17 Outubro 2023
A vingança é o contrário da segurança, é o contrário da paz, é também o contrário da justiça. Netaniahu: “um homem de muitos slogans. Promete que Israel realizará uma poderosa vingança e que o inimigo pagará um preço sem precedentes."
O artigo é de Orly Noy, jornalista e editor da revista de notícias em língua hebraica Local Call, publicado por The Guardian e reproduzido por Chiesa di tutti, chiesa dei poveri, 11-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estamos em choque enquanto tentamos assimilar os ataques do Hamas e os fracassos do governo de Netanyahu. A preocupação agora é pelo que vem depois
Ainda é impossível assimilar estes últimos dias mais escuros que o escuro, que começaram com as sirenes que nos acordaram de repente na manhã de sábado, um dia que parece interminável e que provavelmente não acabará ainda por muitos dias. Pensar nos sequestrados na Faixa de Gaza oprime-me de dor. Cada pensamento sobre eles deixa uma camada de terror sobre a pele. As imagens e os testemunhos de corpos espalhados por todos os cantos, de famílias mantidas reféns durante horas como escudos humanos em suas casas por militantes do Hamas, ainda atormentam a mente, congelando o coração.
O choque absoluto causado pelo ataque do Hamas às cidades do sul assumiu várias formas com o passar das horas: medo, impotência, raiva e, acima de tudo, uma profunda sensação de caos. Os fracassos colossais do governo de Benjamin Netanyahu e do aparato de segurança estão convergindo para uma sensação de colapso total. O sistema de inteligência, que vigia todos os aspectos da vida dos palestinos em Gaza e na Cisjordânia, não tinha conhecimento do ataque; os civis ficaram indefesos durante muitas horas contra os militantes do Hamas, que os prenderam nas suas casas e massacraram sem intervenção militar – os mesmos militares encarregados de proteger cada colono na Cisjordânia a cada momento.
Estamos chocados pela falta de informações confiáveis durante as longas horas em que as pessoas procuravam desesperadamente por familiares e amigos desaparecidos, inundando as redes sociais com fotos de seus entes queridos desaparecidos. E agora assistimos à falta de abastecimentos e alimentos suficientes para as forças de reserva recrutadas às pressas e enviadas para as linhas da frente contra o Hamas, deixando a tarefa de organizar os itens de que necessitam para os civis em cada cidade e vilarejo.
Netanyahu declarou formalmente guerra no domingo e agora, neste momento, todo Israel está em estado de guerra. Os mísseis que caíram no coração de Tel Aviv e o bombardeio das cidades do norte transformaram todo o país num campo de batalha, pelo menos na percepção pública.
Aqui em Jerusalém se tenta manter a esperança de que o Hamas não lance mísseis contra a cidade devido à sua proximidade com a mesquita de al-Aqsa, mas a ansiedade geral persiste. As escolas foram fechadas, assim como todas as atividades comerciais, e pouquíssimas pessoas circulam pelas ruas. Quem não precisa sair não sai de casa. No sábado à noite, depois de horas de ansiedade olhando a TV e as redes sociais, a minha filha foi tomada pelo pânico com o receio de que militantes do Hamas, armados e ainda dentro do território israelense, pudessem chegar a Jerusalém e atacar-nos na nossa casa. Só depois de uma ronda aprofundada pelos abrigos públicos do bairro ela se acalmou um pouco e conseguiu adormecer.
No meio deste caos absoluto, Netanyahu dirigiu-se aos cidadãos no sábado à noite: uma declaração vazia com slogans como “vamos vencer”, “vamos atingi-los”, “vamos aniquilar o terrorismo”. É um homem de muitos slogans. Promete que Israel “realizará uma poderosa vingança” e que “o inimigo pagará um preço sem precedentes”, sofrendo “um fogo de resposta numa escala que o inimigo nunca viu”.
Essa linguagem é intencional. Na verdade, enquanto a opinião pública israelense traumatizada ainda não está pronta para buscar o profundo acerto de contas político e moral que esta catástrofe exige, a raiva já dirigida a Netanyahu é palpável. Um primeiro-ministro envolvido em procedimentos legais nomeou, para satisfazer as suas exigências políticas, pessoas que não eram apenas extremamente agressivas, mas também altamente pouco profissionais – e as encarregou da nossa segurança. Agora é, com razão, considerado pessoalmente responsável. Ele tenta salvar a sua pele política, mais uma vez, exortando o Knesset a instituir um governo de emergência nacional, muito parecido com aquele formado três anos atrás pelo líder do partido Unidade Nacional, Benny Gantz, sob o pretexto do coronavírus. Mas mesmo sem a formação de um governo de emergência nacional, a oposição judaica no Knesset apoia totalmente o ataque mortal do governo a Gaza. E não estão sozinhos: muitos israelenses querem ver toda a Faixa de Gaza pagar um preço sem precedentes.
O desejo público de vingança é compreensível e aterrorizante, mas o cancelamento de qualquer linha vermelha moral é sempre algo pavoroso.
É importante não minimizar ou tolerar os crimes hediondos cometidos pelo Hamas. Mas também é importante lembrar a nós mesmos que tudo o que nos está infligindo agora, nós o estamos infligindo aos palestinos há anos. Tiroteios indiscriminados, também contra crianças e idosos; intrusão em suas casas; tocar fogo em suas casas; fazer reféns – não só combatentes, mas também civis, crianças e idosos. Continuo a lembrar a mim mesmo que ignorar esse contexto significa renunciar a um pedaço da minha própria humanidade. Porque a violência desprovida de contexto leva a uma única resposta possível: a vingança. E não quero vingança de ninguém. Porque a vingança é o contrário da segurança, é o contrário da paz, é também o contrário da justiça. Nada mais é que mais violência.
Acredito que existem crimes de abundância e crimes de fome, e não só levámos Gaza à beira da fome, mas levámo-la a um estado de colapso. Sempre em nome da segurança. Quanta segurança conseguimos? Aonde nos levará outra rodada de vingança?
Crimes terríveis foram cometidos contra os israelenses no sábado, crimes que a mente não consegue compreender – e neste momento de escura dor, agarro-me à única coisa que me resta: a minha humanidade. A convicção absoluta de que este inferno não está predestinado. Nem para nós nem para eles.
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Uma voz de Jerusalém: não quero vingança de ninguém. Artigo de Orly Noy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU