A catástrofe inevitável. Artigo de Slavoj Zizek

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29 Setembro 2017

“Ao invés de dizer ‘o futuro ainda está aberto, ainda temos tempo para atuar e prevenir o pior’, se deveria aceitar a catástrofe como algo inevitável, e depois atuar para desfazer o que já está “escrito nas estrelas” como nosso destino”, escreve o filósofo e crítico cultural esloveno Slavoj Zizek, em artigo publicado por Página/12, 27-09-2017. A tradução é do Cepat.

Em sua opinião, é necessário “nada menos que um movimento antinuclear novo e global, uma mobilização mundial que exerça pressão sobre as potências nucleares e atue agressivamente, organizando protestos massivos, boicotes, etc. Deve se centrar não só na Coreia do Norte, mas também nas superpotências que assumem o direito de monopolizar as armas nucleares. A própria menção pública do uso de armas nucleares deve ser tratada como um crime, e os líderes que mostram publicamente sua disposição em colocar em risco milhões de vidas inocentes para proteger seu reinado, devem ser tratados como os piores criminosos”.

Eis o artigo.

Há uma semana, deparei-me lendo o livro número 80 de Agatha Christie (Penúltimo), Passageiro para Frankfurt, e sua atualidade me assombra. O livro – publicado em 1970, com um subtítulo “uma extravagância” – é um fracasso total e se caracterizou, muitas vezes, como “confusão incompreensível”. No entanto, esta confusão não se deve à senilidade de Christie, suas causas são claramente políticas.

Passageiro para Frankfurt é o romance mais pessoal, intimamente sensível e, ao mesmo tempo, mais político de Christie. Expressa sua confusão pessoal, seu sentimento de estar totalmente confusa com o que estava acontecendo no mundo, em fins de 1960: as drogas, a revolução sexual, os protestos estudantis, os assassinatos, etc. Por esta razão, não é de estranhar que Passageiro para Frankfurt não seja um romance de detetives, não há assassinato, nem lógica, nem dedução. Este sentimento de colapso do mapa cognitivo elementar, este medo avassalador do caos, expressa-se claramente na introdução de Christie ao romance:

“Olhe para um Mirror [jornal] de 1970, na Inglaterra. Olhe essa primeira página todos os dias durante um mês, tome notas, considere e classifique. A cada dia há um assassinato. Uma criança estrangulada. Uma mulher idosa atacada e roubada em suas escassas economias. Homens ou jovens garotos atacam ou são atacados. Edifícios e cabines telefônicas destroçados e arruinados. Tráfico de drogas. Roubo e assalto. Crianças desaparecidas e os cadáveres de crianças assassinadas encontrados não distante de seus lares. Pode isto ser a Inglaterra? A Inglaterra é realmente assim? Ainda não, mas poderá ser. O medo está sendo despertado, um medo ao que pode ser. E não só em nosso próprio país. Há parágrafos menores, em outras páginas, que dão notícias da Europa, da Ásia, da América, nas notícias mundiais. Sequestro. Violência. Distúrbios. Ódio. Anarquia. Tudo está aumentando. Todos parecem levar ao culto da destruição, ao prazer na crueldade.

Então, o que significa tudo isto?

No romance, Christie dá a sua resposta: uma terrível conspiração mundial tem algo a ver com Richard Wagner e “O Jovem Siegfried” – o quê? Ficamos sabendo que, no final da Segunda Guerra Mundial, Hitler foi a uma instituição mental, reuniu-se com um grupo de pessoas que pensavam que eram Hitler e trocou o seu lugar com um deles, sobrevivendo, desse modo, à guerra. Em seguida, fugiu para a Argentina, onde se casou e teve um filho que estava marcado com uma suástica no calcanhar –. Enquanto isso, no presente, as drogas, a promiscuidade e os protestos estudantis são causadas secretamente por agitadores nazistas que querem chegar à anarquia para poder restaurar a dominação nazista em escala mundial...

Esta “terrível conspiração mundial” é, é claro, fantasia ideológica em seu estado mais puro: uma estranha condensação do medo da extrema-direita e da extrema-esquerda. O menos que podemos dizer a favor de Christie é que ela localiza o coração da conspiração na extrema-direita (neonazista) e não em qualquer dos outros suspeitos habituais (comunismo, judeus, muçulmanos...). A ideia de que os neonazistas estavam por trás dos protestos estudantis de 1969 e da luta pela libertação sexual, com sua óbvia loucura, é, no entanto, um testemunho da desintegração de um mapa cognitivo consistente com a nossa situação. Christie se vê obrigada a se refugiar em uma louca construção paranoica como a única maneira de introduzir certa ordem e significado na confusão total e no pânico em que se encontrava.

Mas, sua visão é realmente muito louca para ser levada a sério? Não é nossa era com “líderes” como Donald Trump e Kim Jong-un tão louca como sua visão? Não somos hoje todos como um grupo de passageiros para Frankfurt? Nossa situação é desordenada de uma maneira muito similar à descrita por Christie: um governo direitista que faz valer os direitos dos trabalhadores (na Polônia), um governo esquerdista que persegue a mais rigorosa política de austeridade (na Grécia)... Não é de estranhar que para recuperar um mínimo mapa cognitivo Christie recorra à Segunda Guerra Mundial, “a última boa guerra”, retraduzindo nosso liame em suas coordenadas.

Dever-se-ia observar, no entanto, que a própria forma da resposta de Christie (um grande agente secreto por trás de tudo) reflita de maneira estranha a ideia fascista da conspiração judia: há um grande complô nazista por trás do qual se explica tudo... Hoje, a extrema-direita populista propõe uma explicação similar da “ameaça” do imigrante muçulmano. No imaginário antissemita, o “judeu” é o Mestre invisível que secretamente puxa as cordas, razão pela qual os imigrantes muçulmanos NÃO são os judeus de hoje: são muito visíveis, não invisíveis, claramente não estão integrados em nossas sociedades, e ninguém afirma que em segredo puxam as cordas. Caso se veja em sua “invasão da Europa” um complô secreto, então os judeus tem que estar por trás, como foi o caso em um texto que apareceu recentemente em um dos principais jornais semanais eslovenos, onde podíamos ler:

George Soros é uma das pessoas mais depravadas e perigosas de nosso tempo”, responsável pela “invasão das hordas negroides e semíticas e, portanto, do crepúsculo da União Europeia. /.../como talmude-sionista típico, é um inimigo mortal da civilização ocidental, do Estado-nação e do homem branco e europeu”. Seu objetivo é construir “uma coalização composta de marginais sociais como gays, feministas, muçulmanos e culturas Marxistas que odeiam o trabalho”, que realizaria uma “desconstrução do Estado-nação e transformaria a União Europeia em uma distopia multicultural dos Estados Unidos da Europa”. Além disso, Soros é inconsistente em sua promoção do multiculturalismo: “Promove esta exclusivamente na Europa e nos Estados Unidos, enquanto que no caso de Israel, ele, de uma maneira que é para mim totalmente justificada, está de acordo com o monoculturalismo, seu racismo latente e a construção de um muro. Diferente da União Europeia e dos Estados Unidos, também não exige que Israel abra suas fronteiras e aceite os “refugiados”. Uma hipocrisia própria do Talmude-sionismo”.

É esta fantasia repugnante que reúne o antissemitismo e a islamofobia tão diferente da colocada em cena por Christie? Não são ambos uma tentativa desesperada de se orientar em tempos confusos? As oscilações extremas na percepção pública da crise coreana são significativas como tais. Uma semana nos dizem que estamos à beira de uma guerra nuclear, depois há uma semana de respiro, então a ameaça de guerra explode de novo... Quando visitei Seul, em agosto de 2017, meus amigos me disseram que não havia uma séria ameaça de guerra já que o regime norte-coreano sabe que não pode sobreviver. Agora, as autoridades sul-coreanas estão preparando a população para uma guerra nuclear...

Em uma situação na qual o apocalipse está no horizonte, é preciso levar em conta que a lógica padrão da probabilidade já não se aplica, necessitamos de uma lógica diferente descrita por Jean-Pierre Dupuy: “O evento catastrófico está inscrito no futuro como um destino, é claro, mas também como um acidente contingente/.../ caso ocorra um acontecimento destacado, uma catástrofe, por exemplo, não deveria ter ocorrido; no entanto, na medida em que não teve lugar, não é inevitável. Portanto, a atualização do acontecimento – o fato de que ocorra – cria retroativamente sua necessidade”.

Dupuy oferece o exemplo das eleições presidenciais francesas de maio de 1995. Aqui está o prognóstico de janeiro do principal instituto de pesquisa: “Se no dia 8 de maio próximo, a Sra. Balladur for eleita, se pode dizer que a eleição presidencial foi decidida antes, inclusive, que ocorresse”. Aplicada à recente tensão na Coreia, isto significa: Se a guerra irá explodir, será necessária e inevitável. Se a guerra não for explodir, tudo era um falso alarme. Isto, segundo Dupuy, é também como devemos abordar a perspectiva de uma catástrofe nuclear (ou ecológica): não para avaliar “realisticamente” as possibilidades da catástrofe, mas, sim, para aceitá-la como nosso destino, como inevitável e, depois, com o pano de fundo desta aceitação, devemos nos mobilizar para realizar o ato que mudará o próprio destino e inserir, assim, uma nova possibilidade na situação. Ao invés de dizer “o futuro ainda está aberto, ainda temos tempo para atuar e prevenir o pior”, se deveria aceitar a catástrofe como algo inevitável, e depois atuar para desfazer o que já está “escrito nas estrelas” como nosso destino.

O que se necessita é nada menos que um movimento antinuclear novo e global, uma mobilização mundial que exerça pressão sobre as potências nucleares e atue agressivamente, organizando protestos massivos, boicotes, etc. Deve se centrar não só na Coreia do Norte, mas também nas superpotências que assumem o direito de monopolizar as armas nucleares. A própria menção pública do uso de armas nucleares deve ser tratada como um crime, e os líderes que mostram publicamente sua disposição em colocar em risco milhões de vidas inocentes para proteger seu reinado, devem ser tratados como os piores criminosos. E mais que isso, é necessária uma mudança global em nossa postura, o que Peter Sloterdijk chama de “a domesticação da cultura animal selvagem”.

Até agora, cada cultura disciplinava/educava seus próprios membros e garantia a paz cívica e os estados estavam permanentemente sob a sombra de uma guerra potencial, cada estado de paz nada mais que um armistício temporal. Como Hegel o conceitualizou, toda a ética de um Estado culmina no mais alto ato de heroísmo, a disposição de alguém em sacrificar a vida pelo próprio Estado-nação, o que significa que as selvagens relações bárbaras entre os estados servem de fundamento da vida ética dentro de um estado.

A Coreia do Norte de hoje, com sua busca desapiedada de armas nucleares e foguetes para atacar com eles objetivos distantes, não é o exemplo último desta lógica da soberania incondicional do Estado-Nação? No entanto, no momento em que aceitamos plenamente o fato de que vivemos em uma nave espacial Terra, a tarefa que se impõe com urgência é a de civilizar as próprias civilizações, de impor a solidariedade universal e a cooperação entre todas as comunidades humanas, uma tarefa muito mais difícil pelo contínuo aumento da violência sectária religiosa e violência étnica “heroica” e a disposição para se sacrificar (e o mundo) pela causa específica de alguém.

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