02 Mai 2022
A guerra desencadeada pela invasão russa à Ucrânia, em 24 de fevereiro, gerou ainda mais instabilidade em relação aos tempos vindouros, já sob o guarda-chuva da incerteza provocada pela emergência climática.
A reportagem é de Azahara Palomeque, publicada por La Marea-Climática, 25-04-2022. A tradução é do Cepat.
A luta não é travada apenas em território ucraniano. Em meados de março, assistimos a um aumento vertiginoso dos preços da energia, devido ao custo do gás e a uma série de sanções econômicas impostas pela União Europeia e os Estados Unidos à Rússia, às quais esta potência respondeu com outras. A divisão do mundo em dois blocos cada vez mais compactos agravou uma crise energética que, na Europa em especial, já era notável.
Antes do início do conflito, as reservas de gás estavam em mínimos históricos em razão da superação dos picos de produção de petróleo e gás fóssil e por causa de um consumo maior no verão. No início do conflito, a Comissão Europeia respondeu com algumas iniciativas que buscam diversificar as fontes de energia e reduzir a dependência do gás russo em dois terços até ao final de 2022, bem como obrigar os diferentes países a armazenarem 90% da sua capacidade frente ao próximo inverno. Desafios, ambos, muito complicados de ser alcançados.
Segundo o engenheiro Alfons Pérez, pesquisador do Observatório da Dívida na Globalização (ODG), o primeiro objetivo é inviável: “Trata-se de um comunicado para acalmar os mercados”, aponta. Atualmente, a Rússia fornece 40% do gás utilizado na União Europeia, uma dependência que varia de país para país. Na Alemanha, é de 50%, por exemplo, enquanto na Espanha é de apenas 9%, pois o obtém majoritariamente da Argélia, por gasoduto, e dos Estados Unidos, através dos gaseiros na forma de gás natural liquefeito (GNL).
A ligação com o Kremlin levou especialistas em política energética, como Antonio Turiel, doutor em Física Teórica e matemático, a dizer que “cortar relações com a Rússia é suicídio”. Sim, segundo Pérez, seria possível dispensar completamente esse combustível russo em um prazo de oito anos, outra das medidas anunciadas pela Comissão, embora para isso “seriam necessárias mudanças estruturais”, como apostar no decrescimento em conjunto com as energias renováveis.
Por outro lado, os perigos dessa dependência russa já haviam sido detalhados no relatório sobre a Estratégia Europeia para a Segurança Energética de 28 de maio de 2014, que buscava expandir as fontes de energia e se comprometer com uma “economia competitiva de baixo carbono, que reduza o uso de combustíveis fósseis importados” por causa, em parte, dos “acontecimentos (…) na Ucrânia”. Ou seja, aos protestos da Euromaidan que foram seguidos pela crise da Crimeia. Mas, então, não diminuíram. Ao contrário, as importações europeias de produtos petrolíferos russos se expandiram e foi construído o gasoduto Nord Stream 2, agora paralisado pela guerra.
A situação que vivemos é consequência de uma cadeia de fatores que não receberam atenção suficiente em seu momento. Atualmente, as políticas de emergência adotadas também não parecem ser suficientes e já se fala abertamente de um menor uso de gás, conforme ressaltou Josep Borrell ao recomendar aos cidadãos que diminuam a calefação. Esta proposta, duramente criticada, enquadra-se em um contexto de escassez que raramente é exposto com clareza.
De fato, em um estudo recente, o think tank belga Bruegel afirmava que se a Europa quisesse se livrar completamente das importações russas, precisaria reduzir seu consumo de gás de 10 a 15%, ao mesmo tempo em que alertava que a demanda está sujeita a variações meteorológicas – um inverno frio tornaria quase impossível alcançar esses números – e não descartava a possibilidade de forçar o racionamento. Caso fosse mantida a compra do gás de Putin, o mercado sofreria grande volatilidade, com altas e quedas bruscas de preços em razão da capacidade da Gazprom, a multinacional estatal russa, de aumentar ou diminuir a oferta por razões geopolíticas.
Também não seria factível transformar a Espanha na “potência do gás” conforme mencionado por autoridades europeias como Ursula von der Leyen, em uma mensagem replicada pelo próprio primeiro-ministro, Pedro Sánchez. É verdade que o nosso país está bem posicionado para satisfazer a demanda interna, sobretudo porque o seu principal fornecedor de gás é a Argélia, com 43% do total, e também porque possui um terço das centrais de regaseificação da União para o processamento de GNL, mas não dispõe de infraestruturas suficientes para transportar grandes quantidades de combustível fóssil para o resto da Europa.
Os gasodutos ativos na fronteira com a França podem transportar até 7,3 bilhões de metros cúbicos, uma parte mínima dos 150 bilhões que são recebidos da Rússia, e o MidCat, um gasoduto projetado cuja construção foi abandonada pelo governo francês antes da guerra, só poderia conduzir 8 bilhões a mais. Como se isso não bastasse, Alfons Pérez alerta para outras variáveis que não estão sendo consideradas: a capacidade exportadora da Argélia e os conflitos locais em torno da ampliação da extração, o preço desse transporte e a oposição ao MidCat que existe na Catalunha, território por onde passaria.
Como é possível comprovar, a encruzilhada energética da Europa é preocupante e não passa pelas soluções institucionais que estão sendo consideradas. É por isso que no momento em que escrevo estas linhas, o gás russo – muito mais barato que o gás estadunidense – continua fluindo para o território da União Europeia e os bancos que o financiam não foram objeto de sanções.
Sanções econômicas contra a Rússia, represálias do Kremlin, bem como a guerra na Ucrânia fizeram com que o custo dos combustíveis fósseis disparasse a níveis sem precedentes e, com isso, a inflação. O barril tipo Brent chegou a 130 dólares, sendo que estava em 78 dólares no final de 2021, resultando em lucros consideráveis para as petroleiras ocidentais (Shell e Exxon Mobil são algumas das que subiram na bolsa após a invasão).
O gás chegou a ultrapassar os 300 euros por megawatt-hora (MWh), sendo que há um ano custava 27 euros, arrastando consigo a fatura da conta de luz para máximos recordes, fruto do chamado “sistema marginalista”. Esse sistema fixa os preços da eletricidade de acordo com a energia mais cara utilizada para gerá-la, mesmo que represente um percentual mínimo do total, sem levar em consideração outras mais baratas.
A razão pela qual os cidadãos estão assumindo esse gasto doloroso, que também está causando ruína nas pequenas e médias empresas, é uma construção europeia, uma configuração arbitrária que, por isso, pode ser modificada caso exista vontade política. Pedro Sánchez – juntamente com o seu homólogo português, António Costa – já manifestou na Europa a necessidade de modificar um sistema do qual se beneficia diretamente o oligopólio das companhias elétricas, e defendeu a limitação dos preços na Península. No entanto, nenhuma regulamentação concreta foi aprovada até o momento.
Mais difícil é reduzir o preço do petróleo e seus derivados, tanto pela escassez relacionada aos limites biofísicos do planeta – restam cada vez menos reservas rentáveis –, como pelos vaivéns bélicos, que está exaurindo as economias ocidentais até condições inflacionárias não vistas em décadas, e gerando uma série de graves ameaças à sobrevivência, entre as quais uma crise alimentar global sem precedentes.
O fato de as agriculturas modernas dependerem do diesel e o gás para operar máquinas e fabricar fertilizantes as torna incrivelmente vulneráveis às variações no custo. Por outro lado, a Rússia e a Ucrânia fornecem 30% do trigo que circula no mercado mundial. Os dois países exportam mais de um terço dos fertilizantes utilizados pela União Europeia e a Ucrânia, além disso, a metade do milho, incluindo 22% do que é utilizado na Espanha para a alimentação do gado. São transações que, somadas às de outros cereais e óleos, foram suspensas por causa do conflito. Embora a Espanha tenha um abastecimento garantido de alimentos, os países do Magrebe são totalmente dependentes dos cereais russos, fato que tem gerado temores pela estabilidade de uma área crucial para o nosso país, entre outras coisas devido à importação do gás argelino.
É preciso lembrar que o preço dos alimentos já havia aumentado por causa dos efeitos das mudanças climáticas. Um exemplo claro é a seca brasileira que encareceu o café no ano passado. Agora, outra seca, desta vez nos Estados Unidos e na Argentina, grandes produtores agrícolas, colocam contra as cordas a distribuição internacional de girassol, trigo e milho.
Tal escassez aumentará se os governos continuarem ignorando as demandas científicas e cidadãs para conter a crise climática, conforme refletem os últimos dados. Em 2021, novamente foram quebrados recordes de emissões de dióxido de carbono e outros gases do efeito estufa que aquecem o planeta.
Enquanto isso, o presidente estadunidense, Joe Biden, parece ter abandonado completamente suas ambições ambientais, e a União Europeia relaxou as suas em uma série de medidas improvisadas que servem para remendar as rupturas decorrentes do conflito, sem contemplar suas nefastas consequências a médio-longo prazo: uso de terras protegidas para o cultivo, possível revitalização do carvão e das usinas nucleares com o propósito de compensar a previsível falta de gás russo, exploração em massa da irrigação apesar da seca, etc.
A guerra agrava, assim, a sua já insuportável emergência humanitária na forma de mortos e refugiados. Veio para reforçar os maiores defeitos de nossa civilização, para mostrar as fragilidades de um sistema econômico falido, para pressionar o já precário equilíbrio climático. As coisas têm que mudar muito para que possamos garantir uma vida digna, não mais em um futuro distante, mas no presente mais imediato.
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Uma guerra energética, alimentar, ecológica: existencial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU