08 Setembro 2023
"Quando se reitera na premissa que 'por natureza a mulher não pode comandar', toda discussão teológica resulta ultrapassada e torna-se muito facilmente resolvida", escreve Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 05-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sobre um lugar-comum em apoio à "reserva masculina"
Dois entre os volumes mais importantes que estudam a relação entre mulher e ordenação (o livro de Alberto Piola e o de Luca Castiglioni) convergem na identificação do conceito de "semelhança natural" como um dos principais argumentos contra a admissão da mulher ao ministério ordenado. É interessante observar, no entanto, como o cerne de toda essa justificação antropológica se baseia, pelo menos no plano magisterial, numa citação de Tomás de Aquino que foi flagrantemente mal interpretada: na Declaração Inter Insigniores, e mais ainda no Comentário à Declaração que apareceu ao mesmo tempo no Osservatore Romano, o conceito de “semelhança natural” foi utilizado num sentido que não é de forma alguma confirmado pela fonte tomista. Vamos examinar atentamente essa passagem fundamental.
Já A. Piola, no seu monumental texto que reconstrói todo o debate em torno da questão da ordenação sacerdotal da mulher, assinalava que em torno desse conceito havia uma citação incompleta da fonte. De fato, ele escrevia: “A citação da Inter Insigniores trunca a frase de Tomás de Aquino que, ao contrário, continuava com as palavras; “mulier autem ex natura habet subiectionem” (A. Piola, Donna e sacerdozio, Cantalupa 2006, nota 156, p. 455). [1] Contudo, aqui é necessário reconstruir bem as passagens individuais, porque a sacramentaria de Tomás é utilizada pela Declaração de forma profundamente distorcida. Vamos examinar melhor o texto citado pela Declaração a ser considerado:
"'Os sinais sacramentais - diz São Tomás - representam aquilo que eles significam por uma semelhança natural’. Esta mesma lei da semelhança natural tem valor tanto para as pessoas como para as coisas: quando se torna necessário traduzir na prática sacramentalmente o papel de Cristo na Eucaristia, não existiria uma tal ‘semelhança natural’, que deve existir entre Cristo e o seu ministro, se a função de Cristo não fosse desempenhada por um homem: caso contrário, dificilmente se veria no mesmo ministro a imagem de Cristo. Com efeito, o próprio Cristo foi e continua a ser um homem”.
Como ficará claro, esse texto da Inter Insigniores utiliza uma passagem de Tomás de Aquino, sem aprofundar nem a fonte nem o contexto. De fato, examinando mais atentamente, é fácil reconhecer a fragilidade do argumento magisterial, que recorre a um texto cujo conteúdo real, de fato, desmente as próprias premissas do documento magisterial. Tentarei expor com simplicidade o resultado da minha pesquisa:
“Ad quartum dicendum, quod signa sacramentalia ex naturali similitudine repraesentant; mulier autem ex natura habet subjectionem, et non servus; et ideo non est simile.”
Como fica evidente quando se lê todo o texto, a referência à "semilitudo" não diz respeito em si à "semelhança masculino/feminino" em relação ao Senhor, mas à dissimilitude da "condição de escravidão", que o escravo tem por contrato ou por convenção, enquanto a mulher tem “por natureza”. Para entender melhor essa resposta, porém, é preciso ler a objeção à qual responde, que se encontra algumas páginas antes.
A posição que é recusada no “ad quartum” acima citado é a seguinte, que defende a não possibilidade de ordenação do escravo, que seria um caso “mais grave” que o da mulher:
“Sed contra, videtur quod (servitus) impediat quantum ad necessitatem sacramenti. Quia mulier non potest suscipere sacramentum ratione subjectionis. Sed major subjectio est in servo; quia mulier non datur viro in ancillam, propter quod non est de pedibus sumpta. Ergo et servus sacramentum non suscipit.”
Esse texto, que constitui o objeto da refutação de Tomás, refere-se a uma passagem de interpretação da criação da mulher a partir da costela de Adão que Tomás apresenta desta forma na Suma Teológica.
“Era conveniente que a mulher fosse formada da costela do homem. Primeiro, para dar a entender que entre ambos deve haver uma união social. Porque a mulher não deve dominar o homem (1 Tim 2,12); por isso não foi formada da cabeça. Tampouco deve o homem depreciá-la como se ela lhe estivesse submetida servilmente; por isso não foi formada dos pés”. Em segundo lugar, por uma razão mística: já que do lado do Cristo adormecido na cruz deviam jorrar os sacramentos, isto é, o sangue e a água, com os quais a Igreja foi construída”. (Suma Teológica. q92 a3 co)
Podemos, portanto, descobrir que a "similitudo" mencionada no texto de Tomás diz respeito não à relação entre Cristo e seu ministro ordenado, como a entende a Inter insigniores, mas a semelhança entre a condição de escravo e a condição de senhor. A “similitudo” negada por Tomás é a relação entre o escravo e a mulher sobre o “defectus eminentiae gradus”. E é contestada justamente porque a “falta de autoridade” é reversível para o escravo, enquanto para a mulher não o é. A natureza, para Tomás, coloca as mulheres numa sujeição insuperável. A “semelhança natural” exigida, portanto, não diz respeito à forma física ou à anatomia, mas à capacidade de exercer a autoridade e de estar “na liderança” de uma comunidade.
A contraprova da não pertinência do suposto princípio da sacramentaria tomista invocado pela Inter insigniores é encontrada lendo os textos que precedem aqueles a que nos referimos, ou seja, do artigo 1.º, especificamente dedicados à questão “Se o sexo feminino constitui um impedimento ao recebimento da ordem”. Nessa parte do comentário, o princípio invocado pela Inter insigniores aparece em uma forma diferente, ou seja, com um raciocínio levemente mais amplo, mas que esclarece ainda melhor a “mens” de Tomás e a sua profunda diferença em relação à intenção com que a Inter insigniores o assume, numa perspectiva profundamente diferente.
Também nesse caso a citação utiliza a lógica da “similitudo”, anexando também um exemplo, retirado do sacramento da unção dos enfermos. Vamos ler a passagem
“Unde etsi mulieri exhibeantur omnia quae in ordinibus fiunt, ordinem non suscipit: quia cum sacramentum sit signum, in his quae in sacramento aguntur, requiritur non solum res, sed significatio rei; sicut dictum est, quod in extrema unctione exigitur quod sit infirmus, ut significetur curatione indigens. Cum ergo in sexu femineo non possit significari aliqua eminentia gradus, quia mulier statum subjectionis habet; ideo non potest ordinis sacramentum suscipere.” (Super Sent., lib. 4 d. 25 q. 2 a. 1 qc. 1 co.)
Como fica evidente pelo raciocínio proposto por Tomás, a pergunta não só da “res”, mas da “significatio rei”, que de alguma forma equivale ao que se argumenta a respeito da “similitudo” no caso anterior, é argumentada exclusivamente em relação à "significatio" da "eminentia gradus": o sexo feminino é excluído da ordenação não por ser "diferente" do corpo masculino, mas por ser incapaz de "significar e exercer a autoridade".
Como acontece com mais frequência do que se pensa, também nesse caso um texto de Tomás de Aquino, especialmente quando formula um "princípio" ou um "critério geral", quando desvinculado do seu contexto original, pode ser utilizado de forma enganosa, para dar autoridade a uma posição objetivamente bastante fraca e, em todo caso, muito diferente daquela sustentada pelo Doutor Angélico. Tomás nunca utiliza o argumento da semelhança corporal na discussão sobre os impedimentos à ordenação, exceto referindo-a ao “defeito de autoridade”. Em outras palavras, o escravo não pode ser ordenado porque desprovido de autoridade. Mas o escravo pode superar esse impedimento, que não deriva da natureza, mas da tradição e de contrato. Em vez disso, a mulher “tem a escravidão por natureza” e por isso não pode ser ordenada. A razão da dissimilaridade não é a "forma" ou a "estrutura corporal" feminina, mas o "defectus eminentiae gradus".
Portanto, se lida no seu contexto, a afirmação sobre a “semelhança” – reproposta pelo documento de 1976 e pelos documentos que o acompanham – reafirma apenas a perspectiva que para Tomás resultava decisiva: ou seja, a “falta de autoridade da mulher” como princípio antropológico e sociólogo do seu tempo e que se impunha também à discussão teológica, que de bom grado se deixava instruir por essa evidência cultural. Nós, porém, superamos essa evidência há pelo menos meio século.
Sendo a Inter insigniores introduzida por uma semicitação do texto com o qual o Papa João sinaliza na Pacem in terris a aquisição da "mulher no espaço público" como um "sinal dos tempos, parece realmente paradoxal que, para dar seguimento a essa nova afirmação, da qual se vale o título do documento, tenha se fundado a solução argumentativa "de conveniência" num texto medieval que confirma precisamente aquilo de que hoje nós deveríamos nos livrar. Quando se reitera na premissa que “por natureza a mulher não pode comandar”, toda discussão teológica resulta ultrapassada e sem nenhum espaço e muito facilmente resolvida.
Uma simples exegese tomista, conduzida no contexto a partir do qual a Inter insigniores retira a afirmação de Tomás, abre o campo para argumentos verdadeiramente convincentes, que devem ser novos, uma vez que surgem de um mundo transformado pela liberdade e pela igualdade. A fraqueza objetiva dos argumentos do magistério, que o teólogo deve reavaliar cuidadosamente, abre o campo para uma busca de argumentos mais fortes e mais convincentes, que respondam realmente à questão levantada por João XXIII e aceitam que, em relação ao feminino, algo decisivo aconteceu entre os séculos XIX e XX, de que o século XXI deve dar conta, sem ambiguidades e com coragem. A “semelhança natural” exigida por Tomás é a “ausência de escravidão”: na sua opinião possível para o escravo, mas impossível para a mulher. O seu texto, portanto, assume um horizonte que não é mais o nosso. As "insigniores notas" que o mundo há 60 anos nos oferece - das quais a Igreja deveria estar disposta a aprender algo e entre as quais se destaca a entrada das mulheres na vida pública - exigem da palavra do magistério e das reflexões dos teólogos que predisponham o quanto antes "insigniores cogitationes".
[1] É preciso dizer que a sinalização de Piola sobre a incompletude da citação que a Declaração faz do texto de Tomás é, por sua vez, incompleta. Na verdade, o teor literal da passagem de Tomás, da qual se extrai o “critério” da semelhança natural, não só continua com “mulier autem ex natura habet subjectionem”, mas apresenta, após essa cláusula aparente, mais um fechamento: “et non servus, et ideo non est simili”. Como veremos logo em seguida, essa cláusula esclarece que o discurso não diz respeito à mulher, mas ao escravo. E o critério invocado pela Inter insigniores não diz respeito à “anatomia feminina”, mas sim à “sujeição”! Também Luca Castiglioni, no seu recente estudo sobre Figlie e figli di Dio (Brescia 2023), quando discute a noção de “semelhança natural” com sutileza nas pp. 219-220, não destaca esse erro original na fonte da noção.
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Como interpretar mal a “semelhança natural”. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU