Brasil, o resultado do medo de um mergulho profundo nas transformações estruturais

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Por: Ricardo Machado | 10 Outubro 2018

Em menos de três semanas os brasileiros deverão escolher o novo presidente da república. A questão é: poderá algum governo superar uma visão financeirista das políticas públicas? Se do ponto de vista concreto essa é uma possibilidade real, do ponto de vista prático a história é outra, pois requer romper com as estruturas do sistema financeiro que, sobretudo após a crise de 2008, passou a permear todas as instâncias das políticas públicas.

Mas para entender como chegamos até aqui é preciso dar alguns passos atrás, como fez Lena Lavinas, durante a conferência Uma avaliação das políticas públicas na trajetória macroeconômica brasileira de 2003-2017, realizada na noite da segunda-feira, 8-10-2018. O evento integra a programação do II Ciclo de Palestras Trajetória da Política Econômica Brasileira 2003-2017. Crescimento, crise e novas possibilidades.

Do bem-estar à financeirização

A ideia de bem-estar social tem a ver com uma medida que é relativamente simples: gastar mais em políticas sociais do que na política armamentista voltada para a guerra. “O termo foi cunhado no pós-guerra, de modo que as constituições passaram a incluir temas de seguridade social, visando sociedades mais homogêneas, ampliando programas de educação e desmercantilização da saúde e um sistema tributário mais progressivo”, explica.

No capitalismo financeirizado, explica Lena, “mantém-se um sistema fiscal radicalmente regressivo, há cortes para provisão de recursos à seguridade social, começa-se a instaurar sistemas de vouchers para bens públicos, como educação, por exemplo, e há tremenda expansão do crédito consignado.”

Estado fiador da dívida

Entre 1964, ano do golpe civil-militar, e 1994, ano da entrada do Plano Real, o salário mínimo no Brasil perdeu valor real (atualmente deveria ser da ordem de R$ 1,4 mil), apesar dos ganhos a partir do início dos anos 2000. “É impensável que qualquer pessoa defenda a volta da ditadura militar. Cresceu para alguns, muito poucos, porque se pegarmos a média dos salários, eles passaram a se desvalorizar em 1964 e seguiram nesse ritmo até 1994”, demistifica.

Na prática, somos os “herdeiros” da conta do chamado “milagre econômico”, que de plano desenvolvimentista se transformou em hiperinflação na década de 1980 e dívida pública internacional nos anos 1990, nacionalizada nos anos 2000. “Na lógica da financeirização, o Estado assume o papel de fiador da dívida, tendo como meta a expansão do setor financeiro. A política social, em vez de ter um alcance de grande escopo, dá lugar a uma política de cortes de benefícios sociais e aumento do acesso ao crédito para que as pessoas financiem, por meio de empréstimos, bens sociais”, explica a conferencista.

 

Seguridade social no Brasil foi enfraquecida pela financeirização (Fonte: Agência Brasil)

Financeirização da política social

Um dos efeitos desta perspectiva política é que se gera uma certa “igualdade” em termos de possibilidade de aquisição de bens, mas sem uma radical desigualdade em termos de acesso à saúde, saneamento básico, educação, etc. “Incorporação ao mercado é diferente de inclusão social, porque esta última diz respeito à segurança socioeconômica. Isso só se dá por provisão pública global”, aponta Lena.

Outro dado assustador é que o mundo possui ativos financeiros que somam três vezes o Produto Interno Bruto – PIB de todos os países, isto é, há papéis que valem três vezes mais que a capacidade global de gerar riquezas. “Os CEOs das grandes empresas não se preocupam mais com a produtividade das corporações, mas com a capacidade das empresas de crescer o valor financeiro, por isso são pagos com ações, não com grandes salários”, ressalta. “Esses interesses prevalecem sobre os interesses da produção, dos trabalhadores que vivem de salários. Esta é a lógica acionária que toma o lugar da economia real”, critica professora.

Política social dos anos 2000

O Brasil teve como horizonte político social, a partir do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, a concentração de gastos em transferências monetárias, esvaziamento dos financiamentos da seguridade social (por meio de isenções fiscais) e em uma política tributária nula. “No Brasil, aquilo que é provisão pública (saneamento, por exemplo) tem uma profunda diferença entre os mais ricos e os mais pobres. Enquanto isso, o que é da ordem do consumo possui uma igualdade maior, por exemplo, no que diz respeito a aquisição de eletrodomésticos, como TV e eletrônicos como celular, entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres”, pontua.

O processo de bancarização no Brasil elevou o patamar de pessoas com contas sociais em serviços bancários de 1,4 milhão, em 2004, para 16 milhões em 2018. “Vai ser muito difícil reinventar a economia com as famílias endividadas. Por isso era tão importante a política do Ciro Gomes. Atualmente, 93% dos endividados são classe C, D e E”, descreve a pesquisadora. “Como diz Lazzaratto, a dívida se tornou o sistema de 'proteção social'. A lógica do endividamento cria a possibilidade do sistema financeiro se expandir”, conclui.

Passamos décadas à beira de piscina da transformação social e evitamos um mergulho profundo. Num piscar de olhos nos vemos diante do precipício. “Ficamos apenas na superfície com mudanças que não foram capazes de enfrentar os desafios da nossa sociedade. Em 2017, 170 ambientalistas foram assassinados. Vivemos em um país que elimina quem incomoda e é oposição, como é o caso da Marielle. A Constituição de 1988 trouxe esperança, mas agora está em risco”, pontua.

Lena Lavinas

Lena Lavinas (Foto: Ricardo Machado/IHU)

Lena Lavinas é graduada em Economia pelo Institut d`Etudes pour le Développement Economique (França). É mestre e doutora em Estudos sobre a América Latina pelo Institut de Hautes Etudes d`Amérique Latine (França). Realizou o pós-doutorado no Centre de Sociologie Urbaine. É membro do comitê editorial do Feminist Economics (EUA) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

Entre seus livros estão Programas Sociais de Combate à Fome: o legado dos anos de estabilização econômica (Rio de Janeiro: Editora UFRJ - Ipea, 2004) e Emprego Feminino no Brasil: mudanças institucionais e novas inserções no mercado de trabalho (Santiago do Chile: Cepal, 2002).

Assista a conferência na íntegra

 

 

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