“A uberização é uma extensão da racionalidade empreendedora”, afirma Laval

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11 Dezembro 2019

"'Comum' é o nome que demos a um regime muito amplo e muito diversificado de práticas, lutas, experiências, instituições e pesquisas que visam passar para um mundo que vá além do capitalismo, e mesmo além do Estado burocrático, ou pelo menos os primeiros marcos práticos dessa superação", explica Christian Laval em entrevista publicada por DigiLabour, 04-10-2019.

Christian Laval é professor do departamento de sociologia da Université Paris Nanterre e conhecido por seus trabalhos com Pierre Dardot, como A Nova Razão do Mundo e Comum. Lançou há pouco no Brasil o livro “A escola não é uma empresa”, também pela editora Boitempo. 

Eis a entrevista.

Um dos principais dilemas no confronto à racionalidade empreendedora é que mesmo projetos alternativos precisam, até certo ponto, do “espírito empreendedor” para obter financiamento de projetos. A racionalidade empreendedora realmente é algo totalizante ou há brechas?

A racionalidade empreendedora tende a prevalecer quando depende de subsídios estatais, como acontece na França para muitas associações de economia solidária ou quando uma cooperativa é exposta a uma competição ou procura desenvolver-se globalmente, como aconteceu com o grupo cooperativista basco-espanhol Mondragón. Esse é um processo bem conhecido dos especialistas em organizações, a que chamam de isomorfismo institucional. Isso leva uma cooperativa ou uma associação a imitar o comportamento de uma empresa. Este fenômeno também é perfeitamente observável na França. Mas generalizar essa reflexão levaria a esquecer duas coisas. Em primeiro lugar, o poder da motivação política das pessoas envolvidas em iniciativas “alternativas” que devem ser espertas para preservar, em um contexto de burocracia e em relações de forças concorrenciais desfavoráveis, “o espírito do comum”. Em segundo lugar, a dimensão da luta social e política de qualquer alternativa. Há certa ingenuidade no mundo alternativo, que provoca desmoralização quando a dificuldade de “fazer o contrário” não é suficientemente antecipada em uma estrutura dominada pelo capitalismo e pela burocracia estatal. Em outras palavras: o comum é uma luta, e uma luta não apenas ideológica, mas prática.

Como você vê o papel da comunicação na circulação da racionalidade empreendedora?

O que se chama “comunicação” nas empresas, ou nos partidos políticos que buscam imitar as empresas capitalistas, está além da publicidade e da propaganda, que são os primeiros motores. É uma concepção do mundo segundo o qual o empreendedor é a fonte de todas as ideias, invenções e riquezas. Seria necessário examinar vários aspectos, é claro, a comunicação interna e a comunicação externa da empresa. Essa comunicação empreendedora e empresarial tende a se impor muito além do campo gerencial, principalmente por uma certa maneira de falar que se tornou habitual. O léxico cotidiano agora está cheio de termos que eram específicos do mundo empresarial e do mercado, como se a linguagem que se fala agora tivesse o efeito de “naturalizar” as relações sociais internas da empresa. Podemos, portanto, dizer, como fizemos em “A Nova Razão do Mundo” que uma “subjetivação neoliberal” está se desenvolvendo por meio da circulação dos temas e vocabulários do mundo da gestão. No entanto, será que isso é tão generalizante quando percebemos e, então, deploramos sua onipresença nos modos de falar e pensar? Fico impressionado ao conversar com pessoas que trabalham em empresas o quanto elas sabem que isso se trata de uma remenda linguística, uma máscara. Isso sempre aparece nas entrevistas, como uma enrolação, uma langue de bois (língua de madeira, em tradução literal). Muitos deles mantém uma relação, se não esquizofrênica, pelo menos cínica com essa comunicação empreendedora e empresarial, e é essa distância que os salva da completa alienação e até de uma estupidez quase patológica.

Como você vê o processo que chamam de uberização do trabalho?

Não tenho uma posição muito original sobre a uberização do trabalho. Estamos lidando com um novo “capitalismo de plataforma”, cuja característica histórica é explodir a forma salarial da relação entre capital e trabalho, privilegiando a missão, a operação, a corrida, ou seja, microtarefas pagas por unidade e pelas quais a plataforma cobra uma comissão. É o novo mundo dos proletários sem segurança, transformados em “autoempreendedores” superexplorados, e tendo como compensação apenas a liberdade ilusória de trabalhar à vontade. Mas o que é absolutamente notável do ponto de vista histórico é a combinação entre a ideologia empreendedora e os dispositivos digitais. Isso permitiu sua concretização econômica e sua sistematização social. Por racionalidade empreendedora, não queremos dizer apenas um conjunto coerente de ideias, mas um conjunto de questões teóricas e práticas reais que orientam a conduta. A uberização é, portanto, um dos meios pelos quais essa racionalidade se estende, e agora afeta, nos países desenvolvidos, as frações jovens das classes trabalhadoras que nunca conheceram uma condição salarial relativamente protegida por leis trabalhistas e sindicatos.

Em “Comum”, você e Pierre Dardot falam do comum como um projeto político que também envolve a organização do trabalho. Como você vê a concretização desse “comum” na vida cotidiana?

Comum” é o nome que demos a um regime muito amplo e muito diversificado de práticas, lutas, experiências, instituições e pesquisas que visam passar para um mundo que vá além do capitalismo, e mesmo além do Estado burocrático, ou pelo menos os primeiros marcos práticos dessa superação. É, se você preferir, um tipo de bússola ou grade de leitura que permite ver como conectam experiências de economia social, certas instituições cooperativas, ocupações de fábricas, lutas de trabalhadores organizadas democraticamente, mobilizações etc. O comum é o que une todas essas práticas, duas dimensões que, para nós, formam um único princípio: uma exigência de autogoverno e ao mesmo tempo, um predomínio do uso coletivo de recursos ou espaços em relação à propriedade privada. Se tomarmos o exemplo dos “Coletes Amarelos” (Gilet jaunes) na França, essas duas dimensões estão muito presentes em sua revolta: é uma luta pela igualdade na partilha da riqueza e, ao mesmo tempo, uma luta pela “democracia real”.

Como compreender o comum sem idealizações?


Não há ideologia ou idealização em relação ao comum. Insistimos que o comum não é algo dado, nem poderia ser encarnado dentro de uma comunidade tradicional. É um princípio de luta ao mesmo tempo que um princípio de instituição. Não procuramos espalhar um ideal, mas mostrar o que acontece em lutas ou experimentos, de acordo com um método materialista que chamamos entre nós – de forma descontraída, porque é muito pretensioso – de “materialismo das práticas”. Poderíamos complementar ou esclarecer dizendo que o que importa para nós é o caráter institucional das práticas de lutas, resistências ou experiências alternativas: de que maneira elas levam à criação de outra realidade institucional e, portanto, social? Este é o critério decisivo para nós em qualquer análise. E é, a nosso ver, a melhor forma de autoanálise que qualquer movimento ou experimentação social deve fazer, perguntando-se qual forma institucional antiga foi questionada e qual nova forma institucional o grupo ajudou a criar.

 

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