Entenda as armas bolsonaristas na guerra às universidades

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07 Mai 2019

Jair Bolsonaro pretende viajar aos Estados Unidos nos próximos dias. Quando foi pela primeira vez como presidente, em março, participou de um jantar e comentou: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos de desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa.” Segundo ele, “quis a vontade de Deus que dois milagres” ocorressem, sua sobrevivência à facada e sua vitória eleitoral, esta baseada em uma campanha “em cima de um versículo bíblico, ‘conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’, e o que eu sempre sonhei foi libertar o Brasil da ideologia nefasta da esquerda”. Discurso revelador da missão atribuída a si pelo ex-capitão. Destruir o que houver de projeto de nação (Previdência pública e empresas estatais, leis trabalhistas etc.) e motivação religiosa para tanto. A Receita Federal defendeu recriar a CPMF com outro nome e cobrá-la até de dízimo, e Bolsonaro saiu à público: nada de taxar igrejas. O Banco do Brasil planejou uma propaganda de tevê com negros e mulheres, e o ex-capitão vetou, em “respeito à família”. Quer dizer, um presidente taleban, aquele grupo islâmico que, no poder no Afeganistão há 20 anos, derrubou estátuas milenares de budas gigantes, censurou tevê e música, impôs burcas às mulheres e barbas aos homens, proibiu meninas na escola.

A reportagem é de André Barrocal, publicada por CartaCapital, 07-05-2019.

A guerra às universidades federais é uma vistosa ação “taleban” do governo Bolsonaro. E não está em marcha apenas por fanatismo religioso. Há fome de lucro empresarial por trás. Após o presidente visitar o Ministério da Educação (MEC) em 25 de abril, o ministro Abraham Weintraub, no cargo há menos de um mês, iniciou uma ofensiva contra as instituições públicas de Ensino Superior. Vai tirar dinheiro dos cursos de filosofia e sociologia. Por ideologia, cortou verba de três universidades (a UFBA, da Bahia, UnB, de Brasília e a UFF, do Rio) e, por que a perseguição ilegal ficou escancarada, resolveu cortar de todas as federais em 30%. Botará lupa nas bolsas de pós-graduação concedidas pelo governo, em busca de pretexto ideológico para negar grana. Defendeu que alunos filmem professores em aula, gravação destinada a constranger docentes. “Bolsonaro e Weintraub são inimigos da educação”, declarou a União Nacional dos Estudantes (UNE), a convocar um protesto de alunos para o dia 15.

Weintraub apelou a inverdades para se justificar. Ao anunciar a asfixia financeira da filosofia, defendeu que o País necessita de mais veterinários, que filho de agricultor não precisa de diploma de antropólogo. E que o Japão tinha feito a mesma coisa. “Notícia falsa”, diz a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. Em junho de 2015, segundo a Anpof, o governo japonês pediu às universidades prioridade a certas áreas e menos investimento em outras, como Ciências Humanas e Sociais. As instituições chiaram, idem a federação das indústrias, e o assunto morreu. Aqui os alunos de Filosofia representam só 2% do total de universitários. Pouco em termos financeiros. Mas um perigo. Sócrates, o pai da filosofia, foi condenado à morte sob a acusação de incitar os jovens a pensar e a questionar tudo, uma “ameaça” à democracia grega.

Ao tirar dinheiro da UFBA, da UnB e da UFF, o ministro disse que o governo não tem de financiar “balbúrdia” e “evento ridículo”. E que o trio merecia menos verba por falta de qualidade, de bom desempenho em rankings e de produção científica virtuosa. Será? Há um ranking anual mundial das melhores universidades, públicas e privadas, elaborado por uma consultoria britânica, a Times Higher Education. Em 2018, a UnB era a oitava melhor do Brasil, três categorias à frente da posição anterior. Apenas entre as federais brasileiras, um total de 68, era a quinta, duas colocações acima de 2017. Nesse ranking, a UFBA passou de 71a para 30a posição na América Latina. Professor de Comunicação na UFBA, mestre e doutor em Filosofia, Wilson Gomes examinou o currículo Lattes de Weintraub e constatou: nada de doutorado, orientação de tese ou publicação científica relevante. “O ministro que exige dos outros professores publicações e ranking científico tem pior desempenho acadêmico que o professor mais desqualificado do meu departamento”, disse Gomes no Facebook.

“O governo mostra desconhecimento e falta de clareza sobre o papel das universidades. Divulga que elas não produzem conhecimento, mas é o contrário: elas é que produzem”, afirma Reinaldo Centoducatte, presidente da Andifes, a associação dos reitores das universidades federais. Desde 2014 o Brasil ocupa a 13a posição em um ranking de produção científica elaborado pela consultoria Clarivate Analytics. Em um relatório de 2018, a Clarivate examinou a produção daqui de 2011 a 2016 e a comparou a outros países. Identificou 250 mil papers, nome dos artigos acadêmicos. Mais do que Holanda, Rússia, Suíça, Turquia, Taiwan, Irã e Suécia, nações atrás na lista dos 20 primeiros. “A maioria dos trabalhos resulta de pesquisa e desenvolvimento realizados em universidades financiadas com recursos públicos e há mais de 20 anos tem havido aumento anual no número de trabalhos brasileiros na Web of Science”, afirma o documento. Web of Sciense é um banco mundial de textos científicos e 95% dos brasileiros guardados ali saíram de universidades públicas.

O relatório desmente Bolsonaro, empenhado como Weintraub em desinformar com fins ideológicos. Disse o presidente em abril à Jovem Pan: “Nas universidades, você vai na questão da pesquisa, você não tem, poucas universidades têm pesquisa, e, dessas poucas, a grande parte tá na iniciativa privada, como a Mackenzie em São Paulo, quando trata do grafeno”. O grafeno é um material tido como revolucionário graças a uma combinação única de resistência, capacidade de conduzir calor e eletricidade. Bolsonaro planejou visitar o Mackenzie em março, para ver de perto o centro de pesquisa, mas desistiu em cima da hora, devido a um protesto de liderado por mulheres, a esperá-lo na porta. Detalhe: as mulheres são responsáveis por 72% dos artigos escritos na academia brasileira e por 53% dos textos publicados, conforme um estudo de março da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI).

Estar não 13a posição em produção científica não é compatível com o tamanho da economia (uma das 10 maiores) e da população (uma das cinco maiores) do Brasil, mas é melhor do que já foi no passado. Em 1993, tínhamos 0,5% da produção, número que chegou a 2,5% em 2014. É possível, porém, que o País tenha caído uma ou duas posições devido aos cortes de verbas destinadas à pesquisa nos últimos dois anos, diz o físico Ildeu Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A intenção do MEC de olhar com lupa as pesquisas de pós-graduação financiadas por entidades como Capes e CNPq tende a piorar as coisas, pois foi a pós-graduação que impulsionou as pesquisas. “A rede de universidades públicas é grande, mas precisaria ser ampliada e melhorada, é onde são feitas as pesquisas, pois as empresas não se interessam”, afirma Moreira.

O objetivo do bolsonarismo é oposto. Destruir a rede pública de universidades. Basta ver o que pensa o guru da rapaziada, o “filósofo” Olavo de Carvalho. Quer dizer, o astrólogo, como prefere o vice-presidente Hamilton Mourão e como mostra um velho cartão de visitas de Carvalho: diretor científico de uma tal Sociedade Brasileira de Astrocaracterologia. O astrólogo acha que as universidades em geral não servem para buscar o conhecimento, mas para fazer a cabeça dos alunos com ideias comunistas. São avanços civilizatórios, como os direitos de pobres, mulheres, negros e indígenas, mas ele chama de “comunismo”. “Considero que a instituição universitária é a grande inimiga dos estudos superiores hoje em dia”, disse em setembro de 2017, em uma de suas aulas na web. Em julho de 2016, foi na jugular das “inimigas” locais: “As universidades brasileiras não têm mais conserto. Têm de ser, como já estão sendo, passadas para trás pelos cursos particulares”.

Uma ideologia a serviço do lucro, portanto. “Até o impeachment, havia uma preocupação de pensar primeiro no aluno, especialmente no Ensino Superior. Isso acabou”, diz um servidor do MEC, cujo nome será preservado. Quem deve estar com água na boca é Elizabeth Guedes, irmã do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ela é vice-presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup). O MEC é uma bagunça com Bolsonaro, mas não importa: Elizabeth não sai de lá. Vira e mexe está na secretaria de supervisão das faculdades, como testemunha nosso servidor anônimo. Guedes e um outro irmão, Gustavo, enriquecerem na última década ao investir em educação. Um dos investimentos foi com grana de fundos de pensão estatais e hoje custa ao “posto Ipiranga” uma investigação do Ministério Público por possível crime contra o sistema financeiro. Em 2007 Gustavo era sócio de Paulo e foi condenado pela CVM, a “xerife” do “mercado”, por usar informação privilegiada para lucrar. A desenvoltura de Elizabeth no MEC levará a tanto?

Elizabeth quer que o MEC afrouxe a vigilância das faculdades privadas. Em novembro, esteve em uma audiência pública na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e pregou mais facilidade para ensino à distância. Ao expor sua visão a respeito do MEC, não disfarçou o manejo da ideologia a favor do lucro. “O atraso se instalou depois do governo Fernando Henrique, não vou dizer que é o do PT. Nós deixamos de ter uma visão de liberdade, para uma visão de que todo mundo tem que ser vigiado de perto.” E emendou: por que em vez de o Inep, órgão federal, fiscalizar as instituições particulares, o governo não permite certificação privada? “Por que a gente não chama a KPMG, a Delloite” para certificar? Duas auditorias que não trabalham de graça. Dá para confiar nesse tipo de auditoria? No escândalo Enron, a Arthur Andersen mentiu sobre as finanças da cliente. Pegou tão mal, que até mudou de nome, para Accenture.

No ensino superior privado, não falta picaretagem. Em dezembro, o MEC cancelou 65 mil diplomas nascidos de fraudes descobertas em 2016 por uma CPI das Faculdades Irregulares. A CPI funcionou na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Descobriu que havia cursos de extensão travestidos de graduação, cursos superiores em instituições não reconhecidas pelo MEC, tudo com mensalidade barata e carga horária baixa. O ministério pegou o relatório da CPI, aprofundou a investigação e achou até venda de diplomas. Os 65 mil canudos anulados tinham sido emitidos por uma universidade no Rio de Janeiro, a Unig, o que revela que o esquema era nacional.

“A universidade pública no Brasil é mais importante talvez do que em qualquer outro lugar do mundo pelo histórico do Brasil, tanto de mazelas, e são muitas as mazelas deste país, quanto de vitórias que foram construídas”, disse o derrotado por Bolsonaro na eleição, Fernando Haddad, em uma palestra na UnB em 25 de abril. Bolsonaro “tem medo de vocês”, afirmou o petista, ministro da Educação por sete anos, porque “vocês são uma fonte de esperança muito importante para todas as camadas sociais, sobretudo agora que as universidades públicas congregam as classes sociais, negros e brancos, homens e mulheres de uma forma como nunca na história deste país”. No golpe de 1964, havia uns 200 mil universitários, cerca de 0,2% da população. Hoje são 8,3 milhões, 3,9% da população, 20 vezes mais em termos proporcionais. Só nas federais, 1,2 milhão. Haddad chamou o governo de “bando de picaretas”, Bolsonaro, de “traste” e pediu passeatas, entre outras.

O discurso parece ter deixado Weintraub particularmente irritado, que logo em seguida alvejou a UnB juntamente com UFBA e UFF. A UnB é um capítulo à parte na guerra bolsonarista, por razões geográficas e históricas. Está nas barbas do Palácio do Planalto. E saiu do papel no governo João Goulart, o presidente das reformas de base que entre elas punha a educacional, o homem derrubado pelo golpe militar que Bolsonaro diz não ter havido. Hoje possui uns 50 mil alunos e um campus enorme, valioso. Sofreu quatro invasões na ditadura, a primeira logo em 1964, a degolar 215 dos 230 professores. Por quase todo o regime, teve como vice-reitor e depois como reitor um oficial da Marinha que perseguia e censurava ideologicamente professores e alunos, José Carlos de Almeida Azevedo, um físico morto em 2010, aos 78 anos.

Reitor da UnB de 2008 a 2012, o professor de Direito José Geraldo de Sousa Jr. criou uma comissão da verdade, batizada de “Anisio Teixeira”, que escarafunchou esses fatos. Apesar de ver paralelos entre aquela ditadura e o governo Bolsonaro, enxerga uma diferença marcante no MEC. “A ditadura tentou construir a imagem de que valorizava o conhecimento, a educação. Botou um de seus melhores quadros no Ministério da Educação, Jarbas Passarinho, que só não chegou mais longe pois era coronel”, afirma. Passarinho: morto em 2016, aos 94 anos, foi também ministro do Trabalho e da Previdência na ditadura. “Essa guerra cultural de agora é um diversionismo para ocultar o projeto de mercadorização da educação, é como o neoliberalismo age. O nicho mais importante hoje na sociedade do conhecimento é a educação.” Certo, Paulo e Elizabeth Guedes?

A UnB foi a primeira universidade a criar um curso intitulado “O golpe de 2016”, a inspirar outros país afora, no fim do governo Temer. Na eleição, vencida em Brasília por Bolsonaro com 70% dos votos contra Haddad, parte do acervo da UnB de livros sobre Direitos Humanos foi vandalizado. Cheiro de nazismo. Logo após a chegada de Hitler ao poder na Alemanha, houve queima de livros em praça pública, obras de filosofia, sociologia e o que mais fosse incômodo para os nazistas. No ano passado, a antropóloga Debora Diniz, da UnB, deixou o País com medo de morrer. Defensora do direito de a mulher optar por interromper uma gravidez, participou com escolta policial, em agosto de 2018, de um debate no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre aborto. A Polícia Federal investiga as ameaças de morte que lhe foram dirigidas e esbarrou em pistas contra um sujeito condenado em dezembro a 41 anos de cadeia por quadrilha, incitação ao crime, terrorismo, racismo e divulgação de conteúdo pedófilo. Um radical de direita, Marcello Valle Silveira de Mello, suspeito de inspirar o massacre recente de alunos em uma escola em Suzano, no interior paulista.

Se a perseguição ideológica às universidades públicas for levada a julgamento do STF, como prometiam os partidos de oposição, o MEC que se prepare. A autonomia universitária no gasto de recursos é garantida na Constituição. Além disso, na eleição, a Corte mostrou-se protetora da liberdade de pensamento e expressão nas universidades, ao ser acionada por Raquel Dodge, a PGR, devido a decisões da Justiça Eleitoral sobre manifestações em universidades, inclusive privadas. Na UFF, do trio das perseguidas, alunos puseram no prédio da Faculdade de Direito a faixa a “UFF Antifascista”, e uma juíza eleitoral do Rio, Maria Aparecida Costa Bastos, mandou tirá-la, pois seria propaganda negativa contra Bolsonaro. A PGR queria barrar decisões como essa e foi ao Supremo em 26 de outubro, dois dias antes da eleição. O caso caiu com Cármen Lúcia, que deu uma liminar no dia seguinte. Para Cármen, que buscou na UnB dois assessores negros por não haver negros no STF, “universidades são espaços de liberdade e de libertação pessoal e política”. Mais: “Liberdade de pensamento não é concessão do Estado, é direito fundamental do indivíduo”. O plenário do Supremo referendou a liminar por unanimidade.

E se a gravação de professores por alunos chegar ao STF? O mais recente caso aconteceu em Itapeva, interior de São Paulo, onde em um cursinho pré-vestibular a aluna Tamires de Souza, dirigente local do PSL, o partido do presidente e dos laranjas, filmou uma professora que havia criticado Olavo de Carvalho e o governo em aula. O presidente botou o vídeo para circular na internet. Para ele, nada de doutrinação, “a gente quer que a escola forme bons profissionais, bons patrões, bons empregados, bons liberais”. Bons liberais? Doutrinação pura. Um grupo de advogados defensores de servidores públicos preparou uma cartilha de orientação a professores contra o que classifica de “patrulha ideológica”. Recomenda que façam BO se forem gravados e reúnam o máximo de provas, para se defender ou para processar. A gravação violaria vários dispositivos da Constituição que garantem liberdade de pensamento e de ensino, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Plano Nacional de Educação e a Lei dos Direitos Autorais.

Para Ildeu Moreira, da SBPC, a guerra do MEC contra as universidades públicas mostra a existência, no governo, de setores com uma visão muito estreita sobre o significado da ciência. Setores que, além de Abraham Weintraub, incluem ainda Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, e o próprio presidente. Por isso, ele percebe que, apesar da presença do astronauta Marcos Pontes no Ministério da Ciência e Tecnologia, há predomínio de uma “perspectiva anticientífica”. “Alguns mais radicais acham que a evidência científica é só uma opinião a mais”, diz Moreira, que nos dias 8 e 9 estará em Brasília, ao lado de outras sete entidades, para reuniões no Congresso e com Pontes em busca de mais verba para pesquisa. O desdém, comenta ele, é alimentado pela popularização da ciência como assunto no dia a dia, pela web e pelo avanço de “correntes religiosas mais fundamentalistas”. Um fenômeno que não é uma jabuticaba. Tem sido visto nos EUA e na Europa também.

Botar em dúvida descobertas científicas e o papel do conhecimento dá dinheiro. É o que diz o livro Mercadores da Dúvida, lançado em 2010 pela americana Naomi Oreskes, de 60 anos, professora de história da ciência em Harvard. No início dos anos 2000, Naomi estudou 928 artigos científicos a respeito de mudança climática e constatou que todos chegavam mais ou menos à conclusão de que a ação do homem interfere na temperatura. Por que então apenas 62% dos americanos concordavam que existe aquecimento global? Porque, concluiu Naomi, havia cientistas pagos por lobistas e por empresas para semear incerteza na mídia a respeito do tema. Um modelo de atuação inventado pela indústria do cigarro, a fim de retardar políticas públicas antitabagistas, e que depois foi adotado por setores interessados em adiar a regulação governamental de negócios que afetam meio ambiente.

Olavo de Carvalho é mercador de dúvida. Questiona a eficácia das vacinas e dissemina confusão astronômica, por exemplo. Quem gira em torno de quem, a Terra do Sol ou seria o contrário? “No confronto entre geocentrismo e heliocentrismo não existe uma prova definitiva de um lado, nem de outro”, disse em 2012. No Brasil de Bolsonaro, quem tira proveito ideológico dos mercadores são os evangélicos. Em termos de grana, são os fazendeiros, aqueles a quem Bolsonaro prometeu, em 29 de abril, em uma Agrishow, dar licença para matar em defesa de suas terras. Em março, Ricardo Salles participou, no Quênia, da quarta assembleia da ONU para o meio ambiente e em discurso conseguiu não pronunciar a expressão “mudança climática” nem a palavra “clima”, conforme observou um site especializado em questões ambientais, o “Clima Info”.

Lucros à parte, Abraham Weintraub não se move no MEC apenas por ideologia. Parece agir com o fígado também. É professor de economia na Unifesp, a Universidade Federal Paulista. Ele e o irmão, Arthur, aderiram a Bolsonaro dois anos antes da eleição. E sentiram-se desprezados no meio acadêmico após (palavras do ministro na Cúpula Conservadora das Américas, em dezembro, no Paraná) “saírem do armário” com um texto pró-autonomia do Banco Central. Detalhe: Abraham trabalhou em banco por 20 anos. Bem relacionados com o deputado Onix Lorenzoni, atual chefe da Casa Civil, os irmãos recorreram a ele para fazer barulho na Câmara, em uma audiência pública na qual exporiam a alegada perseguição acadêmica por se bolsonarizarem. “Na universidade, quem apoiou a gente foram os alunos. Não houve um professor”, Arthur costuma se queixar.

Arthur tem o fervor ideológico do irmão e dos talebans. “O Brasil é a salvação do mundo. A gente teve uma onda evangélica, eu sou evangélico, e você teve os olavetes. Juntou monarquistas. E o Brasil conservador cristão conseguiu dar o primeiro sopro de contrarrevolução contra esses comunistas”, afirmou na Cúpula, a propósito da vitória de Bolsonaro. Não se conforma de ter ido a universidades no Canadá e em Seul discutir Direito Previdenciário, sua área, e ouvido professores a falar do direito das mulheres. Ao se referir à USP e a Harvard, gosta de simular um cuspe. Sua bronca com a universidade americana é por só haver na direção (segundo ele) gente ligada aos democratas, nada dos republicanos de Donald Trump. Pior: quando esteve lá, a reitora era uma mulher. Mais grave ainda: autora de uma tese sobre “o socialismo em Nova York”. E o fim da picada: Elena Kagan foi nomeada para o Supremo por Barack Obama.

O fanatismo dos irmãos Weintraub, de Olavo de Carvalho e de Bolsonaro ilustra na prática ideias expostas pelo cientista político e historiador americano Mark Lilla, da Universidade Columbia, no livro A Mente Naufragada: Sobre o espírito reacionário, obra de 2016. Segundo Lilla, “os reacionários não são conservadores”, “são tão radicais quanto os revolucionários”. Só que não agem de olho em um futuro a ser construído. Miram um passado a ser recuperado. “Sua história começa com um Estado feliz e ordenado no qual as pessoas que conhecem seu devido lugar, vivem em harmonia, submissas à tradição e a seu Deus. Vêm então ideias alienígenas promovidas por intelectuais ‒ escritores, jornalistas, professores ‒ questionar essa harmonia, e a vontade de preservar a ordem é debilitada no topo da pirâmide. (A traição das elites é o esteio de toda narrativa reacionária)”, escreve Lilla.

“O nosso maior inimigo hoje é o ativismo da ignorância”, diz Margarida Salomão, ex-reitora da Universidade Federal de Juiz de Fora, hoje deputada federal pelo PT e uma das coordenadoras da recém-relançada Frente Parlamentar em Defesa da Valorização das Universidades Federais. “As universidades públicas têm aliados fortes na sociedade, por isso eu aposto que essa briga o governo vai perder.”

A conferir.

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