próprio fato de contar a estranhos, quando estava bêbado, sua participação no assassinato do padre Grande, era sua busca para eximir a culpa, afogar as chamas daquele inferno interior que ganhou em vida por ter matado um simples padre, um padre cujo único crime era viver ao lado do seu povo.
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Testemunho de um dos assassinos do padre Rutilio Grande, 'nos ordenaram eliminar o padre, porque ele era comunista, criava um levante entre os camponeses e falava mal do governo' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU