21 Dezembro 2023
Em poucos meses, o Dicastério para a Doutrina da Fé transformou-se de guarda suíço da moral católica em todos os cantos do globo a motor das reformas mais difíceis de implementar na Igreja, aquelas que têm a ver com a esfera da sexualidade.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada em Domani, 19-12-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O ponto de virada coincidiu com a chegada do cardeal argentino Víctor Fernández, um teólogo muito próximo do Papa Francisco, ao comando do órgão vaticano outrora conhecido como Santo Ofício, em julho passado.
Assim, em poucas semanas, chegou-se a uma declaração, assinada pelo papa (intitulada Fiducia suplicans), com a qual a Igreja reconhece e admite, ainda que sob certas condições, as bênçãos às uniões entre pessoas do mesmo sexo ou em situações irregulares.
O documento continua aprofundando o que o próprio Francisco já havia dado a conhecer ao responder às “dubia” de dois cardeais do front tradicionalista, Raymond Leo Burke e Walter Brandmüller, em um documento publicado em setembro passado.
Substancialmente, a bênção aos casais homossexuais, explica-se, “não deve encontrar nenhuma fixação ritual por parte das autoridades eclesiais, a fim de não produzir uma confusão com a bênção própria do sacramento do matrimônio” [n. 31], ao mesmo tempo que não deve haver nenhum pedido de “legitimação do próprio status” por parte de quem pede a bênção.
No entanto, afirma-se ao mesmo tempo que a Igreja não deve ceder a “um elitismo narcisista e autoritário”, pois “quando as pessoas invocam uma bênção, não deveria ser feita uma análise moral exaustiva como pré-condição para poder concedê-la. Não se deve exigir delas uma perfeição moral prévia” [n. 25].
“A graça de Deus, de fato – afirma novamente no texto – opera na vida daqueles que não se acham justos, mas se reconhecem humildemente como pecadores como todos. Ela é capaz de orientar todas as coisas segundo os misteriosos e imprevisíveis desígnios de Deus” [n. 32]. E, precisamente por isso, “com incansável sabedoria e maternidade, a Igreja acolhe todos aqueles que se aproximam de Deus com coração humilde, acompanhando-os com aquelas ajudas espirituais que permitem a todos compreender e realizar plenamente a vontade de Deus em sua existência”.
O que pode parecer um passo nem tão importante (bênçãos bem distintas dos matrimônios) é na realidade uma pequena revolução em comparação com um passado recente em que na Igreja a palavra “homossexualidade” era quase impronunciável, rodeada por um estigma que parecia definitivo (que, depois, se difundiu entre clérigos de todos os níveis).
Mas, acima de tudo, é preciso levar em conta que, além de aproximar a Igreja Católica da teologia já posta em prática pelas Igrejas protestantes históricas, a declaração sobre a bênção aos casais do mesmo sexo estabelece uma linha de separação com o mundo ortodoxo mais conservador e promotor de uma espécie de fundamentalismo cristão, para o qual a homossexualidade e sua afirmação na cena pública representam a prova mais clara da decadência do Ocidente.
Não é por acaso que encontramos nessa linha o patriarca ortodoxo de Moscou, Kirill, e, com ênfases não muito diferentes, os setores mais conservadores do episcopado católico dos Estados Unidos. Em suma, as consequências do documento são pastorais, mas também políticas.
Por outro lado, esse não foi o único documento relevante apresentado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé nas últimas semanas. Com uma carta dirigida a um bispo da República Dominicana que expressava um certo alarme perante o excessivo rigorismo com que as jovens solteiras com filhos fora do casamento eram muitas vezes afastadas da comunhão por certos padres e leigos, o cardeal Fernández insistiu no fato de que é preciso conceder a elas o acesso ao sacramento.
“Nota-se – afirmava o documento – que, em alguns países, tanto os sacerdotes quanto alguns leigos, de fato, impedem que as mães que tiveram um filho fora do matrimônio tenham acesso aos sacramentos e até batizem seus filhos.”
“O caso concreto das mães solteiras e das dificuldades para elas ou seus filhos de ter acesso aos sacramentos – lembrava a carta, entre outras coisas – já havia sido denunciado pelo Santo Padre quando era cardeal de Buenos Aires: ‘Há presbíteros que não batizam os filhos das mães solteiras porque não foram concebidos na santidade do matrimônio. Esses são os hipócritas de hoje. Aqueles que clericalizaram a Igreja. Aqueles que afastam o povo de Deus da salvação. E essa pobre jovem, que, podendo ter devolvido seu filho, teve a valentia de trazê-lo ao mundo, vai peregrinando de paróquia em paróquia para que ele seja batizado”.
“Deve-se trabalhar pastoralmente na Igreja local – esclareceu o dicastério – para fazer com que se compreenda que o fato de ser mãe solteira não impede o acesso à Eucaristia. Como o restante dos cristãos, a confissão sacramental dos pecados cometidos lhes permite aproximar-se para comungar. A comunidade eclesial também deve valorizar o fato de serem mulheres que acolheram e defenderam o dom da vida que carregavam em seu ventre e que lutam, a cada dia, para criar seus filhos.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Igreja e gays, o ponto de virada do papa: sim à bênção aos casais LGBT+ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU