20 Janeiro 2023
“A cada ato de inventar a história de um santo queer, as teorias queer lembram os católicos, vem com um sentimento de luto pelo que está categoricamente ausente ou apagado da hagiografia católica canônica: luto por ancestrais que podem nunca ter estado lá, ancestrais e pessoas sagradas cujos nomes que nunca saberemos”, escreve Flora X. Tang, doutoranda de Teologia e Estudos de Paz na Universidade de Notre Dame, EUA, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 07-01-2023. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Existe um cânone não oficial de santos católicos homossexuais. Quem conhece, sabe. Estes são santos católicos históricos, canônicos e aprovados pelo Vaticano – santos pelos quais nossas avós, bisavós e ancestrais na fé oraram por séculos – que nos últimos 50 anos foram rotulados não oficialmente, mas popularmente, como “queer”.
Podemos pensar nos santos Sérgio e Baco, soldados romanos e mártires cristãos no final do século III, venerados por católicos homossexuais como modelos de amor entre pessoas do mesmo sexo no cristianismo primitivo. Ou podemos pensar nas santas Perpétua e Felicidade, mártires egípcias do século II, conhecidas por seu profundo amor uma pela outra. O fato de Santa Joana d'Arc se travestir em uniforme masculino, junto com seu martírio nas mãos da Igreja, permitiu que muitos a venerassem como uma santa trans ou não conforme ao gênero. O mártir São Sebastião, do século III, é conhecido como um símbolo da beleza masculina e do desejo homoerótico.
A lista continua. As passagens bíblicas que contam as histórias de intimidade entre Rute e Noemi ou Davi e Jônatas são frequentemente proclamadas em casamentos cristãos queers. Ícones de Perpétua e Felicidade pintados pelo irmão Robert Lentz começaram a aparecer em círculos queer e em lojas católicas oficiais desde a década de 1990, aludindo à expressão queer desses e de outros santos sem nunca afirmá-lo abertamente.
A iconografia de ancestrais queer como Harvey Milk, Matthew Shepard e Marsha P. Johnson também começou a emergir, tornando mais complexo quem entendemos ser um santo e um ancestral espiritual.
O catolicismo queer, para muitas pessoas que se identificam com ele, envolve uma prática espiritual de se agarrar a traços queers na história da Igreja, de capturar vinhetas de presença queer. Olhamos para os momentos de amizade entre pessoas do mesmo sexo nas Escrituras e na tradição como modelos para nossa não binaridade como amor cristão. Buscamos razões para acreditar que as pessoas queer sempre estiveram presentes na Igreja ao longo da história.
O catolicismo queer exige uma prática espiritual de imaginação ousada e busca histórica, apesar do que está registrado. Usando imaginação ousada e persistência, nos encontramos na alteridade dos santos da Igreja e no coração do cristianismo.
Em outras palavras, o catolicismo queer depende de alguma forma de invenção em sua narrativa e rastreamento de linhagem. Nossa espiritualidade repousa sobre o reconhecimento de que talvez nunca saibamos verdadeiramente se os santos gays são realmente gays ou não. No entanto, continuamos a imaginar um passado (e um futuro) no qual vestígios de nossos eus queer estão presentes na linhagem espiritual da Igreja.
O termo “invenção”, quando usado lado a lado com “história”, muitas vezes contém conotações negativas. “Por que inventar santos católicos queer, quando é mais fácil simplesmente deixar a Igreja?”, podem, aqueles que estão fora da Igreja, questionar aos católicos queer.
As mesmas práticas queer de invenção também são castigadas pelos católicos que se apegam a uma imaginação heterossexista. Aos olhos deles, os católicos queer estão apenas “inventando as coisas”, ou pior, apenas criando escândalo ao sugerir traços queer em santos.
No entanto, a invenção como práxis não é nova – mas talvez até central – para nossa prática espiritual católica em relação à veneração dos santos. Olhando para a história católica como um todo, podemos ver que muitas histórias dos santos são também histórias de invenções do passado. Essas hagiografias são inventadas não por causa da falsidade, mas pelo desejo de um ancestral espiritual que compartilhe de sua fé e de suas lutas pela sobrevivência.
Talvez nunca saibamos como e se a impressão do véu de Santa Verônica do rosto sofredor de Cristo, o voo de Padre Pio para preservar uma cidade devastada pela guerra, as rosas de Nossa Senhora de Juan Diego e inúmeras outras histórias de santos ocorreram na história. No entanto, a Igreja se baseia nessas histórias de nossos santos como força para alimentar nossa fé em tempos de convulsão, perseguição e luta por identidade.
Falar de santos como “inventados” não é dizer que esses santos e suas histórias não eram reais, mas sim que resgatar as histórias de nossos santos requer fé e imaginação, ao invés de uma mera recuperação de fatos históricos.
Para as comunidades católicas de cor, uma prática espiritual semelhante de invenção também é necessária quando se trata de procurar santos que compartilhem nossa identidade racial. Onde estão meus antepassados católicos? Eu perguntei isso antes da minha confirmação, depois de não conseguir encontrar uma santa chinesa que não fosse conhecida principalmente por sua morte martirial ou humilde servidão.
As narrativas oficiais que cercam os santos do Sul Global raramente escapam do imaginário colonial exótico: a maioria dos santos asiáticos são mártires nas mãos de um estado anticristão; muitos santos indígenas são elogiados por sua conversão, enquanto a violência colonial em torno das conversões indígenas é escondida.
Por vezes, os vestígios da nossa presença na história correm o risco de se tornar uma presença essencializante. Os poucos santos não brancos são tratados como representação totalizante de suas identidades marginalizadas, deixando os católicos não brancos sedentos por algo mais, alguém mais.
Para católicos queer e marginalizados, recuperar vestígios de nossa presença de um arquivo pré-determinado não é suficiente. Em vez disso, um tipo diferente de projeto acena para o cristão queer e moreno: a invenção, juntamente com o luto pelo que está irrecuperavelmente ausente, torna-se uma prática espiritual necessária para todos aqueles que não conseguem encontrar seus próprios ancestrais e santos nos cânones da história da igreja.
A cada ato de inventar a história de um santo queer, as teorias queer lembram os católicos, vem com um sentimento de luto pelo que está categoricamente ausente ou apagado da hagiografia católica canônica: luto por ancestrais que podem nunca ter estado lá, ancestrais e pessoas sagradas cujos nomes que nunca saberemos.
Através deste duplo ato de lamentar o que está ausente e inventar uma nova possibilidade de presença, os fragmentos incompletos da história da igreja e suas inúmeras possibilidades vêm assombrar e perturbar a todos nós, exigindo que permaneçamos abertos para quem são nossos santos e quem são e quem poderiam ser nossos santos.
Volto, no final do meu dia de trabalho, ao meu altar doméstico de santos queer, cujos espaços em branco entre toda a iconografia queer testemunham os muitos ancestrais católicos e não católicos que nunca conhecerei. Acendo uma pequena vela sob o altar, não apenas em memória de Perpétua e Felicidade, Sérgio e Baco... acendo uma vela em memória de cada queer que já rezou a Ladainha dos Santos, imaginando e encontrando ecos de si mesmos nos silêncios entre cada invocação e cada nome.
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O que a teoria queer me ensinou sobre os santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU