29 Março 2023
"Bem antes de pedir algo à sinodalidade, como comunidades cristãs, devemos cuidar dela - mesmo quando seu uso pode parecer imediatamente funcional para desencalhar o barco de Pedro dos baixios em que parece ter encalhado. Para sair do berço em que se encontra, a sinodalidade precisa de toda a paciência do camponês de evangélica memória".
O artigo é de Marcello Neri, teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, publicado por Settimana News, 27-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se a sinodalidade é um processo, como parece entender o Papa Francisco, isso significa que ela só se configura quando é exercida concretamente. Ou seja, saberemos quais são suas principais características e as formas pelas quais ela irá reconfigurar a Igreja Católica somente quando aqueles processos que ela desencadeou atingirem um primeiro amadurecimento.
Atualmente, portanto, somos todos aprendizes de feiticeiros no assunto. Claro que não nasce do nada – também tem seus antecedentes históricos na tradição católica, e é exercida por outras Igrejas cristãs. Mas, por mais significativas que sejam essas práticas do passado ou do presente do cristianismo, elas representam apenas pontos de partida para algo que ainda não existe na Igreja Católica que saiu da modernidade.
Uma das grandes dificuldades para dar impulso aos processos sinodais em nossas Igrejas locais é representada pela incongruência entre o atual ordenamento jurídico católico e a própria prática da sinodalidade – se esta última não quiser ser reduzida a um ato retórico de escuta, suportado talvez com algum aborrecimento, que deixa tudo como sempre foi. Resultado, este, não esperado nem mesmo pelos documentos vaticanos que estão acompanhando os processos preparatórios para a celebração do Sínodo sobre a sinodalidade.
Falar em refundação e reconfiguração significa, sem sombra de dúvida, fazer algo: aceitar que não somos mais o que éramos até agora. O que muitas vezes é esquecido, ou escondido, neste momento, é que essa é exatamente a dinâmica que constitui o sentido da tradição católica. É feita de pontos de ruptura porque acompanha a mesma revelação do Deus de Jesus na história humana: construindo, em todas as fases da vida humana, o nexo entre a vivência de Jesus, o testemunho de fé e a história dos homens e das mulheres no tempo comum do viver.
Uma prática que hoje, de forma inédita, pedimos para ser ao mesmo tempo a força do vínculo e da refundação, a sinodalidade, assim que sai de seu berço católico, entra em sofrimento e se presta a situações forçadas que pode esgotá-la antes mesmo que possa se exercer com aquela liberalidade própria de toda figura evangélica.
Bem antes de pedir algo à sinodalidade, como comunidades cristãs, devemos cuidar dela - mesmo quando seu uso pode parecer imediatamente funcional para desencalhar o barco de Pedro dos baixios em que parece ter encalhado. Para sair do berço em que se encontra, a sinodalidade precisa de toda a paciência do camponês de evangélica memória.
E muito antes de ser um poder nas mãos de uns ou de outros, a sinodalidade deve ser entendida como uma força em busca de forma: e é justamente esse o trabalho que ainda não fizemos. O passo a dar, agora que a força da sinodalidade se tornou possível no âmbito da fé católica, é entrar numa fase constituinte que lhe corresponda.
Trata-se, portanto, de encontrar sua forma normativa que lhe permita manter-se: força e processo. Nessa tarefa, tão urgente quanto árdua, podemos encontrar alguma inspiração na transformação que o constitucionalismo ocidental conheceu no século XX – quando a questão de uma reconfiguração radical do poder constituinte na organização fundadora da socialidade humana era reproposta de forma inédita.
Diferentes representações e povos políticos, quase diametralmente opostos entre si, viram-se unidos perante o dever desse exercício comum de uma responsabilidade constituinte. E lançaram mão dessa tarefa lendo a realidade social que tinham diante dos olhos, conscientes de que o vínculo da representação os subordinava ao cidadão e à cidadã em toda a concretude de sua vida e de suas experiências. Os textos constitucionais que surgiram dessa fase do século XX não foram escritos em função da instituição (o Estado), mas em prol da socialidade e da cidadania - sem as quais a instituição permanece apenas um receptáculo vazio de exercício do poder.
Hoje, na Igreja Católica, flui uma força constituinte, justamente a sinodalidade, em busca da sua forma: para que essa força não se disperse, e não seja dobrada como função exclusiva dos vários povos católicos que compõem a Igreja, surge uma necessidade urgente de uma verdadeira e própria fase constituinte de toda a Igreja. Onde a responsabilidade decisiva de dotá-la de um quadro normativo fundador e comum pede a todos que ultrapassem o horizonte ideológico dos seus interesses imediatos, para implementar uma verdadeira Constituição da Igreja Católica.
Uma Constituição que não tenha apenas função de garantir, ou seja, de limitar o exercício do poder institucional, mas também um caráter de atuação: ou seja, remeter toda a comunidade eclesial ao dever de realização da forma constitucional que canaliza a sinodalidade como força e processo para aquela refundação da Igreja Católica à qual ela deveria conduzir.
Fábio Cittadini, 28 de março 2023.
Considero interessante esse tipo de notas para uma reflexão mais orgânica, mais sistemática. Partilho plenamente (a ideia de uma "incongruência entre ao atual ordenamento jurídico católico e a própria prática da sinodalidade"). Acredito que se possa dizer que a prática sinodal, não disciplinada e, portanto, deixada à boa vontade de alguns esteja fora de lugar em relação ao ordenamento canônico que não a codificou como, ao contrário, hoje, dada a urgência, mereceria. É uma pena ouvir poucas vozes a esse respeito... é como se não fosse percebida uma falta. O ponto crucial da querela Alemanha-Santa Sé está todo aqui. Se fosse dissolvido, poderiam ser evitadas rupturas inoportunas de um tecido eclesial, já desgastado em todo o Ocidente devido aos abusos.
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Sinodalidade: por uma fase constituinte. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU