07 Junho 2023
Nadia Urbinati é uma cientista política italiana que realizou a maior parte de seu trabalho nos Estados Unidos. Pesquisadora e professora da Universidade Columbia, em Nova York, Urbinati manteve um diálogo frutífero com pensadores do pensamento democrático moderno: de John Stuart Mill a Giuseppe Mazzini, de Nicolas de Condorcet a Nicolau Maquiavel.
Na Itália, estudou na Universidade de Bolonha, uma das mais respeitadas instituições de ensino do Ocidente, associada a nomes como Erasmo de Roterdã, Dante Alighieri, Umberto Eco e Pier Paolo Pasolini.
Interessada na democracia, mas também em seus inimigos, Urbinati se sente à vontade para falar do fascismo de Mussolini ou das democracias contemporâneas. A chegada dos populismos do século XXI, naturalmente, despertou seu interesse. Atualmente, é uma das vozes mais autorizadas para falar sobre o assunto.
Em um dos pátios de El Colegio de México, Nadia Urbinati e eu conversamos sobre a democracia e o perigo dos populismos modernos.
A entrevista é de Ángel Jaramillo, publicada por Letras Libres, 01-06-2023. A tradução é do Cepat.
Qual é a sua interpretação do populismo contemporâneo?
Minha análise começa com uma tentativa de entender os dilemas da democracia representativa. O populismo começa como um problema associado às eleições e não à violência ou um golpe de Estado. Temos que entender como os líderes populistas se comportam em uma democracia representativa e suas instituições, porque estas são as condições de sua existência.
Você diz que o populismo é compatível com a democracia, mas não, por exemplo, com o fascismo. Qual é a diferença entre fascismo e populismo?
Baseio-me na ideia de Ludwig Wittgenstein sobre a similaridade. Existe uma similaridade, por exemplo, entre pai e filho. Não são a mesma pessoa, mas se parecem. Assim, há semelhanças entre o fascismo e o populismo. Ambos os fenômenos compartilham a exaltação do momento agonal da política, a centralização do poder, o culto ao líder e a intolerância com os procedimentos democráticos.
Contudo, as similaridades acabam aí. Diferente do fascismo, o populismo não se funda na violência, nem na tentativa de subverter o sistema democrático, pois só pode viver dentro dele. Até agora, não vimos nenhum líder populista cancelar eleições, após ter chegado ao poder.
Embora seja necessário dizer que o fascismo começou como um movimento populista. Mussolini criou um movimento com pessoas que estavam insatisfeitas e irritadas porque vinham das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Quando retornaram à Itália, sentiram-se traídas por aqueles que lhes tinham prometido prosperidade.
Mussolini entendeu imediatamente que essa parte da população se sentia insatisfeita. Foi então que formou não um partido, mas um movimento, os fascis italiani di combattimento. Esse movimento, classicamente populista, foi o que posteriormente se transformou em partido e conquistou as estruturas do Estado.
Isso quer dizer que o populismo pode resultar em fascismo.
Sim. Não estou dizendo que essa é a trajetória atual em nosso mundo. Não acredito que essa transformação seja necessária. Em alguns casos, pode acontecer ou já aconteceu e em outros não.
No caso da Itália de Mussolini, sim, aconteceu, mas é preciso lembrar que se tratou de uma situação particular: a Itália não era democrática e o contexto era o de uma Europa em guerra. Mussolini se aproveitou da fragilidade da Constituição liberal e do Estado italiano.
O caso oposto seria o do populismo estadunidense, em fins do século XIX. Apesar de sua virulência, não chegou a transformar o regime estadunidense em fascista.
O Partido do Povo nos Estados Unidos, em 1892, convocou os cidadãos a conquistar a democratização de um regime que estava se tornando oligárquico. Isso aconteceu durante o período chamado de Reconstrução. Surgiam as corporações empresariais, como a West Pacific. As ferrovias, Pinkerton e os bancos cresciam em todo o país.
Essas forças do capitalismo do século XX estavam impondo suas condições à política. Decidiam sobre os candidatos presidenciais e os líderes partidários. Tratava-se, certamente, de uma oligarquia.
O Partido do Povo nasce em resposta a isso. No entanto, não teve grande influência, pois foi absorvido pelo sistema bipartidário. Portanto, não sabemos o que poderia ter acontecido, caso tivesse chegado ao poder.
Qual a diferença entre os populismos do passado e os do século XXI?
Os populismos atuais, ao contrário de muitos do passado, nascem dentro da estrutura da democracia representativa, com um sistema multipartidário, um sistema de separação de poderes, imprensa livre, enfim, todas as virtudes da democracia liberal.
Movimentos como o peronismo, na Argentina, são muito diferentes dos populismos atuais, pois surgiram quando a Argentina estava só começando a se industrializar e o Estado não era democrático.
Você considera que o populismo original é o modelo latino-americano. Mas, agora, este modelo parece que está sendo exportado para a Europa ocidental e os Estados Unidos.
Nos anos 1950, vários intelectuais, entre eles, Isaiah Berlin, reuniram-se em uma conferência global para discutir o que era o populismo. O objetivo era analisar o que estava acontecendo no mundo durante os processos de descolonização. A conferência atraiu pessoas de todo o planeta, incluindo a Ásia.
A conclusão foi que o populismo não vinha mais do Ocidente e, na Ásia, a União Soviética havia vencido o populismo por meio do comunismo. O novo populismo agora vinha do mundo que estava sendo descolonizado, como na Argélia ou em países como os latino-americanos, onde a construção de sociedades dependeu do encontro entre a população indígena e os colonizadores.
Paradoxalmente, esse populismo que surgiu em nações pouco estáveis foi capaz de ser exportado para lugares onde a democracia liberal e representativa teve sucesso, como na Europa Ocidental.
Minha tese é que o populismo é uma possibilidade das sociedades democráticas que enfrentam determinados problemas ligados ao sistema representativo e ao sistema de partidos. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa.
Nesses casos, um líder plebiscitário pode usar o poder populista pulando o complexo sistema de representação da democracia. O que vimos é que esse modelo pode ser aplicado em situações de crise do sistema de partidos.
Parte de seu argumento é que mesmo em sociedades tão sofisticadas como a Europa existe um ressentimento em relação ao que muitos descrevem como elites globais.
Na Europa, isso está ligado à União Europeia. As críticas à globalização auspiciada de Bruxelas, feitas por populistas como Le Pen, Orbán e Meloni, sem dúvidas, tiveram um impacto sobre os eleitores. No caso dos Estados Unidos, é preciso prestar atenção na estrutura institucional do sistema presidencialista estadunidense, que é mais vulnerável ao assédio populista do que o sistema parlamentar europeu.
As eleições primárias nos Estados Unidos promovem líderes carismáticos e telegênicos que transcendem o interesse dos partidos. São instrumentos geradores de líderes populistas, ainda que limitados pelas instituições republicanas.
Líderes plebiscitários como o próprio Barack Obama são produtos do sistema de partidos nos Estados Unidos, sem falar de Donald Trump. Ian Shapiro e Frances McCall Rosenbluth escreveram recentemente um livro no qual argumentam que as primárias nos Estados Unidos fomentam um tipo de liderança plebiscitária.
Do meu ponto de vista, essas lideranças populistas são muito perigosas. Em que medida são tão perigosas, em sua opinião?
Certamente, são perigosas. Mudam a fisionomia do discurso político. Introduzem elementos de animosidade emocional. Buscam humilhar os que discordam da liderança populista, fazendo o povo acreditar que a oposição não faz parte do jogo democrático. Então, os populismos não mudam o sistema político, mas sua retórica de esmagar a oposição pode ter tremendas consequências.
Nos Estados Unidos, isso ficou muito claro quando Trump entrou em cena. A sociedade se dividiu. Hoje, os partidos Democrata e Republicano não são apenas partidos no sentido clássico, mas são produtores de argumentos de conspiração fabricados todos os dias. Não só os partidos se dividem, mas também os cidadãos, porque os cidadãos não confiam mais em outros cidadãos com ideias diferentes.
Contudo, deve-se compreender que esses populismos que menciono não são autoritários, pois não buscam fechar a democracia representativa. Na minha interpretação, Putin e Orbán não são populistas, mas líderes de regimes autoritários que buscam minar, por exemplo, a separação de poderes e que também intervém para cercear a liberdade de expressão.
Do ponto de vista de quem apoia a democracia liberal, o que precisa ser feito para lidar com sucesso com esses regimes?
Penso que, em primeiro lugar, os regimes democráticos devem aceitar que promovem de forma escandalosa a corrupção. Certamente, não são inocentes em suas ações.
Em segundo lugar, é preciso reconstruir o sistema de partidos, que hoje são simples panelinhas para escolher seus favoritos, sem importar se essas candidaturas, de fato, têm em mente o interesse da sociedade.
Precisamos que os cidadãos realmente participem da política dentro de partidos abertos que agora estão capturados por grupos de interesse. Caso contrário, os populismos continuarão minando a democracia.
No passado, você escreveu sobre Maquiavel. O que podemos aprender com ele que possa nos ajudar em nossa luta contra os populismos?
Em um livro sobre o assunto, concentro-me em uma distinção feita por Maquiavel que, hoje, parece-me útil. Ele distingue entre o líder, os poucos que formam uma elite e as multidões. Maquiavel entendeu muito bem que os poucos que estão entre o líder e a multidão não querem dar todo o poder ao líder, mas também não querem dá-lo às multidões.
O problema é que essas elites são muito importantes para evitar que exista uma relação só entre dois, o líder e as multidões, que é a relação populista. Hoje, poderíamos dizer que esse grupo que está entre o líder e as multidões é a classe média. É importante dar poder a essas classes médias que são o momento intermediário entre o povo e seu líder.
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A democracia e o perigo dos populismos. Entrevista com Nadia Urbinati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU