Por que o decrescimento não fascina a nós, ocidentais

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21 Março 2018

O "decrescimento" é uma perspectiva ético-política que se espalhou rapidamente em todo o mundo após a traumática crise financeira de 2008: uma catástrofe global que parece já ter sido totalmente e sintomaticamente superada.

A reportagem é de Andrea Muni, publicada por L’Espresso, 20-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

Mas o que é realmente o decrescimento? Para Serge Latouche, filósofo e economista francês, um dos principais ideólogos do movimento, “o decrescimento não se destina a substituir o atual e deletério significado de "economia" e de "crescimento", por um significado diferente - talvez pintado de verde e de "équo-solidariedade” - que seria por fim aquele ideal. Trata-se, ao contrário, nada mais nada menos, que sair da economia: uma tarefa ainda profundamente incompreendida pela maioria dos nossos concidadãos, para quem é difícil aceitar o fato de que a economia tenha se tornado uma religião e que é preciso, portanto, começar a construir uma sociedade verdadeiramente laica".

Latouche - como homem de esquerda que muito estudou Marx - também acredita que, para sair desse supersticioso "status de dependência", cada povo deva redescobrir suas raízes e tradições culturais. O decrescimento, portanto, como suspensão da pretensão delirante e requintadamente imperialista de ter o direito/dever de julgar os valores dos outros povos com base naqueles "universais" que nós, ocidentais, criamos, e incutimos pela força, em quase todas as outras culturas o mundo. Mas também, para nós europeus, decrescimento como positiva redescoberta ética e humana, antes mesmo que política, das obras de pensadores como Karl Marx ou Georges Bataille; ou, para nós, italianos como "ruminação" da desesperada denúncia de Pasolini da "mutação antropológica" do povo italiano.

O decrescimento é, portanto, uma perspectiva que poderia variar de uma redução da "necessidade" desenfreada de viajar a turismo à moderação do enorme consumo de produções de "intelectuais" de que se alimenta a hipertrofia da chamada indústria cultural. Mas, acima de tudo, do ponto de vista ético, decrescimento significa suspensão radical de fé ingênua que temos em relação a aquelas que nos parecem "naturalmente" como as nossas mais evidentes ambições e expectativas.

Na Itália, na verdade, não tivemos que esperar por Latouche para ouvir Pasolini denunciar desesperadamente, desde o início dos anos 1970, a destruição capitalista e consumista dos modelos culturais (e existenciais), em que as classes menos abastadas podiam encontrar com felicidade formas de se "reconhecerem" e "realizarem". Nada poderia ser mais atual que uma denúncia semelhante, na verdade, especialmente se considerarmos que - nunca como hoje - os pobres têm à disposição exclusivamente modelos assintóticos e inatingíveis, que parecem deliberadamente concebidos para gerar sistematicamente frustração e inveja social (se você é um cozinheiro, precisa se tornar no mínimo um masterchef; se você desempenha uma profissão humilde, pelo menos, deve percebê-la como algo temporário e da qual você tem vergonha; nos seriados da moda para meninas as protagonistas são sempre aspirantes a artistas, ou super-heroínas, e os pobres não existem).

O problema do fracasso do projeto de decrescimento - pelo menos na Europa e nos EUA, porque, ao contrário, no Uruguai teve, até 2015, um presidente ‘decrescista’ (Pepe Mujica) que transformou radicalmente o país – deve ser procurado em sua substancial falta de charme. O decrescimento na verdade, este talvez seja o verdadeiro limite estratégico de perspectiva de Latouche, não pode se resolver em uma virtuosa autolimitação que a comunidade humana - finalmente "iluminada" - deveria ser capaz de impor para si mesma, para o bem do meio ambiente e das relações sociais.

Essa ideia, embora respeitável, não é suficientemente radical (nem atraente). Por qual motivo - poderia, com toda razão, argumentar qualquer um - justamente eu deveria ser o primeiro a começar a limitar a minha voracidade de consumidor, meus hábitos altamente poluentes e as minhas ambições autoempreendedoras, enquanto todos os outros não se importam minimamente?

O decrescimento precisa se tornar mais do que uma aspiração (basicamente moralista) de difundir para os outros um desejo de "autolimitação” do consumo, da ambição e do egoísmo. Deveria conseguir demonstrar - como fez Bataille, em sua própria vida - que o homem e a natureza não tendem a reinvestir "naturalmente" as próprias energias excedentes para crescer indefinidamente (como gostaria a mitologia cientista da economia política, o darwinismo social e todo o neo-positivismo burguês), mas tendem, ao contrário, a apreciar livrar-se delas, destruí-las, consumi-las de vez. O "novo" decrescimento deveria ser apresentado como uma experiência da satisfação individual, e de si mesmos, o que se colocasse explícita e "egoisticamente" em concorrência com aquela condensada na ética do chamado homo oeconomicus.

De acordo com a perspectiva "decrescimentista" de Bataille, de fato, o homem (e a vida em geral) não são caracterizadas por uma tensão indefinida à acumulação, mas por uma urgência para descarregar, ejetar, dissipar a energia que espontaneamente produzem em excesso. A dépense é para Bataille uma verdadeira pulsão que tudo o que vive tem de "consumir" – de fazer "decrescer" - uma energia excedente que se não fosse rapidamente dissipada se voltaria contra o próprio organismo destruindo-o.

O que é removido, excluídos, censurado da forma mais sutil do nosso sistema de valores é de fato a alegria, a satisfação clara e profunda que tudo o que vive - incluindo o ser humano - pode tentar não ter a menor vontade de "reinvestir", no circuito da vantagem e do lucro, as forças e os bens do quais dispõe em excesso. A "festa" é para Bataille o lugar (sagrado e comum), em que a urgência desse desperdício, e a rejeição radical da lógica do lucro, se fundem dando vida a novas formas de sociabilidade e de satisfação. A "festa" de Bataille não se confunde com o consumismo capitalista, muito menos com a ideia latouchiana de uma sóbria, moralista autolimitação do luxo, da glória e do egoísmo, mas sim nos indica o caminho para uma nova significação para além do lucro. A festa como "outra cena" onde construir novas formas - não capitalistas nem consumistas – de sociabilidade, intimidade e amizade; onde inventar novos significados das palavras "glória", "consumo" e até mesmo da tão vituperada "egoísmo". Um estar juntos satisfeitos "na perda" - chamado por Marx também de "consciência, ou orgulho, de classe" - que talvez possa nos ajudar também a ver mais claramente a parte que nós mesmos "explorados" até agora inadvertidamente jogamos na lógica dessa absurda “religião econômica" da qual nós somos - todos – ao mesmo tempo as vítimas e os artífices.

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