14 Março 2024
Se observarmos os discursos dos líderes europeus, parece que esta não é mais uma guerra dos ucranianos, mas sim uma guerra dos "europeus", cujas consequências físicas são sofridas vicariamente pelos ucranianos.
A reportagem é de Julio Zamarrónk, publicada por El Salto, 10-03-2024.
Em 2012, a editora Penguin Books publicou "The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914" (Os sonâmbulos: como a Europa foi para a guerra em 1914). Este volume detalhado de história de mais de 700 páginas de Christopher Clark se tornou um sucesso de vendas inesperado e foi revisado e citado em numerosos meios de comunicação como um aviso, às vésperas do centenário da Primeira Guerra Mundial, de como os governos, alheios às consequências de suas próprias ações, conduziram a si mesmos – e principalmente suas populações – ao matadouro. Antes que as tesouras cortassem a fita de seda do primeiro ato do aniversário, no final de novembro de 2013, começaram os protestos do Euromaidan em Kiev. O resto, como dizem, é história. Uma história que agora está sendo escrita com ferro e sangue. Talvez nem os políticos nem os meios de comunicação europeus tiveram tempo de ler o livro de Clark que tanto recomendavam.
Para a União Europeia, a Ucrânia se tornou um terreno de areias movediças: quanto mais se move nelas, mais afunda em suas próprias contradições. Já vimos algumas amostras. No final de fevereiro, por exemplo, a França apoiou a proposta da Estônia de criar eurobônus para financiar com 600 bilhões de euros a indústria de defesa europeia nos próximos dez anos. Os mesmos eurobônus que, na época, lembre-se, foram negados para o resgate da Grécia, agora não são apenas uma possibilidade, mas uma necessidade. A Europa, para citar outro exemplo, não pode moralmente importar gás e petróleo de um estado autocrático como a Rússia, que viola os direitos humanos e trava uma guerra contra seus vizinhos, mas pode importá-los do Azerbaijão, um estado autocrático que viola os direitos humanos e trava uma guerra contra seus vizinhos. A guerra faz milagres.
Há alguns dias, o primeiro-ministro da Eslováquia, Robert Fico, deu o alarme ao revelar antes de uma reunião de chefes de estado e de governo europeus em Paris que alguns estados membros estavam considerando enviar tropas à Ucrânia com base em acordos bilaterais de defesa. O anfitrião da cúpula confirmou horas depois nesse mesmo dia que a possibilidade estava, de fato, sobre a mesa. "Faremos o necessário para garantir que a Rússia não possa ganhar esta guerra", afirmou o presidente da França, Emmanuel Macron. "Nada deve ser excluído", acrescentou. Com exceção da Lituânia – cujo ministro das Relações Exteriores, Gabrielius Landsbergis, declarou que era "uma iniciativa [...] que valia a pena considerar" – e da Estônia, o restante dos participantes – incluindo o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez – assim como os Estados Unidos e o Reino Unido, rapidamente se distanciaram da proposta. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, foi contundente e assegurou que "nesse caso, não teríamos que falar sobre a probabilidade, mas sobre a inevitabilidade" de um conflito direto entre a OTAN e a Rússia.
O presidente francês, e aqueles que nos meios de comunicação têm defendido sua proposta nos últimos dias, argumentaram que nesta guerra outras linhas vermelhas foram cruzadas no que diz respeito ao envio de armas para a Ucrânia. Embora não esteja formalmente em guerra com a Rússia, a União Europeia (UE) fornece à Ucrânia assistência na forma de armamento, instrução para suas tropas, inteligência e ações diplomáticas e econômicas contra seu rival. Em declarações ao Financial Times, um funcionário de defesa europeu expressou, sob a condição de anonimato, o que muitos outros até agora suspeitavam: "Todo mundo sabe que há forças especiais europeias, apenas ainda não foi oficialmente reconhecido". Em um deslize, o chanceler alemão, Olaf Scholz, revelou que tropas britânicas estão ajudando a Ucrânia no terreno a disparar os mísseis que lhe foram entregues. O Diretório de Inteligência da Ucrânia (HUR) foi obrigado a desmentir a informação e afirmou que os estrangeiros que combatem na Ucrânia são voluntários, embora uma vazamento de documentos secretos americanos em abril de 2023 tenha revelado a presença de 97 soldados de forças especiais europeias, incluindo 50 britânicos. De acordo com o The Guardian, essas unidades "realizam operações secretas, bem como operações de espionagem e reconhecimento, e estão entre as organizações mais sigilosas do exército britânico", e "ao contrário dos serviços de inteligência, as forças especiais não estão sujeitas a supervisão parlamentar externa".
Ninguém que defendeu a proposta de Macron lembrou, ou quis lembrar, que cada ação diplomática ou econômica contra os interesses russos teve uma resposta simétrica ou assimétrica, que cada novo envio de armamento foi respondido pela Rússia com uma escalada militar. O embaixador lituano em Vilna – e ex-ministro das Relações Exteriores – Linas Linkevicius, jogou gasolina no fogo ao escrever em sua conta pessoal do Twitter que "após a integração da Suécia na Aliança Atlântica, o Mar Báltico se tornou um mar interno da OTAN: se a Rússia ousar desafiar a OTAN, Kaliningrado será 'neutralizado'". E ele acrescentou: "As falsas acusações anteriores da Rússia de que estava cercada pela OTAN estão se tornando realidade".
"Quando se fala sobre a origem do conflito atual, é importante lembrar que os aspectos-chave dos anos 80 e 90 foram amplamente apagados da consciência pública nos EUA e na Europa pela propaganda estatal e pela mídia em massa", escreveu Anatol Lieven no The Nation pouco antes das declarações de Linkevicius. "Se alguém tivesse defendido então uma estratégia que implicasse a entrada da Ucrânia na OTAN e a expulsão da Frota do Mar Negro russa de Sebastopol, até mesmo os falcões entre os analistas ocidentais teriam considerado isso uma loucura e um caminho seguro para a guerra", opinou Lieven, "mas a maneira como a percepção deste projeto fantasticamente perigoso mudou de ser uma loucura para algo normal – em Washington e Londres, mas não, é claro, em Moscou – é um exemplo assustador do fracasso da análise estratégica séria e independente no Ocidente, que decorre, em parte, da queda da memória histórica até a médio prazo".
"Com o apoio de nossos aliados ou sem ele, não devemos permitir que a Rússia vença", afirmou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em seu último discurso em Estrasburgo. Como vimos, Macron também advertiu que "a Rússia não pode vencer esta guerra". "Não permitir que a Rússia vença" é o novo mantra das elites europeias. Em meio a esse ruído de sabres enferrujados, é conveniente fazer algumas perguntas sobre essa histeria militar súbita.
Quando falam em "ganhar" ou "perder", os líderes europeus provavelmente não estão pensando nos ucranianos: uma "vitória" russa seria, de fato, uma "derrota" para o prestígio da União Europeia, e para eles pessoalmente. Sua superioridade moral para com a Ucrânia foi, aos olhos da opinião pública, questionada com seu apoio às ações de Israel em Gaza, seus discursos sobre uma vitória rápida e humilhante sobre a Rússia se chocaram contra o muro da realidade.
Alguns interpretaram o discurso de Macron em termos internos – considerando as iminentes eleições europeias, para as quais as pesquisas de intenção de voto preveem uma vitória clara da Agrupação Nacional (AN), o partido de Marine Le Pen –, outros o fizeram em termos europeus – como uma tentativa de tirar, com o apoio da Europa Oriental e das repúblicas bálticas, a liderança da UE de uma Alemanha que enfrenta dificuldades econômicas e, ao mesmo tempo, contrabalançar a imagem de declínio que a França carrega há décadas –, mas, somado ao discurso de Von der Leyen em Estrasburgo – "a guerra não é impossível" – e outras declarações de líderes europeus, também pode-se afirmar, razoavelmente, que se trata de uma demonstração da possível "europeização" do conflito mencionada por Wolfgang Streeck no ano passado.
Aparentemente, essa "europeização" contaria com o apoio, embora não a participação, do Reino Unido, cujo chefe das forças armadas manifestou indiretamente sua distância de Bruxelas na mesma semana do discurso da presidente da Comissão Europeia: "Não estamos à beira de uma guerra com a Rússia, não estamos prestes a ser invadidos, ninguém no Ministério da Defesa está falando sobre recrutamento no sentido tradicional do termo", esclareceu o almirante Tony Radakin.
"A guerra tem sido apenas um desastre para a Ucrânia, e quando os Estados Unidos finalmente propuserem iniciar negociações, a Ucrânia terminará com um acordo muito pior do que teria obtido se tivesse trabalhado para evitar que as hostilidades começassem em primeiro lugar", escreveu o comentarista político americano Joe Costello. No entanto, ele continua, "há dois anos, os principais cérebros militares americanos grasnavam que essa guerra seria rápida, que a Rússia estava acabada". Costello mencionou em seu artigo um artigo do Wall Street Journal intitulado 'Alemanha deveria ter ouvido Trump' para abordar as consequências que o conflito está tendo para Berlim: "É engraçado porque, além da Ucrânia, ninguém incorreu em custos maiores nesta guerra do que a Alemanha. O principal argumento do artigo é que Trump, como presidente, advertiu os alemães sobre a compra de gás russo. Trump estava errado. Para os alemães e para os russos, era melhor se aliar pacificamente, mas isso não estava nos interesses da segurança nacional americana e agora a Alemanha dobrou a aposta em seu erro tornando-se extremamente dependente do gás natural liquefeito (GNL) dos Estados Unidos". A Dinamarca encerrou neste mês sua investigação sobre a explosão do gasoduto Nord Stream depois que a Suécia fez o mesmo. Sua conclusão é que o gasoduto foi sabotado, embora a investigação não tenha sido capaz de atribuir a autoria do atentado. O porta-voz do Kremlin classificou a situação como "próxima do absurdo": "Por um lado, reconhecem que houve um sabotagem deliberada, mas por outro lado, não prosseguem com a investigação", disse Peskov. Cui prodest? A UE aumentou em 119% suas importações de GNL dos EUA no ano do atentado.
Como seria essa "europeização" do conflito se os EUA se retirarem de uma forma ou de outra dele é algo que o historiador da União Soviética e da Rússia Stephen Kotkin avançou em uma entrevista à revista The New Yorker no verão passado. O que Kotkin propunha naquela entrevista era que a Ucrânia aceitasse concessões territoriais em troca de garantias de segurança e a incorporação do território restante à UE, estabelecendo um paralelo com a Guerra da Coreia: "Se você observar o resultado da [conflito] Coreia do Norte-Coreia do Sul, é um resultado terrível", explicou o historiador. "Ao mesmo tempo", continuou, "é um resultado que permitiu à Coreia do Sul florescer sob as garantias de segurança e proteção dos Estados Unidos".
Segundo Kotkin, "se houver uma Ucrânia, não importa quanto dela (80%, 90%) que pudesse florescer como membro da União Europeia e que pudesse ter algum tipo de garantias de segurança – seja a entrada como membro de pleno direito na OTAN, ou um acordo bilateral com os EUA, ou um multilateral que incluísse os EUA, Polônia e as repúblicas bálticas e os países escandinavos, potencialmente –, isso poderia ser considerado uma vitória na guerra". Mais recentemente, o cientista político búlgaro Ivan Krastev levantou uma ideia semelhante, substituindo a Coreia do Sul pela Alemanha ocidental na comparação.
A proposta de Macron se encaixaria de certa forma nessa proposta de "coreanização", já que ofereceria a Kiev garantias de segurança e sua integração de fato como periferia da UE, e, ao mesmo tempo, os estados da UE que participassem dessa operação poderiam apresentar a entrada de suas tropas como uma "vitória": uma mostra de apoio à Ucrânia e uma exibição de músculo militar independente de Washington – ainda mais se as recentes tensões na Transnístria se resolverem a favor da Moldávia em um cenário semelhante ao de Nagorno-Karabakh, como acredita o jornalista Leonid Ragozin.
Por sua vez, a Rússia poderia conviver, até certo ponto, com essa solução a curto prazo, assim como fez com tantos outros "conflitos congelados" em sua periferia. O cientista político americano John Mearsheimer já levantou a hipótese de que o objetivo de Moscou nesta guerra não é ocupar todo o país, mas sim controlar efetivamente os quatro oblasts anexados em 2022 (Donetsk, Lugansk, Jersón e Zaporiyia), e, talvez, outros quatro (Odessa, Mikolayev, Dnipropetrovsk e Kharkiv), que lhe permitiriam fechar o acesso da Ucrânia ao mar. Nos documentos das negociações mantidas em 2022, a Rússia solicitava a neutralidade da Ucrânia – embora nada mencionasse sobre sua entrada na UE –, que as potências ocidentais deveriam garantir, e a limitação das tropas e armas do exército ucraniano, especialmente os mísseis, cujo alcance deveria ser limitado a 40 quilômetros. A Rússia não estava disposta a negociar o status da Crimeia, mas deixava a questão de Donbass sujeita a negociação posterior. Segundo uma análise do Wall Street Journal, o documento "parece estar vagamente baseado no tratado de 1990 que criou uma Alemanha unificada, no qual as tropas da União Soviética abandonaram a Alemanha Oriental com a condição de que o país renunciasse às armas nucleares e limitasse o tamanho de seu exército. (...) Se a Ucrânia e o Ocidente concordassem em negociações de paz hoje, provavelmente seguiriam as mesmas linhas, além do território anexado", observou Ragozin. "Quanto mais esta guerra durar, mais território: essa é a posição negocial básica do Kremlin".
A própria guerra talvez tenha se tornado a melhor evidência das dificuldades que o governo russo enfrenta para manter o controle dos territórios que capturou – mesmo que a vitória do Partido das Regiões nesses territórios, que defendia uma abordagem pró-Moscou, nas últimas eleições legislativas para toda a Ucrânia (realizadas em 2012) parecesse indicar o contrário – assim como para avançar para outros com seus respectivos grandes centros urbanos. Moscou também não parece demonstrar muito interesse no restante da Ucrânia, cuja ocupação, com uma população abertamente hostil à Rússia, seria um problema ainda maior. Em outras palavras, a Ucrânia se tornaria um novo estado báltico: um país da periferia da UE politicamente conservador, fervorosamente antirrusso e economicamente dependente de Bruxelas e Washington.
É claro que, sem acordos posteriores que ajudem a reduzir a tensão entre a UE e a Rússia, os esforços de uma parte para desestabilizar e desgastar a outra continuariam. "É muito possível que a anexação dos novos territórios à Federação Russa não seja estável", escreve o jornalista Rafael Poch-de-Feliu, pois "o que restar da Ucrânia se encarregará de organizar a instabilidade nesses territórios ocupados com a ajuda da OTAN, forçando a instalação de administrações policiais e 'antiterroristas' russas com a habitual gama de violência, ataques, tortura e desaparecimentos". Depende de como, continua, "será criado um amplo terreno para o desenvolvimento de ataques, atentados e assassinatos pessoais pelos serviços secretos ucranianos com ajuda ocidental, especialmente britânica, contra personalidades russas e 'colaboracionistas' [...] tanto nesses novos territórios incorporados quanto em toda a Rússia", o que "poderia endurecer significativamente o clima político interno no país e transformar uma situação mais ou menos congelada em um câncer para a Rússia".
Por outro lado, a integração da Ucrânia na União Europeia, mesmo que não adote a forma de membro de pleno direito, seria já por si só, isto é, ignorando as condições de guerra, suficientemente desestabilizadora para o bloco, sem necessidade alguma de intervenção por parte da Rússia. Já foi um dos motivos que levaram aos protestos dos agricultores na Europa Oriental, em particular na Polônia, onde as manifestações atingiram a própria fronteira com a Ucrânia. "Os agricultores têm exigido mais proteções contra as importações da Ucrânia", observou Wolfgang Münchau no EuroBriefing ao lembrar que a proposta de estender a flexibilização das normas aduaneiras ao campo ucraniano conta com a oposição da Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária e Eslováquia, e que, em resposta a essa mesma oposição, a Comissão Europeia já freou as importações de carne de aves, ovos e açúcar se estas excederem os níveis de 2022-2023.
Neste ponto do artigo, um leitor perspicaz certamente terá se perguntado: "E onde está a Ucrânia em toda essa história?" A "agência" e "autodeterminação" dos ucranianos, tão reivindicadas por alguns think tanks e meios de comunicação, são, paradoxalmente, ignoradas com uma regularidade espantosa. Sua opinião foi substituída pelo que Carl Beijer chamou de "o complexo influenciador ucraniano", a presença na mídia e redes sociais de personagens ligados a redes dependentes da ajuda ocidental cuja opinião é, logicamente, tendenciosa e pouco representativa. "Em geral, a norma tem sido insistir que todo mundo no país apoia esta guerra e rejeita uma solução diplomática", escreve Beijer, "daí uma das frases mais comuns dos falcões é exigir que os críticos 'falem com um ucraniano': assim, pode-se apagar e silenciar os ucranianos que não se encaixam nesse estereótipo, e pode-se ignorar todos esses incômodos problemas como a livre expressão e o direito à objeção de consciência, todos esses condenados direitos humanos que tão frequentemente se interpõem a uma boa guerra".
Se atentarmos aos discursos dos líderes europeus, pareceria que esta já não é uma guerra dos ucranianos, mas uma guerra dos "europeus" cujas consequências físicas são vicariamente suportadas pelos ucranianos. Ninguém expressou isso melhor do que o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitro Kuleba, no passado mês de janeiro em Davos: "Nós oferecemos o melhor acordo possível: não sacrifiquem seus soldados, nos deem armas e dinheiro e nós terminaremos o trabalho".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ucrânia, as areias movediças da União Europeia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU