27 Março 2024
Um navio vindo do Brasil com 19 mil bois cheios de fezes e urina infestou a Cidade do Cabo e reabriu o debate sobre uma prática que no ano passado gerou quase meio bilhão de dólares naquele país.
A reportagem é de Joan Royo Gual, publicada por El País, 11-03-2024.
O Brasil é o maior exportador de carne do mundo. O que muitos não sabem é que essa carne chega a vários cantos do mundo na forma de animais ainda vivos. Dezenas de milhares de bois, em particular, saem dos portos brasileiros todos os anos e passam semanas amontoados em alto mar antes de serem abatidos. A maioria das terras nos países do Oriente Médio, que querem que o gado viva para garantir que o rito halal seja seguido, que exige que o animal fique de frente para Meca e seja abatido por um muçulmano, com um corte de faca na garganta. Em fevereiro, um desses navios deixou o sul do Brasil e fez escala para reabastecimento na Cidade do Cabo. A cidade sul-africana foi rapidamente tomada por um forte fedor que chamou a atenção dos seus habitantes. A prefeitura detectou que a origem estava no porto. Uma ONG local obteve autorização judicial para entrar no barco e constatou o estado deplorável em que foram encontrados 19 mil bois, sobretudo devido ao nível de sujidade. Veterinários da organização tiveram que sacrificar oito animais, enquanto outros foram encontrados mortos. No dia 20 de fevereiro, o navio partiu para o Iraque, conforme previsto, após reabrir um antigo debate sobre a continuidade desta prática comercial.
A diretora jurídica do Fórum Nacional de Defesa e Proteção Animal do Brasil, Ana Paula Vasconcelos, disse por telefone que o incidente com o barco retrata o que implica a exportação de animais vivos. “Foi uma cena de horror pelo extremo acúmulo de fezes e urina. Os animais estavam em cima dos próprios excrementos, com animais mortos, doentes e feridos (…) é uma atividade que tem que parar imediatamente porque é prejudicial para todos e nem sequer se justifica financeiramente.”
O Brasil exporta gado vivo há mais de 20 anos. A lei determina que, antes de iniciar a viagem, os animais permaneçam pelo menos uma semana num recinto onde seja verificado o seu estado de saúde e sejam realizados exames e verificações veterinárias. Exige também que, para o transporte terrestre, os animais não passem mais de 12 horas num caminhão e, no caso das viagens aéreas, que consigam ficar de pé com um mínimo de dez centímetros acima da cabeça. No entanto, não são estabelecidos requisitos específicos para passeios de barco, tamanho dos currais ou duração da viagem. Normalmente são várias semanas. Os ativistas afirmam que a maioria dos barcos são muito antigos e não cumprem os requisitos mínimos de segurança para os animais. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que reúne as principais empresas do setor, recusou-se a participar deste relatório.
O Brasil é um dos maiores produtores de carne do mundo e o segundo maior exportador de gado vivo , superado apenas pela Austrália. No ano passado, exportou animais no valor de 488 milhões de dólares, cerca de 198 mil toneladas. Isso representa um aumento de 154% em relação a 2022. Mais da metade desses bois acabaram na Turquia. Os outros países que mais importaram foram Iraque, Líbano, Egito e Jordânia, segundo informações do Ministério da Agricultura e Pecuária, que assegura que se trabalha para expandir os mercados compradores.
Enquanto isso, ativistas brasileiros lutam há algum tempo para acabar com essa prática. No ano passado, conseguiram que o Tribunal a proibisse, mas foi uma decisão provisória que não entrará em vigor até que um tribunal de recurso decida. O juiz pediu em sua decisão que, já que o Brasil tem a “vergonha eterna” de ser o último país da América a abolir a escravidão, que pelo menos não seja o último a “respeitar efetivamente os direitos dos animais não humanos”. Ao mesmo tempo, cresce a pressão para legislar sobre a questão. Já existe um projeto de lei que proíbe o transporte de animais vivos, mas ainda não foi votado, e o parlamento brasileiro, com forte presença de parlamentares com interesses no poderoso setor agrícola, não oferece um cenário muito promissor.
O debate reaparece sempre que há um incidente. Nos últimos anos, ocorreram pelo menos dois outros acidentes envolvendo gado exportado vivo. Em 2012, mais de 2.000 animais com destino ao Egito morreram sufocados durante a viagem porque o sistema de ventilação do navio falhou. Em 2015, um barco saiu do estado do Pará, próximo ao delta do Amazonas, com destino à Venezuela. Tinha a bordo 5.000 bois e 700 toneladas de petróleo. Naufragou muito perto da costa, deixando milhares de corpos debaixo d'água, outros encalhados em praias próximas e um problema ambiental gravíssimo.
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Lotado em alto mar há semanas: é assim que funciona a polêmica exportação de gado vivo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU