Francisco, Amoris laetitia e o choque do novo. Entrevista com Blase Cupich

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17 Fevereiro 2018

Quando indiquei para o cardeal Blase Cupich que ele parece gostar de agitar as coisas, ele irrompeu em risadas. “Eu não estou fazendo nada para agitar as coisas mais do que o papa!”

A reportagem é de Brendan Walsh, publicada por The Tablet, 14-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O cardeal ficou novamente sério e se inclinou para a frente e me olhou nos olhos.

“O problema – e é um problema importante – é esse. Não estamos indo ao encontro das necessidades das pessoas reais. Não podemos ficar satisfeitos com nós mesmos. A tentação mais perniciosa que temos na Igreja é ceder ao sentimento de que ‘chegamos lá’. O Papa Francisco está tentando nos arrancar disso.”

Estou falando com o cardeal, talvez o defensor mais forte e articulado do papa, em um escritório repleto de livros com vista para o jardim do St Edmund’s College, Cambridge.

Cupich, 68 anos, simpático, amigável, mas atento, tem um rosto de ator de personagem muito vivido, que frequentemente muda de expressão. Ele estava prestes a proferir a conferência anual Von Hügel – promovida pelo Instituto Von Hügel de Investigação Católica Crítica – na faculdade na semana passada, na qual ele descreveria a exortação pós-sinodal de Francisco sobre a família, Amoris laetitia, como “um novo paradigma da catolicidade”.

Sua palestra dividiu bruscamente o público e tem dividido nitidamente os comentaristas desde então. Mas, para Cupich, não foi um exercício puramente acadêmico. A mensagem da Amoris laetitia tocou-o profundamente.

“É algo que eu vivi, algo que eu experimentei”, ele diz de modo simples. “Você não pode ensinar a menos que esteja pronto para aprender. E você não pode aprender a menos que esteja pronto para ouvir. E o que o papa faz tão dramaticamente na Amoris laetitia é mostrar, através de toda a Escritura, em uma história após a outra, como Deus escolheu a vida familiar como uma forma privilegiada pela qual vemos quem Deus é e o que Deus está fazendo.”

Grande parte do apelo e do frescor de Francisco estão aqui: enquanto teólogos, biblistas e acadêmicos tendem a buscar as coisas de Deus em mosteiros ou locais de trabalho, na política ou na arte, ele nos pede, em vez disso, para procurar Deus diretamente debaixo do nosso nariz – no caos cotidiano da vida familiar.

A família, diz Cupich, está enfrentando novas pressões e está mudando rapidamente. E, a partir da intuição de que a família é um lugar privilegiado da autorrevelação e da ação de Deus no mundo, segue-se que deve haver uma interação entre o ensino da Igreja e a realidade da família: um equilíbrio entre ensino e escuta. Uma reciprocidade.

“É uma boa intuição, não é?”, pergunta Cupich. “E a vida familiar continua sendo uma fonte do desdobramento de Deus, daquilo que Deus está revelando, daquilo que Deus está fazendo no nosso tempo. É por isso que as famílias não são problemas aos quais devemos trazer soluções, mas sim oportunidades para ver o que Deus está fazendo.”

“É uma compreensão revolucionária da família. E, nesse movimento do Espírito, nessa reciprocidade, eu aprendi a ser padre.”

Ele é cuidadoso para não ser mal interpretado. Não se trata de inventar coisas enquanto avançamos. “A Igreja deve ser fiel aos ensinamentos que recebemos. Mas é preciso uma nova direção”, explica. O trabalho do padre e da comunidade paroquial é decisivamente diferente. “O novo modelo de ministério para as famílias é o do acompanhamento (...) e está marcado por um profundo respeito pela consciência dos fiéis.”

Um dos aspectos negligenciados da Amoris laetitia é a sua atenção aos pequenos detalhes. Há algo do olho de um romancista nas descrições de Francisco sobre as tensões e as exasperações da vida familiar. Ele é alguém que passou muitos domingos entre o pandemônio de longos e intermináveis almoços em família. “Francis é um bom observador do comportamento humano”, concorda Cupich. “E ele está presente para as pessoas no detalhe de suas vidas – ele vê o que está acontecendo ali.”

Blase Cupich também é alguém silenciosamente atento, um bom observador. Por isso, ele sabia que o uso de palavras como “revolução” e “nova hermenêutica” incitariam o alerta e a aversão, assim como o entusiasmo. Perto do fim de sua palestra, Cupich descreve a mudança de paradigma como uma “hermenêutica revivificada”. O Papa Francisco, diz ele, “está recuperando uma maneira de pensar o ensino e a prática da Igreja que tem raízes na nossa tradição”. É quase uma frase trivial. E, silenciosamente escondida na palestra, há uma clara rejeição do relativismo, um reconhecimento de verdades morais objetivas e uma reafirmação de uma compreensão tradicional da consciência.

Mas Cupich parece preferir reproduzir a hermenêutica da revolução e do distúrbio em vez da hermenêutica do ressourcement e da continuidade. Você não está sendo desnecessariamente combativo?, pergunto-lhe. Estamos acostumados a lideranças da Igreja que protegem a unidade dos fiéis e estão ansiosos para não inflamar uma guerra cultural.

“Não há nenhuma revolução naquilo que a Igreja ensina”, diz. “O que há de novo e revolucionário é a forma como a Igreja é Igreja. A forma como a Igreja age. A forma como a Igreja ministra para as pessoas. Desde o início, o Papa Francisco deixou claro que ele está reorientando a Igreja como um hospital de campanha, em vez de um lugar onde as pessoas pensam ‘chegamos lá’. Eu quero dizer tudo isso para que as pessoas não sintam que a Amoris laetitia é outro documento da Igreja que podemos colocar na prateleira. É um chamado às armas, um chamado à ação, e eu não quero que isso se perca.”

Costuma-se dizer que Blase Joseph Cupich foi a escolha pessoal do Papa Francisco para suceder o cardeal George Francis como arcebispo de Chicago em 2014. “Eu nunca perguntei ao papa sobre isso”, diz. “Tudo o que sei é que o núncio papal me chamou e me disse que eu tinha sido nomeado.” Então ele ri e diz: “É claro, todo bispo é uma escolha pessoal do papa”.

De fato, no momento da sua nomeação, Cupich, embora bem conhecido em Roma como um bispo dos Estados Unidos com o autêntico “cheiro das ovelhas” muito amado pelo Papa Francisco, nunca o havia encontrado. “A primeira vez que eu me encontrei com o papa foi quando fui a Roma para receber o pálio, em junho de 2015”, diz. “Ele pediu para me ver, e nós conversamos por meia hora – em italiano, que é melhor do que o meu espanhol. ‘Eu só queria ver com meus próprios olhos a pessoa que nomeei’, ele me disse.”

Os quatro avós de Cupich eram todos imigrantes da Croácia que haviam migrado para Omaha, Nebraska, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, porque ouviram falar que havia acesso a trabalhos não qualificados nas indústrias de embalagem de carne. Eles participavam da mesma paróquia em Omaha. Seus filhos, os pais de Blase, iam na mesma escola fundamental e na mesma escola secundária. Eles se casaram depois que o pai de Blase – também chamado Blase – voltou para casa após a guerra. Depois de ter saído da Marinha, ele trabalhou para a agência postal.

Blase é o terceiro dos nove filhos: quatro meninos e cinco meninas. “Todos nós íamos à igreja. Estávamos no coral, ajudávamos na missa (...) a paróquia era nossa segunda casa.”

“Meu pai, quando éramos crianças, se levantava cedo, carregava seu correio, chegava em casa de tarde, almoçava com minha mãe e, depois, ia para a escola, onde ele trabalhava como zelador de meio turno: meus dois irmãos mais velhos e eu o ajudávamos a limpar a escola. Depois, voltávamos para casa, e a família jantava todos juntos, e então meu pai saía e atendia no bar – um terceiro emprego.”

“Os meninos ficavam todos em um quarto; as meninas, no outro. Quando eu estava no Ensino Médio, nos mudamos para uma casa de quatro quartos: as meninas ficaram com dois quartos”, lembra. “Todos nós tínhamos trabalhos quando éramos crianças. Eu entregava papéis, trabalhava com meu pai como zelador, limpava casas – todos nós tínhamos que pagar pela nossa trajetória no Ensino Médio.”

Seu irmão mais velho foi para o seminário. Ele não concluiria os estudos, mas isso colocou esse pensamento na mente de Blase. “Eu pensei: ‘Vou tentar’.” Ele pensou em estudar Direito, mas começou Filosofia. Estudou em Roma e foi ordenado em 1975. Entre 1980 e 1987, foi secretário da delegação papal em Washington, onde o núncio era Pio Laghi, recentemente renomeado para a Argentina.

Depois de atuar como reitor de um seminário, em 1998, com 49 anos, Cupich foi nomeado o sétimo bispo de Rapid City, Dakota do Sul, pelo Papa João Paulo II. Em 2010, ele foi nomeado bispo de Spokane, Estado de Washington. “Quando um papa o nomeia como bispo, talvez ele pode ter cometido um erro... mas três?” Mais uma vez, o rosto bem alinhado irrompe em risadas.

Ele é membro do Colégio dos Cardeais desde 19 de novembro de 2016. Assim como Vincent Nichols, ele é membro da Congregação para os Bispos e, mais recentemente, foi nomeado para a Congregação para a Educação Católica.

Eu comparo a ambição e o impulso do Papa Francisco com a ousadia e a energia do Papa João Paulo II, que efetuou uma mudança de paradigma por conta própria, voltando a Igreja para uma direção diferente quase através da força de vontade. Mas ele foi eleito antes do seu 60º aniversário e foi papa por 27 anos. Será que a mudança fundamental de autocompreensão à qual o Papa Francisco está tentando nos impulsionar realmente poderá se enraizar em um papado relativamente curto?

“O que o papa está fazendo está enraizado no Concílio Vaticano II”, diz Cupich. “Foi lá que a principal mudança de paradigma aconteceu. Ele está apenas escavando aquilo que o Concílio representou. Então, eu não acho que isso vai desaparecer quando este papado terminar. Trata-se de uma estrada curva. Durante o papado de João Paulo II, as pessoas me diziam: ‘O Concílio está meio morto agora. Temos essa nova onda, essa nova preocupação com a ortodoxia’, e eu dizia: ‘Não há volta atrás. O Concílio abriu um novo caminho, foi guiado pelo Espírito, e vai continuar’. Eu nunca joguei o jogo de escolher o papado que se quer.”

Naturalmente, há católicos que simplesmente não estão preparados para engolir o desenvolvimento no ensino e na prática aberto pela Amoris laetitia, que, em algumas circunstâncias, pode permitir que algumas pessoas em uma segunda união recebam a comunhão.

Mas Cupich aponta para João Paulo II como o papa que instigou o desenvolvimento realmente impressionante da doutrina ao resgatar as pessoas divorciadas e em segunda união do seu estado de desgraça e excomunhão, e ao trazê-los de volta para a vida da Igreja. A Amoris laetitia assume esse desenvolvimento em outro passo.

Cupich me diz que seus próprios padres em Chicago, que são muito abertos ao novo caminho, acham que a Amoris laetitia lhes faz demandas nem sempre fáceis de alcançar. “Acompanhar as pessoas é um trabalho duro.” Para outros, admite, “é uma mudança grande demais para se aceitar. Será sempre assim quando algo novo acontecer. A questão para aqueles que se opõem ao papa é: ‘Você acredita que o Espírito Santo não estava presente nos dois Sínodos sobre a família? Você acredita que o Espírito Santo não estava presente quando o Santo Padre escreveu a Amoris laetitia?’ O fardo de ter que dar explicações agora está sobre aqueles que se opõem àquilo que o papa está fazendo – não sobre o papa.”

Cupich diz que agora cabe às Conferências Episcopais levar o ensino para a frente. “Incluindo aqui na Inglaterra?”, pergunto. “Pode haver dificuldades”, concorda Cupich. “Certo. Mas é melhor falar sobre isso às claras, não é? Você não pode ser agnóstico sobre a Amoris laetitia. Você não pode simplesmente ignorá-la. Sim, internamente, haverá lutas. Mas há muitas pessoas que se sentem afastadas da Igreja, afastadas de Deus, afastadas das outras pessoas, que sentem que foram deixadas para trás, descartadas ou vivendo às margens, e que ninguém se importa com elas. Eu não acho que isso seja satisfatório.”

Cupich me leva de volta à sua infância em Omaha: “Eu cresci em uma grande família. Nunca deixávamos que as coisas saíssem do controle, que pegassem fogo enquanto nos afastávamos. Meus pais queriam que fôssemos muito honestos sobre o que fazíamos. Se a nossa única preocupação for: ‘Será que isso vai fazer muita bagunça na casa?’, seremos apenas uma Igreja autorreferencial. Eu não fui ordenado para fazer parte disso.”

Assista abaixo, em inglês, à palestra do cardeal Blase Cupich promovida pelo Instituto Von Hügel no St Edmund’s College, Cambridge:

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