16 Mai 2023
Eu mal havia saído da Câmara dos Deputados quando um militante do Movimento Brasil Livre, o MBL, me interpelou. “É assessora parlamentar?”, perguntou, estendendo um folheto. Eu respondi que não, que era jornalista, mas peguei mesmo assim o pequeno pedaço de papel que ele me oferecia. Era 2 de maio e o Congresso estava especialmente agitado naquele dia, já que mais tarde seria votado o Projeto de Lei 2630, conhecido como “PL das Fake News”.
O editorial é de Laura Scofield, em newsletter enviada por Agência Pública, 13-05-2023.
O folheto era todo em preto, vermelho e branco. Na frente, uma imagem estilizada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com um microfone na mão e uma língua grande e afiada, meio diabólica. A estrela vermelha do PT estava desenhada atrás da cabeça do presidente e apareciam ainda os logos de algumas plataformas de redes sociais, como Facebook, Instagram, Tiktok e Twitter. A hashtag #PLdaCensuraNÃO, ocupava metade da página.
Do lado de trás do panfleto, seis pontos se propunham a resumir o projeto de lei e explicar por que ele não deveria ser aprovado. O texto dizia, por exemplo, que o projeto estimularia a censura, criaria um “Ministério da Verdade”, e poderia gerar até a suspensão do acesso à internet no Brasil. Eu, que já havia feito matérias sobre o assunto e acompanhei a evolução do projeto, sabia que nada daquilo era verdade. Mas não posso negar que a campanha poderia ser bem sucedida — note que o alvo dos militantes eram os assessores parlamentares, que têm contato direto com os deputados que mais tarde votariam o projeto.
Em um mundo em que tudo é cada vez mais digital, tenho certeza que nem eu nem você queremos que a nossa internet seja suspensa. Recheado de mentiras, o panfleto tentava e conseguia assustar. Logo percebi que toda aquela narrativa era parte de uma campanha de boicote que foi organizada pela extrema-direita contra o PL 2630, como mostramos em reportagem recente.
Continuei meu caminho, almocei, e voltei para a Câmara. No corredor das comissões, no salão verde, em todo lugar, só se falava em PL das Fake News. Bolsonaristas como Eduardo Bolsonaro, Bia Kicis e Gustavo Gayer, por exemplo, fizeram discursos contra o projeto naquele dia. E, sinto dizer, parecia que as mentiras estavam ganhando o debate.
Algumas horas depois, encontrei novamente os militantes do MBL, mas agora dentro da Câmara. Uma faixa separava os militantes de um outro grupo de pessoas favorável ao projeto de lei, que usava um palco improvisado para fazer barulho e defender sua importância. Discurso após discurso, eles diziam que o PL 2630 era uma forma de proteger as crianças, expostas a conteúdos violentos e criminosos em plataformas que ganham dinheiro com o ódio mas não querem se responsabilizar por ele. Guardadas as proporções, me lembrei das faixas que separavam os manifestantes pró e contra o impeachment de Dilma Rousseff, lá em 2016. A disputa estava acirrada.
Entretanto, o debate de ideias e mentiras no Congresso era apenas parte do todo. Enquanto os militantes espalhavam folhetos e os deputados indecisos tentavam se decidir, as plataformas de redes sociais, talvez os atores mais poderosos de todo esse processo, se movimentavam nos bastidores.
Naquela tarde, um texto contra o projeto estava na página principal do Google, acessada a todo momento por milhares de pessoas que querem fazer uma simples busca na internet. Além disso, foram os lobistas de redes como Tiktok, Google e Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp) que espalharam a mentira de que o PL das Fake News censuraria versículos da Bíblia e pregações de padres e pastores. A Pública ainda mostrou que o Google gastou mais de meio milhão de reais para promover anúncios contra o PL 2630 nas plataformas da Meta, sua concorrente. O interesse em barrar o projeto de lei é tão grande que as big techs literalmente investiram milhões no lobby contra ele.
Já o Telegram chegou atrasado, se posicionou uma semana depois, mas resolveu se fazer ouvir e mandou para todos os seus usuários uma mensagem contra o projeto — até gente que havia escolhido não receber notificações do aplicativo sentiu o celular tremer com a mensagem mentirosa.
Como sempre, a extrema direita rapidamente repercutiu o texto do Telegram. Essa atitude só reforça e dá um ar oficial às mentiras que eles mesmo disseminaram para tentar manter a internet uma terra quase sem lei, o que serve à forma como fazem política.
Desde que comecei a investigar a movimentação política nas redes sociais, é a primeira vez que me deparo com a união improvável entre bolsonaristas e big techs, que geralmente se posicionam em lados opostos do confronto pela qualidade da informação.
Ao fim daquele 2 de maio, quando o deputado e relator do projeto, Orlando Silva (PCdoB), pediu que o PL 2630 fosse retirado de pauta, percebi que a união improvável havia sido vitoriosa. Foi a confirmação de que, ao menos por enquanto, as mentiras ganharam.
Regular as redes será tarefa difícil, mas como disse à Pública o advogado Francisco Brito Cruz, Diretor do InternetLab, continua como a tarefa da nossa geração.
Enquanto houver gente investindo pesado para enganar os brasileiros, a Pública seguirá investigando. Enquanto extrema direita e big techs estiverem unidas para tirar vantagem da falta de regulação da internet, a Pública seguirá investigando. Tem muito dinheiro financiando a desinformação. Hoje você pode dar uma pequena ajuda para financiar o jornalismo que faz frente a tudo isso. Se puder, apoie a Pública e nos ajude a seguir desvendando as forças que moldam o mundo digital.
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Big techs e bolsonaristas do mesmo lado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU