A democracia direta é uma ideia tão ruim assim?

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Por: André | 12 Julho 2016

“O que aqui defendo é um roteiro que nos leve a introduzir cada vez mais cotas de expressão direta nos mecanismos políticos de decisão. Um sistema misto que melhore a qualidade da democracia representativa, mas que ao mesmo tempo se coloque explicitamente o objetivo de transferir cotas crescentes de decisão para os mecanismos diretos”, escreve Amalio Rey, em artigo publicado em seu blog homônimo, 10-07-2016. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.

Quero comentar um péssimo artigo publicado na quarta-feira passada pelo El País por Jordi Pérez Colomé. É um saco de gatos de ideias desconexas tão mal escrito que a única coisa que me move a fazer esta réplica é desmontar a frágil argumentação com que se pretende justificar a contundência do título: “A democracia direta não é a solução”. Pode ser uma boa ideia que o leiam primeiro, antes de continuar, para que julguem por si mesmos/as.

Começarei dizendo o seguinte: o fato de haver referendos/consultas interessados e pouco honestos não significa que o mecanismo tenha que ser assim por natureza, como insinua Pérez Colomé com os argumentos e exemplos que usa em seu artigo. É curioso que entre os cientistas políticos que cita, não haja nenhuma opinião que faça contraponto a favor das vantagens que a democracia direta pode ter, que também existem.

O autor começa por questionar o fato de que se queira vincular a qualidade da democracia à realização de consultas ou referendos. Está bem, mas não é o único fator que deveríamos usar para medir essa qualidade, porque também importa melhorar a democracia representativa; mas é razoável pensar que a possibilidade de que os cidadãos se expressem com sua própria voz sobre temas relevantes entranha uma vantagem notável em termos de legitimidade (e do próprio processo de construção de uma auto-estima política) frente à mediação de representantes. Ceteris paribus, isto é, a igual qualidade do sistema representativo, convocar mais (e melhores) consultas diretas sobre temas relevantes deveria se traduzir em mais (e melhor) democracia.

Esclareço. Ninguém em são juízo pretende impor uma “democracia direta pura”, porque nas condições atuais não seria viável. O que aqui defendo é um roteiro que nos leve a introduzir cada vez mais cotas de expressão direta nos mecanismos políticos de decisão. Um sistema misto que melhore a qualidade da democracia representativa, mas que ao mesmo tempo se coloque explicitamente o objetivo de transferir cotas crescentes de decisão para os mecanismos diretos.

Os exemplos dados no artigo são enviesados. Por exemplo, o fato de que em uma consulta vença a opção defendida pela cúpula (como aconteceu nas eleições do Podemos e do PSOE em suas respectivas bases) não significa que seja desonesta per se e tenhamos, por isso, que colocar em dúvida o mecanismo. O que devemos discutir é como se desenham as consultas ou referendos, quem têm direito a convocá-los e sob que condições. Isso nos permitiria evitar que se realizem apenas quando forem convenientes para as cúpulas com uma finalidade “ratificativa” de uma decisão tomada, mas que possam ser impulsionadas de baixo para cima por um conjunto mínimo de promotores a qualquer momento, sejam o tema e o momento favoráveis à cúpula ou não.

Que Pedro Sánchez diga que “o referendo só transfere aos cidadãos problemas que deveriam ser solucionados pelos políticos” me parece uma das frases mais frívolas, soberbas e intoleráveis que ouvi um político dizer nos últimos tempos. Estimado secretário-geral do PSOE, a democracia, do ponto de vista epistemológico, é o contrário. São os cidadãos que transferem aos políticos aquelas decisões que não podem tomar por conta própria, isto é, que pela razão que for não podem submeter a um mecanismo direto de decisão.

O que quero dizer é que a classe política, os partidos e demais órgãos de representação são apenas uma invenção para suprir a dificuldade prática e técnica que o povo tem para decidir tudo de forma direta. O mecanismo natural, ou “nativo”, como dirá um informático, é o direto, porque para isso se chama democracia (relembro a definição: “sistema político que defende a soberania do povo e o direito do povo de escolher e controlar os seus governantes”), só que por razões de eficiência e/ou eficácia, não resta ou remédio senão confiar boa parte das decisões a intermediários. Como se vê, Pedro Sánchez teve um ataque de corporativismo profissional que é muito típico nos “especialistas” quando veem ameaçados os privilégios que o status quo lhes concede.

Diz o autor que “quando a pergunta (de uma consulta) é difícil, (os cidadãos) preferem delegar sua resolução aos políticos. Para isso são pagos”. Sou daqueles que pensam que, efetivamente, a dificuldade técnica de uma pergunta importa e é uma questão que de fato importa ter presente para avaliar se deve ser examinada por (uma grande diversidade de) especialistas em vez da população. Mas, acima disso, o que mais importa é o impacto que essa decisão pode ter na vida da população. Vamos ver: do que estamos falando? De como conseguir mais “qualidade democrática” ou do que fazer para satisfazer os instintos egoístas da classe política?

O fato de que os políticos sejam os que podem decidir “optativamente” quando e como convocar referendos é precisamente um sintoma de pobreza democrática. Que o político não goste de perder o controle, disso já sabemos. Isso acontece com todos os tipos de “especialistas”. Mas é obrigatório de um bom desenho social subordinar essa arbitrariedade à conquista de um ótimo democrático. Por outro lado, os políticos honestos, que também existem, costumam ter a suficiente humildade de reconhecer que determinadas decisões têm tamanha importância que só são legítimas por meio de consultas diretas.

O autor entra depois em uma espécie de círculo recursivo: “O organizador sempre tem a vantagem. Formula a pergunta, escolhe quem pode votar, decide como se pode votar e estabelece o dia da votação”; e, a partir disso, Pérez Colomé chega à conclusão de que as consultas “não são a solução” e fica nisso; em vez de se perguntar se o problema é a própria consulta ou como é concebida. Além disso, não devemos esquecer que tudo isso acontece também na gestão cotidiana da democracia representativa, onde o organizador (isto é, quem tem mais representação ou poder) controla até onde se pode chegar segundo seus próprios interesses. A alternativa que o status quo oferece à democracia direta está, como sabemos, cheia de defeitos. Por isso, também deveríamos colocar isso na balança se quisermos fazer um juízo justo e equilibrado dos prós e contras de ambas as opções.

Por outro lado, os plebiscitos nem sempre “são vencidos, porque as condições são postas pelo organizador”, como afirma Pérez Colomé. Há evidências de várias consultas em que o tiro saiu pela culatra. Sem ir mais longe, isso aconteceu ao próprio Cameron com o #Brexit e esteve muito perto de acontecer com o referendo na Escócia.

“A democracia ratificativa não é democracia direta” contam-nos, e estamos de acordo, mas continuamos com o viés de base: nem toda democracia direta tem que ser “ratificativa”, e isso depende de um bom desenho democrático. Que a elite política manipule mais ou menos depende das regras do jogo fixadas para a participação direta dos cidadãos na democracia.

Para concluir, gostaria de recordar que a democracia direta também pode ser exercida através de pequenos exercícios de consulta ou plebiscito sobre temas pontuais e de forma mais sistemática. Não devemos pensar apenas em eventos tão importantes como o #Brexit. Temos necessidade de mecanismos para abaratar os custos das consultas e garantir sua integridade. Também fomentar uma cultura democrática da participação, para que a população entenda que deve votar com responsabilidade, algo que, recordemos, só se aprende fazendo, ou seja, participando de consultas. Estou certo de que hoje, no Reino Unido, depois da experiência do #Brexit, a população está muito mais consciente do que significa fazer parte de um processo de democracia direta, e a partir de agora o levará mais a sério.

Esse é o caminho: que as pessoas se treinem na cultura de decidir, porque assim o farão cada vez melhor. Entregar tudo nas mãos de “empregados” como os políticos exime a população de sentir-se mais corresponsável com o fato democrático. Reduzir as consultas cidadãs a uma bronca eleitoral a cada 4 anos me parece, no mínimo, contentar-se com muito pouco.

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