O “sonho e a fraternidade” de São Francisco e do Papa. Artigo de Chiara Frugoni

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07 Outubro 2020

"Francisco sempre tentou recompor em um discurso de paz as desigualdades, os diferentes estilos de vida: sua escolha foi por uma forma inclusiva de viver a religião cristã, um ensinamento mais vivo e vital que nunca em nossos dias. O ensejo é, portanto, nas palavras do Papa Francisco, que 'um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras' se torne realidade", escreve Chiara Frugoni, historiadora italiana, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 06-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Francisco, quando já havia percorrido boa parte do caminho que o teria levado a uma conversão plena e total – já era homem adulto, habituado a confortos e festas: difícil renunciar a isso – vivia como um eremita com as marcas que o faziam ser reconhecido como tal. Um dia, em 1208, enquanto participava de uma missa, ouviu o padre repetir as instruções dadas por Cristo aos discípulos: “No caminho não deveriam levar nem ouro, nem prata, nem sacola nem alforje, nem pão nem cajado, nem duas túnicas...”. Retendo pois em sua memória tudo o que ouvira, tratou de cumprir aquelas palavras. Despojou-se logo do que tinha a mais e desde aquele momento já não usava nem bordão, nem calçado, nem sacola, nem alforje. Fez uma túnica bem desprezível e rústica, abandonou o cinturão e cingiu-se com uma corda: assim, segundo a legenda dos três companheiros, se realizou a mudança de vida do futuro santo. Quis se vestir como um pobre camponês, recusando-se a ser colocado em uma categoria social cercada de estima como aquela dos eremitas. Em uma sociedade altamente hierárquica em que todos tinham um status preciso, Francisco mostrou que queria estar entre aqueles que não tinham nenhum. Ao fazê-lo, recusou a possibilidade de ser identificado como alguém que, por pertencer a um determinado grupo religioso, se voltasse quase por profissão de caridade para uma parte da sociedade em que poderia ostentar um papel privilegiado.

Mesmo que hoje nós vivamos em uma situação histórica totalmente diferente, a forma de agir de Francisco é como se respondesse ao que enfatiza a encíclica Fratelli tutti: “Reaparece a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer muros, muros no coração, muros na terra, para impedir esse encontro com outras culturas, com outras pessoas”. Francisco quis pertencer àquela mesma sociedade que a Igreja em muitos aspectos queria conduzir, confundindo-se, num ímpeto de fraternidade e empatia, com a parte mais desprezada, com os pobres e camponeses, humildes e indigentes trabalhadores da terra. A partir daquele momento Francisco e seus companheiros, tornando-se pobres entre os outros pobres, ficaram só com aquela mísera vestimenta, sempre caminhando, em cada estação, descalços, como Cristo e os apóstolos, compartilhando a precariedade material e psicológica com os pobres e desventurados, aqueles que não têm nada.

Seguiram-se gerações de franciscanos, a fraternidade tornou-se uma ordem: muitos padres aderiram a ela e muitas das intenções de Francisco deixaram de ser levadas em consideração. Os frades não viviam, como no início, do trabalho de suas mãos; moravam em conventos, precisavam de tempo para estudar e preparar as homilias; para viver agora contavam com as doações dos fiéis. Os frades, desde os doze primeiros companheiros, como nos primeiros tempos, haviam se tornado milhares: era necessária uma organização diferente para a vida comum de tantas pessoas. Eles também se vestiam de maneira menos despojada e não andavam mais descalços. A atualização histórica do sucesso da ordem se reflete nos afrescos do ciclo de Assis: Francisco constantemente tem os pés descalços, os companheiros, os frades da época dos afrescos, isto é, do Papa Nicolau IV, o primeiro papa franciscano (1288-92), usam calçados nos pés. Essa discrepância pode ser ilustrada porque está de acordo com aquela profunda compreensão humana do próximo, típica de Francisco. A Legenda dos Três Companheiros continua: Francisco "advertia que os irmãos não julgassem ninguém, e não olhassem com desprezo para aqueles que vivem na moleza e se vestem elegante e superfluamente, pois Deus é Senhor nosso e deles, e tem o poder de chama-los a si e torna-los justos. Pelo contrário, dizia também que os reverenciassem como irmãos e senhores: irmãos, enquanto criados pelo mesmo Criador; senhores, enquanto ajudam os bons a fazer penitência, ministrando tudo o que é necessário ao corpo. E dizendo essas coisas acrescentava: ‘A vida dos irmãos entre os homens deveria ser de tal forma que todo aquele que os visse e os escutasse, glorificasse e devotamente louvasse o Pai celeste’”.

Hoje, porém, como ressalta a encíclica, “o encontro direto com as limitações da realidade torna-se insuportável. Em consequência, implementa-se um mecanismo de 'seleção', criando-se o hábito de separar imediatamente o que gosto daquilo que não gosto, as coisas atraentes das desagradáveis”. Francisco sempre tentou recompor em um discurso de paz as desigualdades, os diferentes estilos de vida: sua escolha foi por uma forma inclusiva de viver a religião cristã, um ensinamento mais vivo e vital que nunca em nossos dias. O ensejo é, portanto, nas palavras do Papa Francisco, que "um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras" se torne realidade. Esse comentário, junto com outros, acompanha a encíclica do Papa Francisco "Fratelli Tutti", nas livrarias a partir de 12 de outubro pela Scholé-Morcelliana.

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