A substância do ministério ordenado como um problema sistemático. Breve reflexão nos passos de Romano Guardini

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04 Dezembro 2019

"Uma teologia sistemática que assuma um olhar renovado sobre o desenvolvimento histórico e sobre a orientação normativa do último século remove todos os obstáculos ao reconhecimento da autoridade feminina no nível do ministério diaconal", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, em artigo publicado por Come Se Non, 25-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini

Eis o artigo.

"As questões relativas aos motivos históricos do ‘ser que se tornou’ e aquelas relativas aos fundamentos internos do ‘ser-assim’ se sobrepõem." - R. Guardini

A possível abertura para as mulheres da ordenação ao diaconato, suscitada pela iniciativa proposta pelo Papa Francisco de constituir uma comissão de estudos sobre o tema, abriu uma fase de repensamento e de abertura dentro da Igreja Católica.

A autoridade com a qual a Igreja pode decidir uma transição dessa envergadura deve ser garantida em duas frentes. Por um lado, exige que a experiência histórica da tradição ofereça exemplos e praxes que possam constituir, de alguma maneira, ou precedentes explícitos de uma praxe de ordenação diaconal de mulheres, ou dinâmicas que não excluam das possibilidades uma tal ordenação. Esse trabalho histórico, por si só, já foi realizado. Os documentos foram estudados e as práticas foram documentadas.

Há, contudo, outro aspecto da questão, que não deve ser absolutamente subestimado. Nesse caso, trata-se de um perfil refinadamente sistemático. De fato, a história pode nos contar sobre a mulher com autoritidade do século V ou XI. Mas a autoridade das mulheres, ou seja, o fato de não serem mais caracterizadas por "subiectio" ou "defectus emenentiae gradus", é uma mudança iniciada apenas no século XIX e reconhecida muito tempo depois pela Igreja como um "sinal dos tempos", com a descoberta do "papel público da mulher": desde 1963, em nível eclesial, as coisas não são mais as mesmas.

Desde que, com a encíclica Pacem in terris do Papa João XXIII, foi formalmente aceita que o papel público das mulheres é para a Igreja um "sinal dos tempos", do qual a Igreja pode e deve aprender, todo o estudo do passado nunca mais poderá substituir a novidade dessa nova condição, inaugurada no século XIX e que se impôs há décadas em pelo menos uma parte considerável do mundo.

Agora, para a Comissão convocada pelo Papa Francisco, trata-se hoje de uma questão de reconhecer acima de tudo essa novidade, de aceitar a riqueza da autoridade pública feminina e de admitir a mulher ao ministério ordenado, no grau de diaconato. Esta Comissão não será então o futuro de uma ilusão, mas a afirmação da tradição. De uma tradição capaz de reconhecer não apenas a autoridade do passado, mas também aquela do presente e do futuro. Como sempre foi o caso, quando a prudência do Espírito prevaleceu sobre o medo cego do inédito e sobre a inércia das formas eclesiais do passado.

A diferença entre questão histórica e questão sistemática

Essa passagem, no entanto, parece ser particularmente difícil e requer uma apresentação mais precisa. O trabalho da Comissão quer antes de tudo recuperar a compreensão histórica da questão. Muito bem. Mas da história da igreja fazem parte todos os séculos, os primeiros como os últimos. E a continuidade da tradição deve acertar as contas com as descontinuidades dos entendimentos culturais e sociais que acompanharam a "natureza feminina".

A história nos diz o que a Igreja disse ou fez em relação às mulheres. Mas o que a Igreja deva dizer ou fazer amanhã, em relação às mulheres, só pode ser dito pela teologia sistemática. A sistemática deve ser "especialista historicamente", mas a história nunca vincula completamente a síntese sistemática. É uma ilusão que possa ser construída uma síntese sistemática apenas com base em dados históricos.

Mas como essa distinção é tudo menos pacífica, e muitas vezes nos iludimos de que podemos pedir aos fatos históricos para resolver nossas questões sistemáticas, eis o ponto decisivo. Uma vez que o entendimento da mulher passou por uma transformação radical na sociedade liberal, aberta e em alta diferenciação, e que tal transformação, a partir de 1963, tornou-se "com autoridade" também para a Igreja, apenas uma teologia sistemática atualizada poderá estar apta não apenas a elaborar uma perspectiva sobre o futuro, mas também a prover um critério adequado para a leitura do passado.

Quem utiliza as normas do código do direito canônico, ou os princípios da teologia medieval, baseados na teoria da "subiectio mulieris", como critérios sistemáticos de consideração histórica da questão, cai em um "petitio principii" que prejudica seriamente toda a análise. Para realmente analisar a história, preciso saber desde o início o que quero procurar. Que mulher estou procurando? Que ministério? Qual ordenação? Pretendo que os textos do século IV possam me dizer o que homens só entenderam culturalmente no século XIX?

Para melhor esclarecer esse problema, cabe recorrer às palavras de um grande teólogo e filósofo como Romano Guardini, que escreveu sobre o tema uma contribuição absolutamente decisiva.

"O que foi e o que deveria ser"

R. Guardini conduziu uma reflexão sobre a relação entre "saber histórico" e "saber sistemático" no início de sua carreira, em um artigo publicado na "Liturgisches Jahrbuch" em 1921 e recentemente traduzido de forma muito oportuna na "Rivista Liturgica":

R. Guardini, "O método sistemático em ciência litúrgica", RL, 105/3 (2018), 183-196. Trata-se de um texto muito importante, porque destaca, de maneira particularmente aguda, a diferença entre uma abordagem histórica e uma abordagem sistemática. A lógica dos fatos e a lógica das "razões" resultam entrelaçadas de maneira não linear. Vamos ler uma afirmação central desse estudo:

"No mesmo objeto [...] existe um devir e um ser, um mudar e uma persistir, um efetivo e um vinculante. Ao primeiro é orientada de maneira particular à pesquisa histórica, e ao segundo à pesquisa sistemática. Eles então se complementam reciprocamente no objeto e no método. Cada uma precisa dos resultados da outra como impulso e autoverificação. Sem a história, a sistemática corre o risco de construir de forma prejudicial e arbitrária. Deve, portanto, apropriar-se dos resultados históricos, e sobre eles medir e retificar os próprios. Sem sistemática, por outro lado, a pesquisa histórica se perde no fluxo do meramente factual; seus conceitos ficam confusos e lhe escapa o que é de fato válido. Pelo contrário, os conceitos e as linhas sistemáticas a ajudam a manter uma ordem interna". (187)

A integração necessária entre o devir histórico e o ser sistemático implica a exigência pela qual a teologia não apenas não pode trabalhar unicamente em um nível, mas também exige a lucidez com que se pode distinguir entre argumentações baseadas no devir histórico e argumentações baseadas na tarefa sistemática. Se nunca pode haver separação entre as duas dimensões, também não pode haver confusão. Sempre há uma diferença irredutível entre o que é e o que deve ser. Isso também se aplica à maneira como argumentamos sobre o ministério eclesial. As formas históricas, mesmo quando detalhadamente documentadas, não fecham de forma alguma o espaço para uma elaboração sistemática, que não é absolutamente vinculada pelas formas históricas de exercício do ministério. O que Guardini estudou com perspicácia sobre a tradição litúrgica em sentido amplo pode ser muito convenientemente aplicado ao debate atual sobre o ministério. Vamos ouvi-lo nesta outra passagem:

"Muito menos será permitida uma argumentação do tipo: ‘O significado do presente elemento litúrgico só pode ser esse; portanto, somente assim pode ter sido entendido na época de sua formulação'. Seria uma generalização ilícita. É necessário rejeitar construções históricas desse tipo, elaboradas a partir de perspectivas sistemáticas preconcebidas."(188).

Guardini pode nos revelar que, por trás de análises históricas muito gerais, muitas vezes se escondem "perspectivas sistemáticas preconcebidas", que obrigam os dados históricos a âmbitos problemáticos e a visões categoriais completamente arbitrárias e muitas vezes bastante unilaterais. Alegar "fatos" e fornecer "razões" permanece uma tarefa diferente. Isto é especialmente verdade para a teologia do ministério ordenado.

Uma retomada da autoridade

Finalmente, deve-se dizer que um paralelo singular caracterizou os recentes acontecimentos relativos às mulheres e à Igreja. No momento em que a mulher adquiria uma importância pública cada vez mais significativa e qualificada, a Igreja entrava em uma progressiva crise de autoridade. Enquanto a mulher adquiria autoridade, a Igreja perdia autoridade. Ou, melhor dizendo, a Igreja corria o risco de reduzir cada vez mais sua auctoritas a um exercício de autoritarismo, substituindo muitas vezes a autoridade da argumentação pelo argumento da autoridade. Assim, a única maneira pela qual a Igreja poderá reconhecer pelo menos uma parcial autoridade feminina corresponderá inevitavelmente à recuperação da autoridade, através da qual a Igreja pode dizer e fazer "coisas novas".

A primeira coisa que a Comissão poderia indicar, de um ponto de vista sistemático, como objetivo de um repensamento histórico da "ordenação diaconal das mulheres" seria, desse ponto de vista, a remoção de um obstáculo institucional, no qual se expressa de forma direta, e eu diria violenta, o princípio da autoridade sem argumentos: isto é, a exclusão das mulheres da ordenação. O Cânone 1024 - introduzido no texto do CJC em 1917 e retomado no CJC de 1983 - deveria ser reformulado para permitir a ordenação diaconal feminina.

O pressuposto sistemático dessa reforma é a consideração de que o sexo masculino não faz parte da substância do sacramento da ordem. Isto é, que objetos de ordenação são todos os batizados com determinados requisitos, dos quais pertencer a um determinado sexo não faz parte. Portanto, a primeira reforma necessária consiste na reescrita do cânone 1024, que hoje determina (como em 1917):

- cân. 1024 - Só o varão batizado pode receber validamente a sagrada ordenação.

O Cânone poderia se tornar o seguinte:

- Can. 1024 (reformado) - O fiel batizado chamado ao serviço da Igreja recebe validamente a sagrada ordenação.

Uma teologia sistemática que assuma um olhar renovado sobre o desenvolvimento histórico e sobre a orientação normativa do último século remove todos os obstáculos ao reconhecimento da autoridade feminina no nível do ministério diaconal. A reforma do código, como horizonte de restituição de auctoritas à mulher - que saiba superar definitivamente toda teoria da "subiectio" e do "defectus eminentiae gradus" - constitui o horizonte sistemático com o qual uma análise histórica séria pode ser produzida.

Poderemos ler a tradição eclesial com um olhar mais puro. Que tenha olhos para a "tradição saudável" e, portanto, considere também aquela doente. E possa, portanto, discernir se seria correto pôr em continuidade com Jesus a misoginia que quer purificar o lugar sagrado da impureza do sangue feminino, ou seja, a liberdade de uma palavra e de um gesto direto, diferenciados sem discriminação, com autoridade sem clericalização.

A história de que precisamos é orientada por esse espírito. E ele sabe que a principal autoridade que a tradição, quando é saudável, pode desejar não é apenas aquela que vem do passado, mas, em primeiro lugar, aquela que se abre para o futuro.

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