04 Dezembro 2014
A caridade fundamentada na assimetria entre aquele que doa e aquele que recebe teve o seu tempo. Alain Caillé, sociólogo, analisa a dinâmica da parceria como fator de equilíbrio nas nossas sociedades.
A reportagem é de Laurent Grzybowski, publicada no sítio da revista La Vie, 02-12-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Professor emérito de sociologia da Universidade Paris-X-Nanterre, Alain Caillé, economista de formação, publicou agora La Révolution du don. Le management repensé à la lumière de l'anthropologie [A revolução do dom. A administração repensada à luz da antropologia] (Ed. Seuil).
A obra se inspira no pensamento de Marcel Mauss (1872-1950), considerado como o pai da antropologia francesa, autor do famoso Essai sur le don (Ensaio sobre o dom, 1925). A sua tese pode ser resumida assim: o dom obrigatoriamente é seguido por um contra-dom, segundo códigos pré-estabelecidos.
E é isso que permite não apenas a eficácia econômica, mas também a recriação permanente do vínculo social.
Eis a entrevista.
O primeiro poder que temos não é, talvez, o de doar?
Sim. O Abbé Pierre fundou o movimento Emaús com um desesperado que queria se suicidar. Ele escreveu nas suas memórias: "De repente, diante desse homem, eu fiz o contrário da caridade. Em vez de lhe dizer: "Vamos, eu vou lhe ajudar, vou lhe doar alguma coisa', eu disse a ele: 'Escute, de todos os modos, você não tem mais nada a perder, então venha me ajudar'. Essa história está no cerne do mecanismo universal do dom. O verdadeiro presente não é doar. É oferecer ao outro a possibilidade de doar.
Tanto na Igreja quanto na sociedade, a ideia de uma parceria com os mais pobres, para romper com o modelo de caridade, está ganhando espaço. O que você diz a respeito?
O fato de que seja preciso passar da caridade para outra dinâmica do dom me parece absolutamente evidente. O registo tradicional da caridade corresponde a uma visão assimétrica do dom, muito vertical. Há um dom primeiro de Deus, o incondicional absoluto, um dom tão enorme que ninguém pode igualá-lo. Essa ideia de assimetria do dom primeiro cria, a meu ver, a posição hierárquica da Igreja, com uma série de dons descendentes. É um dom que pode salvar aqueles que o recebem no registro da necessidade, mas os aniquila no registro do desejo. Agora, cada vez mais autores, filósofos ou sociólogos concordam com a seguinte tese: o essencial do desejo humano deve ser reconhecido. Não buscamos apenas satisfazer as nossas necessidades, queremos ser reconhecidos. Além disso, ser doador significa querer – muitas vezes inconscientemente – ser reconhecido como capaz de doar alguma coisa.
Para você, o dom seria apenas uma troca?
As organizações que funcionam bem, quer se trate de empresas, associações, administrações ou equipes esportivas, são aquelas que sabem respeitar a dinâmica dos quatro tempos do dom e do contra-dom: "pedir-dar-receber-fazer" [demander-donner-recevoir-rendre]. Enquanto aquelas que funcionam mal caem no ciclo oposto do ''ignorar-tomar-recusar-manter" [ignorer-prendre-refuser-garder]. O bom dirigente ou o bom animador sabe reconhecer no ciclo do dom e naquele que a ele se dedicam a verdadeira fonte da eficiência. Aquela que regenera dia após dia o círculo virtuoso da cooperação e do trabalho levado a sério. O mau gestor, em busca de uma eficácia ou de uma rentabilidade que ele espera se tornar maior a cada dia, acaba matando a galinha dos ovos de ouro e encerra todo o mundo no círculo vicioso do desencorajamento e do cada um por si. Esse processo também vale para a vida cotidiana, nas nossas relações sociais, de amizade ou familiares. Lá, como em toda parte, pode haver um círculo virtuoso, simbólico (que une), ou um círculo diabólico (que divide). O círculo simbólico é o da cooperação: cada um é capaz de dirigir um pedido de ajuda, mas também de dar e de receber.
Como bem equilibrar aquilo que você chama de os quatro cursos do dom e do contra-dom?
O importante é saber realizar cada uma dessas quatro operações no momento certo e da maneira certa. Por exemplo, não ser alguém que pede demais. Em uma associação, se alguém passa o seu tempo pedindo ajuda, não funciona. Isso desequilibra tudo. O mesmo acontece se alguém se apresenta como doador universal, quer fazer tudo sozinho, ser o único que dá... Uma associação é fundamentalmente a união de doadores, por isso não pode ser uma luta pelo dom, para ser aquele que dá mais e melhor. "Eu sou o mais generoso, o mais útil, o mais eficaz, o que tem mais o espírito do dom." Perigo! Porque, se alguém quer dar muito, desequilibra o coletivo.
Você escreve que "o dom é um operador político". O que quer dizer com isso?
Desde o início dos tempos, o dom transforma os inimigos em aliados. Ele cria devedores, com toda a ambivalência que ela produz, porque há uma obrigação de fazer. E o que o antropólogo Marcel Mauss mostrou muito bem no Essai sur le don é essa ambiguidade do dom. Um dom que não pode ser feito, transforma a pessoa que o recebeu em obrigada, em devedora, e a torna inferior àquele que o doou. Então, em certo sentido, o dom, se se torna assimétrico, torna-se um instrumento de poder e de dominação.
Devemos concluir que o dom é sempre interessado?
O primeiro movente do dom é o interesse por si mesmo. Isso corresponde a uma pulsão de sobreviver. Vê-se isso desde o nascimento, desde os primeiros dias. Mas há também um interesse pelos outros, não é contraditório. Em todos os dons que realizamos, há uma parte de obrigação social e uma parte de liberdade criativa. Por exemplo, no Natal ou um aniversário, certamente somos obrigados a oferecer um presente àqueles que amamos. Mas esses presentes podem ser mais ou menos elaborados, podem ser oferecidos com mais ou menos talento ou graça. Nesse âmbito, cada um é levado a provar a sua criatividade. Isso significa que, no quadro da obrigação social, há espaço para a liberdade e para a inventividade. O que importa, no fim, não é apenas a natureza do dom, é também a maneira pela qual o fazemos.
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''O verdadeiro dom é oferecer ao outro a possibilidade de doar.'' Entrevista com Alain Caillé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU