“O Papa tem inimigos na cúria que estão esperando o fim do seu pontificado”. Entrevista com Marcelo Larraquy

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Por: André | 06 Abril 2016

Código Francisco é uma “reincidência” de Marcelo Larraquy, que já em novembro de 2013 interessou-se pelo impacto que o estilo Bergoglio estava provocando no mundo. Mas naquele primeiro livro sobre o pontífice argentino, Rezem por ele, com um papado de Francisco apenas começando, o eixo esteve centrado no passado deste papa “impensado”, seus conflitos com a ordem dos jesuítas e com o governo argentino e seus primeiros passos para não ficar preso aos meandros vaticanos. Agora, ao contrário, o autor se volta inteiramente à análise da forma como Jorge Bergoglio conseguiu afirmar não apenas sua liderança, mas também a agenda de uma “Igreja em saída” no mais alto dos debates mundiais. Ao mesmo tempo, a renovação interna da cúria, talvez o desafio maior, para aquele que deve enfrentar resistências ancoradas nos (maus) hábitos milenares.

Como se explica que se converteu em um líder mundial com uma habilidade política que impulsionou tanto o debate de problemas urgentes como a solução de velhos conflitos?”, pergunta-se Larraquy, impressionado com o modo como, “com sua diplomacia e discernimento”, Bergoglio conseguiu mediar a reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos, reativar a diplomacia na solução do conflito na Síria e denunciar os males socioeconômicos e ambientais que afetam a humanidade, reinserindo na agenda internacional “aquilo sobre o qual nenhum líder mundial falava”.

Marcelo Larraquy é historiador e jornalista. Conhecido como autor de vários livros sobre temáticas dos anos 1970, agora se voltou para relatar a vida e a obra do primeiro Papa latino-americano.

A entrevista é de Claudia Peiró e publicada por Infobae, 01-04-2016. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Por que um segundo livro sobre Francisco?

Este livro trata de como se está desenvolvendo o pontificado, ao passo que o anterior discorria mais sobre a que Igreja chegava este Papa. Código Francisco trata sobre que Igreja o Papa está transformando e como o Papa está também participando com sua liderança na transformação do mundo. O Papa estabeleceu uma agenda social nova em uma Igreja que não participava das relações internacionais praticamente desde 2000. Até a chegada de Bergoglio em 2013, a Igreja praticamente não tinha participação nos conflitos nem relações com as potências mundiais e Bergoglio o faz imediatamente. Isto é surpreende nele: o que reposiciona a Santa Sé e sua geopolítica é a agenda social. A partir da agenda social ele reposiciona a Santa Sé nas grandes ligas dos líderes mundiais.

A que coisa chama de agenda social?

Agenda social é tudo aquilo de que já ninguém falava – obviamente, são as implicações políticas do Evangelho –, aquilo de que nenhum líder mundial falava: os refugiados, os imigrantes, a questão ambiental, e a representação foi Lampedusa, para onde viajou no dia 13 de julho de 2013, poucos meses depois do início do seu pontificado. Ele coloca o mundo de frente com um problema que não existia; essa é a agenda social, que tem implicação política obviamente, mas também o faz com uma grande presença no cenário.

Sua irrupção no cenário mundial se deu logo depois, quando intervém no G-20 com uma carta para frear a invasão da Síria por parte dos Estados Unidos; aí começa a denunciar o que chama de Terceira Guerra Mundial em capítulos, fragmentos de guerras em diferentes partes do mundo, e em função disso faz suas alianças em busca de um equilíbrio de paz.

Por que Bergoglio teve tanto êxito? Você dizia que a Santa Sé não teve presença no cenário mundial desde 2000, mas em 2003 João Paulo II fez um esforço muito grande para evitar a guerra no Iraque, chegou inclusive a ameaçar fazer uma viagem a esse país, e quase não teve eco. Francisco, ao contrário, encontra interlocutores.

Sim, encontra interlocutores. É um mundo que mudou nos últimos 15 anos. Que passou da bipolaridade à multilateralidade e no qual o Papa estabelece alianças tanto com (Vladimir) Putin como com (Barack) Obama, em diferentes regiões. No Oriente Médio, estabelece uma aliança com Putin, e na América Latina com Obama, da qual estão se vendo os resultados a partir de Cuba.

Cuba de alguma maneira representa a nova Roma neste pontificado, porque a partir de Cuba se produz o degelo com os Estados Unidos, mas muito mais que isso. É algo que o Papa disse a Obama em sua reunião em março de 2014, segundo conta o cardeal (Jaime) Ortega de Havana, que o degelo com Cuba permitiria aos Estados Unidos uma reabertura para toda a América Latina, o que está acontecendo agora. Obama vê a maneira de criar seu legado de governo através do Papa; o vê com os imigrantes, com sua própria agenda social, com a problemática que tem. Obama está dizendo: “Minha maneira de olhar o mundo agora, de projetar o meu legado, é com a imagem do Papa na América Latina”.

De onde vem essa clareza ou pragmatismo do Papa, que lhe permite, por um lado, formular fortes críticas ao capitalismo em suas encíclicas e ao mesmo tempo ter como principal aliado o presidente dos Estados Unidos e, paralelamente, ter um bom vínculo com Putin?

São 40 anos de governo que o Papa tem atrás de si, uma experiência que vai de 1973 em diante, com o curto interregno de quando esteve afastado da condução jesuíta, que é o pior momento da sua vida, por outro lado, o que mostra até que ponto é uma personalidade de poder que vai se construindo desde muito jovem. Além disso, se bem que ele não estava em Roma, e sem fazer parte de nenhuma facção, conhecia muito bem como funcionava Roma. Ele encontra uma Igreja desprestigiada, desvalorizada na geopolítica, sem impulso para sair para fora. Francisco tira a Igreja de Roma.

O germe do pontificado é Aparecida, o encontro de bispos latino-americanos em 2007 no Brasil. Aí ele instala a ideia da Igreja em saída, aí ele ganha a liderança na América Latina e mostra diante de uma Igreja envelhecida como é a europeia que é necessário ter um novo tipo de evangelização. E não o faz somente na América Latina, mas também na Ásia, que é sua grande aposta – basicamente restabelecer as relações diplomáticas com a China –, me parece que o futuro do catolicismo aponta para a China. Bento nunca foi à Ásia em uma viagem apostólica, por exemplo, e isso marca o contraste entre o eurocentrismo de Ratzinger e o governo de periferia e de Igreja em saída que Francisco coloca em prática: aí está a chave para que os líderes mundiais prestem atenção nele e ele tenha influência neles.

Bento tem uma personalidade muito diferente da de Francisco e, no entanto, fica a sensação de que ele teve bastante a ver com a habilitação de Bergoglio como candidato ao papado...

Sim, ele habilita a Igreja latino-americana, inclusive vem a Aparecida, em São Paulo, e em seu discurso, a única coisa que pede é que se coloque o centro em Deus; isto vem da problemática da Teologia da Libertação que buscava diferentes instrumentos das ciências sociais ou da economia marxista para a análise da realidade social; esta não era a opção de Bergoglio nos anos 1970, porque ele se inscrevia à Teologia do Povo, à fé encarnada no povo, um povo que se evangeliza a si mesmo com sua própria fé, há séculos.

O Papa sempre disse que a América Latina é o continente católico desde a conquista espanhola. Bento vê que a Igreja europeia, dividida em facções na Secretaria de Estado, mais o secularismo e o relativismo que existem na Europa, não pode oferecer essa renovação; então, é Bento quem de alguma maneira põe como pré-condição colocar Deus no centro da análise da espiritualidade e da realidade social, que, obviamente, a Igreja latino-americana aceita, mas também a inclusão de uma agenda social para a evangelização.

Mal começou o papado de Bergoglio, houve grande receio envolvendo sua segurança; depois pareceu dissipar-se essa inquietude. Isso significa que não tem inimigos?

Ele tem inimigos internos na cúria que estão esperando o fim deste pontificado para voltar ao anterior, porque talvez não se saiba bem para onde vai, mas não há como retroceder. Os fiéis, a geopolítica mundial, não aceitariam uma liderança diferente, um próximo Papa muito diferente de Bergoglio. Parece-me que esse é seu legado, ele estabelece uma maneira de ver a Igreja e a participação que é muito difícil retroceder. É muito difícil que o próximo Papa seja europeu; não é possível fazer previsões, mas do jeito que está estabelecido o mapa da Igreja...

O certo é que culturalmente é muito difícil mudar o mundo eclesiástico vaticano; eles se acostumaram ao que Francisco chama de vida de príncipes, com apartamentos de centenas de metros quadrados, palácios, prebendas que têm. Isso afastou as pessoas da Igreja. Eu creio que o Papa não o faz por humildade: quando transfere a sede de governo para uma peça de 50 metros quadrados está mostrando “olhem o que é a cúria, olhem como eu vivo e como eles vivem”, e os está esvaziando de poder. Como em todo o Estado onde trabalham milhares de pessoas, existiu um vazamento, mas justamente esse vazamento foi favorável ao Papa.

O que houve por trás desse vazamento? Pode alguém ter querido “ajudar” Francisco revelando as irregularidades financeiras da cúria?

Bom, (mons. Lucio Vallejo) Balda, que foi o autor do vazamento, está sendo julgado e provavelmente será condenado. Não creio que o Vaticano tenha instrumentado isto através de Balda. Creio que ele quis mostrar como estavam roubando o dinheiro da Igreja, a corrupção, a forma como vivem, quanto ganham pelas canonizações... mas é uma questão de segurança interna, se cada um revelar um documento nestas internas... Nenhum Estado pode sobreviver a isso nem tolerá-lo.

Possivelmente, o Papa deve ser um dos poucos líderes mundiais que se saiu bem em uma gravação secreta. Aí esteve a credibilidade de sua mensagem quando disse: vamos fazer três orçamentos, vamos ter transparência... Não é uma Igreja de sinais vazios que o Papa está tratando de dirigir, mas que através desses gestos se busca dar consistência a uma mensagem que no meu livro Código Francisco defino como mais político do que o do pontificado de Bento e do que a última etapa de João Paulo II.

Pois bem, o que emerge do vazamento, além da corrupção, é um desgoverno total das finanças vaticanas...

Sim, o dinheiro dos aluguéis de imóveis da Igreja em Londres, para dar apenas um exemplo, ficava no ar. Mas viemos de uma Igreja que lavava dinheiro... No IOR [Instituto para as Obras de Religião, o banco vaticano], a máfia italiana ou novaiorquina lavava seu dinheiro e depois o levava para a Suíça; era uma Igreja que dava cheques sem traçabilidade. Estas práticas persistiram apesar das tentativas de Bento de dar transparência.

Eu dou conta no livro de como foi toda a mudança com a reforma financeira, com essa Igreja que começa a buscar um ordenamento interno através de Francisco, o que não foi fácil. João Paulo não estava metido no governo da cúria. Por trás de sua grande liderança, massiva e de popularidade que tinha, a cúria romana se autogestionava. Então, a dupla tarefa de Francisco é governar Roma e governar fora de Roma e me parece que isto é o novo e o que eu queria descrever neste livro, agora que as características de seu pontificado já estão mais definidas.

Qual é a sua opinião sobre o olhar argentino para o que Bergoglio está fazendo?

Os argentinos, ao menos os analistas políticos, não conseguem sair do esquema kirchnerismo-antikirchnerismo; estão prisioneiros dessa visão. Então, se o Papa envia um terço a uma prisioneira como é Milagro Sala veem isso como um gesto grandiloquente, e lhe escrevem cartas de indignação, parece-me que falam mais para os seus ouvintes de Barrio Norte do que vendo a geopolítica papal. O que ele colocou no centro de seu papado é justamente a misericórdia.

A maioria dos analistas políticos vê o Papa como se estivesse na Catedral, e, basicamente, os “indignados” com o Papa acreditam que Bergoglio está na Catedral. E assim como os kirchneristas se enfadavam com ele porque na homilia dizia isto ou aquilo, agora se enfadam com Bergoglio porque dizem que participa da política. A Igreja participa da política há dois mil anos. Quando ouço os políticos dizer que a Igreja não tem que participar da política... essa é uma visão, um prisma muito delimitado sobre o Papa e que não está à altura do seu pontificado.

Dá a impressão de que muitos não percebem o alcance do que Bergoglio está fazendo no mundo...

Meu livro procura analisar como se constrói uma liderança mundial, os problemas que enfrenta e as tensões internas que viveu, as ambiguidades, as dificuldades pessoais e como são vividas no Vaticano suas tentativas de reforma da Igreja. É um livro que busca mostrar de um modo mais universal a liderança do Papa.

Obama escolheu homenagear San Martín na Catedral, quando habitualmente os chefes de Estado que nos visitam o fazem na Praça San Martín. Isso pode ser lido como um gesto de reconhecimento a essa liderança de Francisco?

É uma mensagem direta de sua aliança com o Papa. Obama vê também a oportunidade de ter um aliado com boa imagem no mundo hispânico. É importante ver que a Santa Sé rompe sua aliança com o Partido Republicano, uma aliança histórica que data da Guerra Fria, com (Ronald) Reagan e que continuou com (George) Bush e que teve uma interrupção com a guerra com o Iraque, em 2003. De qualquer modo, em 2004, a Santa Sé continuou apoiando Bush em detrimento de Kerry. E Kerry é justamente o primeiro católico democrata que após 30 anos visita a Santa Sé em 2014. Também aqui há uma mudança de aliança proposta por Francisco e que Obama aceita; um Obama que, ademais, não está sujeito a eleições e está construindo o seu legado.

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