Brasil, o país em que o racismo contra indígenas ainda é tolerado

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06 Novembro 2020

"Tenho a impressão de que ainda nem temos a dimensão real do quanto nós, brasileiros, temos atitudes e pensamentos racistas contra nossos povos originários, condição sine qua non para que comecemos a ser ativamente antirracistas", escreve Leonardo Barros Soares, Doutor em Ciência Política pela UFMG e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará.

Eis o artigo.

Publiquei, no dia 27 de novembro de 2019, aqui no site da Revista IHU On-line, um artigo intitulado “o racismo contra os povos indígenas e o mito do índio improdutivo”. Tratava-se de uma reação ao discurso do Procurador de Justiça e Ouvidor do Ministério Público do Pará, Ricardo Albuquerque, realizado no dia anterior e que ganhara imensa repercussão nacional, em que ele afirmara, dentre outras barbaridades, que “esse problema da escravidão aqui no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar, até hoje. O índio preferia morrer do que cavar mina, do que plantar pros portugueses. O índio preferia morrer. Foi por causa disso que eles foram buscar pessoas nas tribos na África, para vir substituir a mão de obra do índio”. O artigo teve boa repercussão e serviu para trazer a lume o relegado debate sobre o racismo contra os povos indígenas.

Pois bem. Quase um ano após o fato e oito adiamentos de seu julgamento, o Conselho Nacional do Ministério Público inocentou, por sete votos a dois, Albuquerque da acusação de racismo. O argumento – por mais estapafúrdio que possa soar – foi o de que o procurador desfruta de “liberdade de cátedra” e que suas falas foram “tiradas de contexto”. Segundo essa linha de raciocínio, eu, que sou professor universitário, sou livre para desfiar preconceitos contra mulheres, negros, povos tradicionais ou qualquer outro grupo historicamente subalternizado. Nós sabemos que não é assim que funciona. Se falo qualquer coisa, em sala de aula, francamente preconceituosa, eu devo ser responsabilizado criminalmente por isso. O Ministério Público, no entanto, entendeu que não, manchou sua história institucional e avalizou as declarações racistas de Albuquerque. Aliás, esse é o ponto desse texto: o racismo contra povos indígenas ainda é – como o caso em tela demonstra de forma exemplar – tolerado por amplas parcelas da população brasileira, aí incluídos seus funcionários públicos de alto escalão.

Lembro de dois casos recentes que merecem uma maior reflexão, não vinculados à gestão pública. Um deles é o do jornalista Fábio Pannunzio, que escreveu em seu Twitter, logo no início da pandemia: "Estou preso em casa desde sexta da semana passada. Estou completando 9 dias de prisão domiciliar. Minha casa está uma bagunça. Moro sozinho. Estou levando vida de índio. Durmo e acordo quando quero, como quando sinto fome. A barba está crescendo. E vc, como está sendo p vc? (sic)". Ao ser questionado por seus seguidores, rebateu “Gente, pelamor (sic). Vida de índio no sentido de ser premido apenas pelo metabolismo. Índios não têm rotina. Não encham o meu saco, por favor, com a sua patrulha malvadinha.” Mais uma vez, aqui aparece, em toda sua força, o estereótipo de que indígenas são seres primitivos, “premidos apenas pelo metabolismo” e, é claro, a ideia de que questionar isso só pode ser obra de uma “patrulha malvadinha”. Reflitamos. No que isso difere, fundamentalmente, da famigerada fala de Willian Waack, “é coisa de preto?”.
Do outro caso tomei conhecimento há poucos dias, ao topar, no YouTube, com um vídeo dos humoristas Rafinha Bastos e Maurício Meirelles, no programa “Achismos” do dia 22 de outubro deste ano. Num dos trechos, trocam piadas sobre os “índios de Caraíva”, que finalmente tiveram a oportunidade de “evoluir” e botar um “pulôver” para se protegerem dos mosquitos. As gargalhadas rolam soltas. Nenhum constrangimento.

É impressionante a persistência de expressões como “programa de índio” e “índio paraguaio” na boca das pessoas localizadas em todo o espectro político, da esquerda à direita. Alguns, quando tentam “imitar” um indígena, fazem pouco caso de sua forma de articular o português e os mais exaltados até batem a mão na boca seguidas vezes, na tentativa de reproduzir um suposto “canto” genérico dos povos originários, para não falarmos das “fantasiasde carnaval, um tópico que, de tão importante, merece um exame à parte. Algumas piadas, referindo-se aos indígenas como primitivos, atrasados, burros ou, ao contrário, malandros, fazem rir até a alguns ditos progressistas. Se algumas expressões preconceituosas utilizadas contra negros e negras já são amplamente condenadas publicamente, nada acontece com quem comete atos racistas dessa ordem contra os povos indígenas. As cartas do “mimimi” e do “politicamente correto” são lançadas, desqualificando quem contra eles se insurja, e todos se esquecem do tema até a próxima polêmica. No Brasil, infelizmente, ainda é tolerável ser racista contra indígenas.

Os dados disponíveis corroboram essa afirmação. O Conselho Indigenista Missionário, que todos os anos publica um relatório amplo das diversas violências cometidas contra os povos indígenas brasileiros, também contabiliza os casos de racismo contra esses grupos. Entre 2003 e 2019 – não há relatórios disponíveis na internet para o período que compreende o governo FHC - é possível verificar que a tendência se mantém independentemente do governo no poder. Seja nos governos Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro, há uma espécie de racismobasal” que perdura ao longo dos anos. A diferença agora é que Bolsonaro é um racista convicto e que não faz questão de esconder seu ódio dos povos originários, o que pode certamente incentivar a que mais pessoas tirem seu preconceito do armário e passem a falar publicamente o que pensam.

Tenho a impressão de que ainda nem temos a dimensão real do quanto nós, brasileiros, temos atitudes e pensamentos racistas contra nossos povos originários, condição sine qua non para que comecemos a ser ativamente antirracistas. A recente absolvição de Albuquerque mostra que o caminho é longo e que é necessário um vigoroso debate público sobre o tema na esfera pública brasileira.
Nosso trabalho, na academia, é o de ressaltar o caráter sistêmico dos diversos racismos que perpassam a sociedade brasileira e somar aos esforços dos povos indígenas em sua luta por um tratamento digno em nosso país.

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