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09 Setembro 2016

Cinco anos após “independência”, país está mergulhado num conflito tão selvagem quanto ignorado pelo mundo. Washington, que instigou a secessão, agora cruza os braços

“Às vezes, os Estados Unidos levam caos a outro país
atirando bombas ou invadindo.
No Sudão do Sul, nós fizemos diferente”
Stephen Kinzer, Boston Globe

A reportagem é de Vinicius Gomes Melo, publicada por Outras Palavras, 06-09-2016.

Na noite de 8 de julho, um dia antes do quinto aniversário de independência do Sudão do Sul, um confronto armado deixou 273 cadáveres estendidos na rua em frente ao parlamento, na capital Juba. A intensa troca de tiros aconteceu entre a guarda presidencial do governante do país, Salva Kiir, e seus oposicionistas comandados pelo ex-vice-presidente Riek Machar.

Ambos estavam dentro do prédio parlamentar negociando mais um cessar-fogo quando irrompeu este novo episódio de violência que já tornou-se rotina na vida do país, desde que a disputa política entre os dois, desde 2013, degenerou numa guera total que, segundo a porta-voz da missão da ONU no país, já tirou a vida de mais 50 mil pessoas, transformou quase 2,5 milhões de habitantes em desabrigados e deixou o já paupérrimo país à beira da fome generalizada. Economicamente, o conflito fez com que a inflação disparasse em quase 300% e a moeda local tivesse uma desvalorização de 90%, em 2016, praticamente colapsando a indústria do petróleo, que representa quase que toda a renda do Sudão do Sul.

A esse cenário caótico, somam-se elementos que tornam o conflito no Sudão do Sul particularmente cruel. De acordo com investigadores da União Africana, a descoberta de inúmeras valas coletivas forneceram as provas de atrocidades cometidas por ambos os lados do conflito.

“A comissão investigadora encontrou casos de violência sexual contra mulheres, cometidas pelos dois lados do conflito. Também há evidências sobre ações de extrema crueldade como mutilação e queima de corpos, a ‘drenagem’ do sangue de pessoas que acabaram de ser assassinadas para depois forçarem membros de uma etnia diferente a beberem o sangue ou comer a carne humana queimada”.

Sobre as ações no país, o The Guardian descreve uma familiar narrativa à todos nós: “Homens armados chegam no vilarejo, matam os homens, estupram as mulheres e roubam tudo o que podem antes de queimar suas casas, algumas com idosos e idosas presos dentro. Eles procuram garotas e mulheres que consideram serem as mais bonitas, forçando-as a mostrar onde está o gado das famílias e depois ordenando-lhes que carreguem as propriedades pilhadas” – muitas delas entrando na categoria de “espólios de guerra”. Desde o início do conflito, os casos de violência contras as mulheres vão de estupro coletivo à escravidão sexual, incluindo crianças.

De acordo com Anthony Lake, diretor-executivo da Unicef, o nível de violência contra crianças no Sudão do Sul é brutal: “Meninos são castrados e deixados para sangrar até a morte […] meninas de até 8 anos de idade são violentadas por vários estupradores […] crianças são amarradas e têm suas gargantas cortadas, outras são atiradas dentro de prédios em chamas […] elas também têm sido agressivamente recrutadas, em níveis alarmantes, por ambos lados do conflito. Estima-se que pelo menos 13 mil crianças têm sido obrigadas a lutar num conflito que elas não criaram”.

É verdade que, na superfície, este conflito no Sudão do Sul pareça ser um um simples clichê entre a rivalidade de dois grupos étnicos majoritários, devastando a vida de milhões de pessoas. O que talvez seja mais simples ainda nessa história é algo imutável quando se trata de guerras – seja na África, no Oriente Médio, Ásia ou Europa – ela acontece pela disputa por terra e recursos naturais.

Hollywood vai à África

O roteiro era bom demais para ser ignorado: o primeiro presidente negro da história dos EUA, conservadores religiosos, ativistas dos direitos humanos, estrelas do cinema, a necessidade de uma história de sucesso na África e a eterna luta entre vítimas cristãs e muçulmanos malvados. Essa estranha coalizão foi o núcleo duro do lobby político que em 2011 daria luz ao Sudão do Sul, o país mais jovem do planeta.

Esse nascimento veio na esteira de uma guerra civil que já durava 22 anos e havia a inerente esperança humana por dias melhores no futuro. Ou ao menos foi essa a promessa para os milhões de sul-sudaneses que não conheciam nada além de guerra.

Desde que deixou de ser uma colônia anglo-egípcia, em 1955, o Sudão — então, o maior país do continente africano — passou por duas guerras civis envolvendo o norte e o sul: a primeira de 1956 à 1971 e a segunda de 1983 até 2005. Esta última terminou em um abrangente acordo de paz que tinha a promessa por parte do governo em Cartum, no norte, de que a população nas regiões do sul do país teriam a chance de votar pela secessão ou não.

Esta seria a bala de prata que colocaria um fim a décadas de guerra, porém entre os seis anos que se passaram desde o dia da assinatura do cessar-fogo e votação em que 99% da população escolheu a independência, nunca aconteceu um verdadeiro esforço para que se aliviasse o antagonismo entre norte e sul, pois ainda que as linhas geográficas e religiosas fossem atraentes (um norte árabe-muçulmano mais poderoso que um perseguido sul negro e cristão) para tentar explicar a crise no Sudão, elas nunca foram tão simplistas assim – e como geralmente acontece, sua complexidade foi ignorada.

Também não se tentou conciliar as diferenças internas do novo país que poderiam ser um solo fértil para futuras instabilidades. “A grande mentira foi afirmar que não havia um problema étnico no Sudão do Sul, que tudo não passava de um problema político”, afirmou um oficial de alto escalão da ONU, após o conflito estourar no país, dois anos após sua independência – um conflito que tem todas as marcas de ser uma nova guerra civil.

Quando o Sudão do Sul conquistou sua independência, ele não levou somente 11 milhões de pessoas do Sudão, mas também a maior parte dos poços de petróleo do antigo país, ainda que o norte continuasse a controlar os meios para seu escoamento e exportação.

Há muitos anos existe uma disputa pela posse de terras e controle das águas entre as duas maiores etnias do país. Roubo de gado, disputas por poços d’água e juras de vingança quase sempre fizeram parte da história entre os Dinka e os Nuer.

Entretanto, essa briga por recursos sempre se manteve no contexto local, sem afetar de maneira irreparável o relacionamento entre as duas comunidades, que também tem uma história de cooperação e casamentos interétnicos.

Mas quando veio o 15 de dezembro de 2013, o conto de fadas arquitetado em grande parte no Ocidente, teve de encarar a dura realidade que olhando em perspectiva parece agora tão óbvia: isso não é um filme de Hollywood.

Meses antes de acontecer a primeira morte por esse conflito, o governo de Salva Kiir vinha acusando seu vice-presidente Riek Machar de tentar realizar um golpe de estado, e por causa disso que ele fora destituído de seu cargo, assim como grande parte de seu gabinete. Machar sempre refutou tais acusações e até hoje suspeita-se que o “contragolpe” de Kiir tenha sido uma encenação.

Todavia, quem estava com a razão à época não parece ter muita importância agora, pois a disputa política entre os dois homens fortes do Sudão do Sul transformou-se numa batalha étnica cuja obscenidade parece desafiar os limites da desumanização, que já não tem apenas a população sul-sudanesa como vítima.

Em 11 de julho desse ano, alguns dias depois do massacre em frente ao parlamento sul-sudanês descrito no começo do texto, forças governamentais ainda empolgadas com sua vitória sobre os combatentes da oposição, iniciaram um show de horror contra um complexo que abrigava assistentes humanitários estrangeiros em Juba. De acordo com a Associated Press, sobreviventes do pesadelo que se sucedeu, os soldados de Kiir estupraram diversas pessoas – homens e mulheres – espancaram norte-americanos, torturam psicologicamente as pessoas encenando suas execuções, além de assassinar um jornalista local na frente de todas as pessoas.

Os “capacetes-azuis” da missão da ONU estavam estacionados a poucos quilômetros do local e se recusaram a atender aos diversos pedidos de ajuda dos estrangeiros. A embaixada norte-americana também recebeu ligações implorando por ajuda, mas segundo uma porta-voz do Departamento de Estado, “eles não estavam em posição de intervir”. A embaixadora dos EUA na ONU, Samantha Power, exigiu que o governo sul-sudanês investigasse desse explicações sobre o ocorrido.

Porém, se em Juba as relações Estados Unidos-Sudão do Sul possam estar estremecidas, em outra capital seu relacionamento é vibrante.

O papel de Washington

Apesar de as guerras entre norte e sul do Sudão terem iniciado há mais de 60 anos, é seguro afirmar que o mundo só começou a prestar mais atenção no país quando eclodiu, no Oeste do país, o conflito em Darfur. Como escreveu uma correspondente da BBC na África, “o mundo das notícias só dá conta de uma crise no Sudão por vez”.

Darfur dominou o inconsciente popular nos EUA e impulsionou até mesmo uma aliança bi-partidária no Congresso para “salvar a região”. Barack Obama, então ainda senador, foi um de seus membros fundadores – algo que a jornalista da BBC argumenta ser um fator para o Sudão, e consequentemente o Sudão do Sul, ser uma questão pessoal para o presidente norte-americano.

Porém, o fim de seu mandato não quer dizer que o país africano será esquecido. Os EUA já gastaram mais de 1 bilhão de dólares com o Sudão do Sul, mais da metade desse valor sendo direcionado a assistência humanitária. Desde 2005, o Sudão pré-secessão já era o terceiro país que mais recebia dinheiro de Washington, ficando atrás apenas do Iraque e do Afeganistão – mais por seus campos de petróleo do que por simpatia ao regime em Cartum.

Além disso, os mais de 2 bilhões que o presidente Salva Kiir gastou, entre 2014 e o final de 2015, com consultorias de relações públicas e lobistas profissionais em Washington garantiram que o Sudão do Sul nunca se perdesse de vista na agenda da política externa dos EUA. Isso teria como objetivo, “melhorar a imagem do Sudão do Sul, manter o dinheiro assistencialista dos EUA fluido e aliviar as sanções impostas por conta das atrocidades ocorrendo no país”.

Ainda que isso não seja ilegal, parece ser sugestivo que os governos com os piores índices de violação aos direitos humanos estejam procurando cada vez mais a ajuda de poderosos grupos lobistas. Mais sugestivo ainda é o fato de que estes tenham fácil acesso à Casa Branca. Segundo uma matéria da Vice a respeito, “uma boa parcela desse dinheiro foi para a gigante no mundo do lobby o Grupo Podesta, cujo dono, Tony Podesta, é um dos maiores doadores do Partido Democrata e irmão de John Podesta, chefe da campanha de Hillary Clinton, foi chefe de gabinete de Bill Clinton e liderou a transição presidencial de Barack Obama”.

Seja como for, talvez quem melhor tenha resumido o início e a derrocada da “intervenção” norte-americana tenha sido o veterano jornalista Stephen Kinzer: “A democracia ao estilo ocidental é desconhecida ali”, ele escreveu, no Boston Globe.

“Ainda assim, um determinado grupo de americanos imaginou que poderia trazer isso ao país colocando os líderes das duas maiores etnias do país para trabalharem juntos. Ambos eram notoriamente violentos e corruptos […] O impulso nos lançarmos ao mundo e salvar aqueles quem sofrem está profundamente enraizado em nossa psique nacional. Nossa ignorância a respeito de outros países só é superada por nossa autoconfiança sem limites. Muitos dos americanos que promoveram a secessão do Sudão do Sul realmente acreditavam que estavam tornando aquela parte da África em um lugar melhor. Agora a violência e o terror alcançou níveis muito maiores daqueles que os instigaram a combater em primeiro lugar. Ao chegarem num lugar que eles dolorosamente pouco conheciam, os intervencionistas acabaram por aumentar o sofrimento humano ao invés de aliviá-lo”.

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