14 Março 2024
"A única arma com a qual é permitido marchar para a guerra é a Palavra e é a própria Palavra que traz a guerra onde reina a paz".
O artigo é de Flávio Lazzarin, padre Fidei Donum, italiano, atuando na diocese de Coroatá, Maranhão.
O artigo foi publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 27-02-2024.
Uma primeira leitura do texto-base da Campanha da Fraternidade 2024 me deixou estranhamente confuso e preocupado. O documento, declaradamente inspirado pela encíclica Fratelli tutti de Papa Francisco, me pareceu, porém, distante da simplicidade e clareza pastoral do documento papal. A primeira surpresa foi a abordagem filosófico-teológica do termo “amizade social”, quando a encíclica não propõe uma reflexão sobre um conceito, mas, pelo contrário, apresenta a prática amorosa da amizade política na biografia de São Francisco de Assis. Na encíclica está em primeiro plano o testemunho do amor misericordioso de Jesus, que não precisa do aval de Homero, Sócrates, Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, em alternativa às filosofias de Hobbes e Schmitt.
A encíclica está emoldurada pela memória de São Francisco de Assis, "e também por outros irmãos que não são católicos: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi e muitos outros. Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos. Refiro-me ao Beato Carlos de Foucauld" (286)*. "O seu ideal duma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão, e pedia a um amigo: 'Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos'. Enfim queria ser 'o irmão universal'. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amem” (287-288).
Não conceitos, mas testemunhas, mártires, inspiram a espiritualidade de papa Francisco. São todas figuras martiriais, em que a Cruz vitoriosa de Jesus se manifesta em pequenos gestos de alcance universal e em biografias marcadas pela derrota. Figuras em que a mais íntima e escondida interioridade se traduz imediatamente em universalidade, em que a amizade com os seres humanos coincide com amizade com Deus.
O que me interpelou inicialmente foi a impressão que os autores do texto-base privilegiam uma abordagem epistemológica, que se mostra um tanto irrelevante quando confrontada com a luz que a Palavra de Deus nos oferece para testemunhar a fraternidade nos caminhos concretos da história.
Com efeito, ao número 18 do texto-base, encontrei uma consideração que me deixou perplexo: Papa Francisco estaria “conjugando os conceitos de amizade e sociedade, retomando a amizade social aristotélico-tomista”. Fiz um esforço para encontrar explicitamente na encíclica esta herança filosófica, mas não encontrei, a não ser na mera menção da “amizade social”, cujo crédito tomista, porém, não é testemunhado por nota de rodapé e que não consigo lembrar citada no Compendio da Doutrina Social da Igreja. Parece ser mesmo uma vaga lembrança do papa, que os comentaristas se apressaram a caracterizar como citação tomista.
Outra reflexão me ocorreu diante duma omissão para mim inexplicável dos autores. Com efeito, no ‘Julgar” do texto-base Genesis, 4, 1-9, “onde está Abel, teu irmão”, que é citado também por papa Francisco, substitui a longa citação do texto e da exegese da parábola do bom samaritano, Lucas 10, 25-37. Esta Palavra é tão central para a compreensão da encíclica a ponto de ocupar todo o segundo capítulo, os parágrafos de 56 a 86.
Assim o primeiro impacto gerou uma pergunta polémica, que me assustou um pouco: será que ignorar a importância do bom samaritano na encíclica e ignorar a sua centralidade na profecia deste pontificado é uma forma de se distanciar do estilo e da prática pastoral de papa Francisco?
Será que a invenção de uma tradição aristotélico-tomista, como os autores parecem sugerir, quer substituir a profecia de Francisco, que põe as vítimas da violência, da injustiça e da desigualdade como protagonistas, interlocutores prioritários, amigos privilegiados dos seguidores de Jesus?
Num segundo momento, descartei esta interpretação tendencialmente polemica. Após mais uma leitura, me dei conta que, talvez, mais simplesmente, a análise das conjunturas mundiais e nacionais dos autores do texto-base se omite em refletir sobre as teologias subjacentes e explícitas na “guerra mundial em pedaços” e, sobretudo na polarização entre nova direita e esquerda na sociedade brasileira, que não é somente nossa, mas está perigosamente presente e atuante em todas as sociedades ocidentais.
Guerra mundial e crescimento do “fascismo” não seriam para mim simplesmente dados da longa listagem dos males da história humana a serem salvos por caminhos de fraternidade, mais seriam, inseparavelmente, o elemento-chave, mais teológico e menos econômico, que motiva e mobiliza as subjetividades na gravíssima crise que estamos vivendo.
É algo que caracteriza as subjetividades num conflito que vê de um lado os saudosos dos tempos ordenados e harmoniosos (sic) das cristandades europeias, coloniais, pan-russas, aliados talvez inconscientes dos muçulmanos defensores das teocracias e da Jihad e os exércitos dos que defendem os valores tradicionais – Deus, Pátria, Família – afirmando um Cristo guerreiro e armado contra o Anticristo da modernidade com as suas novidades corruptas e pervertidas, com a suas multiplicação dos gêneros e a decadência da família.
Do outro lado destas posturas regressivas, está a absoluta maioria dos humanos, que se sente constitutivamente ocidental e aceita acriticamente todos os mandamentos de uma civilização em crise ecológica e política. Deste lado também estão aqueles que criticam, denunciam e combatem as injustiças, as violências e a desigualdade do sistema. Outros atores são o que sobrou dos partidos e das organizações de esquerda, perdidos em ilusórios caminhos governamentais de contenção da extrema direita ou em estéreis e inconsistentes manobras de pseudo-oposição. Esquerda que perdeu, há muitas décadas, as suas potencialidades anti-sistêmicas. Não podemos esquecer uma minoria importante, que diante da declaração de guerra ao Ocidente de Putin-Kiril, junto com China, Coreia do Norte, Iran, Hamas e Hezbollah e diante do neofascismo das sociedades ocidentais, não ignora a crise civilizacional que estamos atravessando, mas do Ocidente salva e protege, pelo menos, o frágil e amplamente incompleto sistema democrático, ameaçado pelas atitudes autoritárias e ditatoriais dos tradicionalistas externos e internos.
Faz parte deste lado também uma minoria de cristãos, junto com papa Francisco, que renunciaram ao seu papel de censores e justiceiros dos comportamentos humanos e, no impasse entre a fidelidade a moral magisterial e a fraternidade, silenciam a doutrina e acolhem as pessoas, sem julgar, apostando que a misericórdia, espoliada de qualquer presunção, pobre e desarmada, seja o único remédio.
Existe um conflito, existem inimigos e esquecer a centralidade deste conflito do nosso tempo, significa ignorar o único e verdadeiro perigo, o desafio que pode impedir, apesar do nosso desejo, qualquer caminho de fraternidade e decretar a nossa verdadeira derrota. É necessário reconhecer e lidar evangelicamente com o inimigo que não quer dialogar e está pronto somente para nos eliminar.
Em suma, vivemos em um mondo em guerra, em que não podemos ignorar que existem inimigos mortais, um tempo em que devemos aceitar e enfrentar o combate.
Encontro, com efeito, muitas palavras do Novo Testamento em que se fala da guerra e da ‘espada': “Na mão direita, tinha sete estrelas, de sua boca saía uma espada afiada, de dois gumes, e seu rosto era como o sol no seu brilho mais forte. Ao vê-lo, caí como morto a seus pés, mas ele pôs sobre mim sua mão direita e disse: “Não tenhas medo. Eu sou o Primeiro e o Último” (Apocalipse, 1, 12-17).
“Os exércitos do céu o acompanham, montados em cavalos brancos, com roupas de linho branco e puro. Da sua boca sai uma espada afiada, para com ela ferir as nações. Ele as governará com cetro de ferro. Ele é quem pisa o lagar do vinho que é a furiosa cólera de Deus todo-poderoso” (Apocalipse 19:14-15).
“Tomai, enfim, o capacete da salvação e a espada do Espírito, isto é, a Palavra de Deus” (Efésios, 6, 17).
A única arma com a qual é permitido marchar para a guerra é a Palavra e é a própria Palavra que traz a guerra onde reina a paz. Uma Palavra que tem a pretensão de desestabilizar o status quo: “Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa” (Mateus 19, 34-36).
E não é Palavra que simplesmente aceita a inevitabilidade do conflito, mas Palavra que o inaugura e o alimenta com radicalidade. Uma espada de dois gumes, porque enfrentamos um dúplice combate nos campos de batalha da história e da Igreja. Sem esquecer o combate travado na interioridade de cada discípulo.
Sou interpelado nestes dias por uma citação de Francisco na Laudate Deum. Surpreende a intenção dele, que, com Soloviev, nos fala de um mistério, que as pessoas racionais e de bom senso normalmente evitam, porque tema escolhido por fanáticos e desequilibrados. Mas fala-se, inequivocamente, do fim do mundo – ou da fim de um mundo – e do Anticristo:
“Todos nós devemos repensar a questão do poder humano, do seu significado e dos seus limites. Com efeito, o nosso poder aumentou freneticamente em poucos decênios. Realizamos progressos tecnológicos impressionantes e surpreendentes, sem nos darmos conta, ao mesmo tempo, que nos tornámos altamente perigosos, capazes de pôr em perigo a vida de muitos seres e a nossa própria sobrevivência. Pode-se repetir hoje, com a ironia de Soloviev: "Um século tão avançado que teve a sorte de ser o último". É preciso lucidez e honestidade para reconhecer a tempo que o nosso poder e o progresso que geramos estão a virar-se contra nós mesmos". [1]
O amigo Marcello Tarí, em seguida, me convidou a reparar que, na Vigília Ecumênica de Oração, em ocasião da abertura do Sínodo, no dia 30 de setembro de 2023 [2], Francisco falou duas vezes na sua homilia sobre a multidão do Apocalipse: “Como a grande multidão do Apocalipse, estamos aqui, irmãos e irmãs 'de todas as nações, tribos, povos e línguas' (Ap 7, 9), vindos de comunidades e países diferentes, filhas e filhos do mesmo Pai, animados pelo Espírito recebido no Batismo, chamados à mesma esperança (cf. Ef 4, 4-5)” e “Como a grande multidão do Apocalipse, rezamos em silêncio, ouvindo um grande 'silêncio' (Ap 8, I). E o silêncio é importante, é forte: pode expressar uma dor indescritível frente às desgraças, mas também, nos momentos de alegria, um júbilo que transcende as palavras. Por isso quero refletir brevemente convosco sobre a sua importância na vida do crente, na vida da Igreja e no caminho de unidade dos cristãos.”
Me pergunto, assim, por que o papa se serviu daquela imagem, reforçando-a também com a citação do “grande silêncio” que se impõe após a abertura do sétimo selo (Ap 8,1).
Alertados pelos recorrentes fanatismos, que marcam e remarcam as datas do fim do mundo, temos medo de sermos considerados loucos se acenamos o tema do fim do mundo, mas é inegável que estamos vivendo, entre consciência e remoções, tempos ameaçadores. Por isso, não é tão medieval e milenarista hipotisar o fim de um mundo quando estamos na iminência de uma guerra global e em tempos em que a própria vida da Terra é ameaçada de extinção.
Por isso, estou lendo “Os três diálogos e o conto do Anticristo” de Soloviev e um livrinho de Emanuel Mounier, “O medo no século XX - Para um tempo de Apocalipse”, em que, em 1948, o filosofo reflete sobre os terríveis eventos das bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki, após uma guerra mundial e os delírios sangrentos e genocidas do nazifascismo e medita sobre o testemunho do ser humano lidando com aquela Apocalipse. Marcelo Tarí comenta que “o discurso de Mounier revela que, desde o fim da primeira guerra mundial, ele lucidamente enxergava que o medo e a angústia, degradando-se, produzem, de um lado, um grande surto generalizado de medo e, do outro, a que ele define de paixão terrorista, encontrando-se o medo e terror num niilismo definitivo”.
“O perigo, a preocupação, são o nosso destino. Nada nos deixa prever que esta luta possa terminar em um prazo calculável e nada nos encoraja a supor que esta luta seja constitutiva da nossa condição. A perfeição do universo pessoal encarnado, portanto, não se identifica com a perfeição de uma ordem, como pretendem todos os filósofos (e todos os políticos), que pensam que o ser humano possa um dia totalizar o mundo. Esta é a perfeição de uma liberdade que combate e combate incansavelmente. E que fica firme também após a derrota. Entre o otimismo insuportável da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o verdadeiro caminho do ser humano é um otimismo trágico, em que pode encontrar a justa medida em uma atmosfera de grandeza e de luta”. [3]
[1] V. Solov’ëv, I tre dialoghi e il racconto dell’Anticristo, Bologna 2021, p. 256.
[2] Disponível aqui.
[3] Mounier E., Il personalismo, Ave, ed. 2004, p. 56.
* Charles de Foucauld foi canonizado no dia 15 de maio de 2022 pelo Papa Francisco. (Nota do IHU)
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A campanha da Fraternidade 2024. Fraternidade e Amizade Social. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU