21 Dezembro 2023
Seus antecessores haviam levantado uma barreira intransponível em torno da moral sexual e, mais em geral, da chamada “questão antropológica”, conferindo ao tema a relevância de uma questão decisiva para os destinos da humanidade e, consequentemente, para a doutrina.
O comentário é do filósofo italiano Francesco Valerio Tommasi, professor da Universidade La Sapienza, em Roma. O artigo foi publicado por Domani, 19-12-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sobre a possibilidade de abençoar casais irregulares e casais homossexuais, admitida no dia 18 pela declaração Fiducia supplicans, do Dicastério para a Doutrina da Fé da Igreja Católica, três pontos chamam a atenção.
Um aspecto de caráter geral, mas que é decisivo para esclarecer os outros dois mais específicos. Algo que era óbvio, mas que muitas vezes se tende a negar, finalmente e claramente vem à tona. A Igreja reconhece e recepciona a mudança histórica em seu interior e em suas posições até mesmo doutrinais.
A declaração do dia 18, de fato, vai na direção oposta em relação a um responsum de 2021 do mesmo dicastério. Mas pensemos, por exemplo, já no Sílabo, isto é, no documento emitido por Pio IX em 1864 que condenava, entre outras coisas, a liberdade de consciência, a liberdade de imprensa, o liberalismo. Ou na recente correção do Catecismo em matéria de pena de morte.
Essa plasticidade frente às inovações do mundo tem sido um motivo de força para o catolicismo e lhe permitiu sobreviver, apesar das dificuldades, às várias épocas históricas e, em particular, às da modernidade.
Assumir até o fim esse ponto permite compreender a declaração do dia 18 como um momento de passagem. Permite avaliar seus limites e apreciar corretamente sua abertura.
E aqui chegamos ao segundo ponto. A declaração tem o cuidado, desde as primeiras linhas, de reiterar que não se modifica “de forma alguma o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimônio”.
A situação dos casais ainda definidos como “irregulares” não é “validada oficialmente”. Trata-se de admitir uma práxis que, porém, até dois anos atrás, tinha sido explicitamente negada. A distinção entre práxis pastoral, ou seja, a modalidade de governo concreto e cotidiano da vida dos fiéis, e a verdade teórica fixada em termos legislativos é outro ponto de sobrevivência decisivo para o catolicismo.
O Papa Francisco tem trabalhado nesse ponto até agora, tentando gerir com equilíbrio fatigante os impulsos inovadores (por exemplo, do clero alemão) e as resistências conservadoras (por exemplo, do clero estadunidense). Mas é óbvio que teoria e prática terão de se conciliar de alguma forma.
Já neste caso, afirma-se que as bênçãos “levam a captar a presença de Deus em todos os acontecimentos da vida”. “Bem-dizer” significa implicitamente aprovar ou, em todo o caso, ver e afirmar o bem que está presente em uma coisa, em uma pessoa, em uma situação. Torna-se realmente difícil dar uma bênção e, ao mesmo tempo, condenar a irregularidade. Assim como é difícil manter a distinção entre bênção e sacramento, quando o próprio Papa Francisco, referindo-se à eucaristia, dissera que ela não deve ser entendida como um prêmio para os merecedores, mas sim como um remédio para os doentes.
O equilibrismo dessa declaração deve ser lido não tanto à luz do suposto ensinamento “perene” da Igreja, mas antes como uma virada radical em relação à linha de Wojtyla e de Ratzinger, que, sobre a moral sexual e, mais em geral, sobre a chamada “questão antropológica”, haviam levantado uma barreira intransponível, conferindo ao tema a relevância de uma questão decisiva para os destinos da humanidade e, consequentemente, para a doutrina.
A ideia de uma natureza humana imutável, que encontraria seu ponto-chave precisamente na expressão da afetividade, era obsessivamente reiterada, a tal ponto que mesmo documentos sobre temas aparentemente muito distantes, como a paz, continham referências a esse aspecto.
Faltava - e assim voltamos ao primeiro ponto – a consciência histórica da evolução social no que diz respeito às formas de viver a sexualidade, às quais a Igreja também se acomodou, pelo menos em parte, nas várias épocas. Mas também faltava a consciência histórica de como a chamada “antropologia”, longe de ser uma disciplina perene, nada mais é do que uma invenção moderna que acompanha aquilo que Michel Foucault chamou de “invenção do homem”.
Portanto, é em perspectiva histórica que se pode e se deve ler esse novo documento, apreciando-o como uma etapa de passagem rumo a uma evolução que, comparada com os tempos tradicionais do catolicismo, está ocorrendo com bastante rapidez.
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Com bênção a casais gays, Francisco abandona a antropologia de Wojtyla e Ratzinger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU