28 Março 2022
"A ordem que realiza no início do século XXI é, no entanto, aquela do egoísmo, não aquela baseada na igualdade que esteve presente no significado do termo desde o início. Essa tensão já surgiu no passado, na turbulenta história da democracia moderna, e reaparece novamente hoje, de forma dramática, nas sociedades ocidentais", escreve Mario Ricciardi, em artigo publicado por Domani, 24-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na década que segue a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, havia se espalhado a crença de que a democracia estivesse próxima a atingir seu nível máximo de expansão. À família das democracias teriam se juntado, com os países do antigo bloco soviético, também muitos daqueles em desenvolvimento, destinados a se abrir gradualmente não apenas ao comércio internacional, mas também a formas de governo que respeitam os direitos civis e a vontade popular.
A profecia hegeliana do "fim da história" - na releitura que Francis Fukuyama havia proposto, através do filtro de Kojeve - parecia prestes a se concretizar. Como a formulação se presta a ser mal interpretada, vale lembrar que para Fukuyama o "fim da história" não comportava de forma alguma a saída da humanidade do domínio da contingência.
A história entendida como uma "sequência de eventos" não teria cessado, mas teria ocorrido no contexto de um mundo já uniforme no plano das formas de vida e de organização política. Com a afirmação final da democracia liberal sobre o totalitarismo soviético, o mundo inteiro teria atingido o estágio maduro da modernidade.
A hipótese de Fukuyama tinha desde o início causado perplexidade no meio acadêmico, mas é somente nos primeiros anos do novo século que as vozes discordantes começam a se tornar mais numerosas.
Desde então, a tese do fim da história tornou-se cada vez menos plausível à luz de eventos que se revelam bem mais do que um simples encrespamento das águas tranquilas do senso liberal comum articulado por Fukuyama.
Desde o ataque às torres gêmeas de Nova York em 2001, as guerras no Oriente Médio se sucedem, a ascensão da China (que rejeita explicitamente a democracia liberal como modelo político), a crise financeira que traz de volta aos holofotes o problema das desigualdades estruturais geradas pelo capitalismo e, finalmente, a pandemia e a guerra na Ucrânia.
Em vez do triunfo da modernidade imaginado por Fukuyama, se percebem sinais cada vez mais evidentes de uma desarticulação de seus aspectos centrais. Uma insurgência caótica, mas por isso não menos destrutiva, contra a globalização da economia, e um mal-estar generalizado justamente naqueles países que, no esquema de Fukuyama, tinham alcançado primeiro o objetivo, como os Estados Unidos e Reino Unido.
A vitória do Brexit e a eleição de Donald Trump, com tudo o que provocou na política estadunidense, são difíceis de reduzir a meras anomalias num processo linear rumo a uma era de prosperidade e progresso.
Em vez da ordem liberal, o "novo mundo" que se anuncia parece ter os traços pouco tranquilizadores da época da raiva descrita por Pankaj Mishra (The Age of Anger, Allen Lane, Londres 2017) ou da desordem global temida por Helen Thompson (Disorder. Hard Times in the 21th Century, Oxford University Press, Oxford 2022).
Nessa nova perspectiva, muitos estão se fazendo novamente a pergunta que Norberto Bobbio havia se feito, em um clima completamente distinto, antes da queda do Muro de Berlim: que futuro tem a democracia? Na realidade, como mostra o precedente de Bobbio, esta é uma pergunta que não pode ser respondida se não se tenta entender melhor o que foi a democracia ao longo de sua longa história, a partir de sua estreia casual e pouco promissora na Atenas do século VI, e depois da sua afirmação na época moderna.
Vale a pena se perguntar se a crise de hoje não seja também em parte o resultado das tensões internas de um processo que não foi o resultado de um projeto dotado de uma irresistível necessidade (o desdobramento da razão de Hegel, a que havia se inspirado Fukuyama).
Um bom ponto de partida para este exame de consciência são, a meu ver, as reflexões do historiador do pensamento político John Dunn, expostas em Setting the People Free. The Story of Democracy (Atlantic Books, Londres 2005).
Segundo Dunn, a democracia tem, desde o início, uma natureza ambígua, apresenta dois aspectos que não se harmonizam espontaneamente. De um lado, uma forma de governo, que se articula de forma diferente ao longo da história. Do outro lado, um ideal de igualdade, um valor político, caracterizado de modo vago, mas dotado de uma extraordinária pegada sobre a imaginação.
Em sua primeira aparição na Grécia antiga, a democracia como forma de governo é a solução pragmática para um conflito social, que vê contrapostos os grandes e os pequenos proprietários, que sentem sua autonomia ameaçada caso venham a perder o controle de suas propriedades agrícolas.
Atribuir ao povo, reunido em assembleia, o governo da comunidade política era uma forma de controlar esse conflito de efeitos potencialmente devastadores para a ordem social e garantir a cidade contra os perigos opostos da tirania e da anarquia.
O autogoverno sem representação, porém, é um modelo que só pode funcionar em sociedades muito pequenas e homogêneas, como aquela ateniense. É por isso que quando a democracia se apresenta novamente à história mundial, no século XVIII, reencarna-se na forma de um sistema representativo.
Essa é também a natureza da democracia liberal triunfante de que fala Fukuyama. Para Dunn, nesse modelo “o que queremos dizer com democracia não é que nós mesmos nos governamos. Quando falamos ou pensamos em nós mesmos como vivendo em uma democracia, o que temos em mente é algo bastante diferente. Ou seja, que o nosso estado, e o governo que tantas coisas faz para organizar as nossas vidas, tira sua legitimidade de nós, e que nós temos uma razoável possibilidade de conseguir obrigar ambos a continuar a fazer isso”.
Segundo Dunn, a democracia representativa também se afirma porque revela ser a forma de governo que melhor se adequa a acompanhar de forma ordenada o desenvolvimento econômico e um sistema de produção capitalista.
A ordem que realiza no início do século XXI é, no entanto, aquela do egoísmo, não aquela baseada na igualdade que esteve presente no significado do termo desde o início. Essa tensão já surgiu no passado, na turbulenta história da democracia moderna, e reaparece novamente hoje, de forma dramática, nas sociedades ocidentais.
A democracia tem futuro somente se encontrar um novo ponto de equilíbrio entre forma de governo e ideal político, entre a ordem do egoísmo e aquela da igualdade.
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A modernidade não triunfou e a democracia concretizou a ordem do egoísmo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU