07 Janeiro 2023
Passaram-se três anos desde que Enzo Bianchi não está mais em Bose, na comunidade que fundou e governou. Um exílio que se assemelha a um édito medieval.
Três anos é também o tempo de uma pandemia que ainda vivemos, com menos angústia, mas com igual preocupação. A natureza humana tem a capacidade de sanar as feridas, redimensionar os dramas, curar os traumas. O tempo é uma boa medida para resolver questões que se acreditava serem incuráveis.
E as do ex-prior de Bose? Revejo Enzo Bianchi. Sua energia que transmite na palavra me parece inalterada. Assim como está inalterada a escrita, direta e forte. Recentemente, ele publicou um pequeno livro pela editora Il Mulino, “Cosa c’è di là” [O que tem lá], uma meditação sobre o que nos espera, admitindo-se que se creia nisso.
Sei que esta nossa conversa vai ser publicada na véspera de Natal. É justo. É justo nesse dia pensar em milagres. Iosif Brodsky, nas “Poesias de Natal”, escreve que os milagres são “atraídos pela terra, conservam as direções, ansiando tanto por desempenhar a função prescrita, por chegar ao destino até mesmo no deserto”. Mas talvez o maior milagre, comenta Bianchi, seja reconhecer o próprio pecado.
A reportagem é de Antonio Gnoli, publicado no caderno Robinson, do jornal La Repubblica, 24-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Você já pecou?
É claro, mas sem nunca cair naqueles que eu julgo serem os pecados graves.
Quais?
Os pecados contra os pobres, os pecados de hipocrisia de certos eclesiásticos e, além disso, as traições entre irmãos.
Você me leva a pensar em sua história pessoal.
Honestamente não poderia ignorá-la, mesmo que quisesse.
Você se retirou para sua terra de origem, Monferrato.
Não foi fácil. Mais uma prova vivida na solidão.
A solidão não deveria pesar para um monge.
Sempre pensei que a solidão é uma condição que exige a presença dos outros. Caso contrário, você está sozinho. E vulnerável.
Você pensa em Bose?
Como poderia não fazer isso? É um longo trecho de estrada percorrido. Agora que o Natal se aproxima, lembro-me do que foi a cansativa conquista de uma alegria desejada.
Cansativa por quê?
Penso novamente nos primeiros Natais, na minha infância. A pobreza, eu que, aos oito anos, perdi minha mãe. A espera do Natal era um misto de esperança e tristeza. Eu montava o presépio com as figurinhas, papel e cola. A mesma pobreza ou, melhor, essencialidade, eu a vivi nos primeiros anos em Bose. Natais com poucas pessoas e o duro trabalho para fazer a comunidade crescer. Somente nos últimos anos é que esse evento foi enriquecido pela presença humana. Eu preparava o almoço – sempre gostei de cozinhar – para cerca de 80 comensais. Havia irmãos e irmãs e as muitas pessoas sozinhas para compartilhar a alegria da espera.
A alegria da qual você às vezes fala não é apenas espírito, não é apenas oração.
Reza-se de muitos modos, e o que seria do espírito sem o corpo? O que seria sem os outros? Não pode haver Natal sem verdadeira partilha.
No próximo ano, você completará 80 anos. Que tempo você acha que vive?
É uma idade cansativa para mim.
O subtítulo de seu novo livro é “Hino à vida”. Você a viveu com plenitude?
Plenitude significa justamente não deixar nada de fora: as desilusões e as alegrias, as amarguras e o renascer, aquilo que fomos e aquilo que nos tornamos. O hino à vida, mais do que um ponto final, assemelha-se a um ponto de interrogação. Pois bem. Vamos ver o que vem depois.
Grande pergunta. Lendo-lhe, percebi que você está confiante.
Como eu poderia não estar? Digo isso como cristão.
Como você imagina esse “além”?
Quando criança, eu ficava perplexo ou, melhor, angustiado sempre que me falavam do além.
O que lhe incomodava?
Era como se aquele tempo sem fim fosse inteiramente ocupado pela contemplação beata do divino. Uma imagem que provocava em mim uma forte angústia, tanto mais aguda quanto era evidente a minha recusa em me desligar da vida terrena. Você vê uma criança dentro dessa fotografia? Com o tempo, recompus a imagem.
Você colocou mais cor ou o quê?
Introduzi a convicção de que uma vida de verdade não é feita apenas de renúncias e sacrifícios, mas também inspirada em um grande ensinamento: para entender quem somos, não é preciso desprezar o mundo, mas amá-lo e deixar-se atrair por ele.
Não há o risco de entender mal esse amor tão terreno?
O risco, o erro, o pecado sempre estão presentes. Mas o que eu pretendo reiterar é o vínculo indissolúvel entre espírito e corpo. O corpo vive do espírito, e não há espírito sem o corpo. Como monge, ao longo de toda a vida, tenho me esforçado para sentir esse abraço com a natureza. Com a floresta, a terra, os animais. E, quando eu sinto tal sensação, compreendo o sentido da comunhão que é mais do que simples solidariedade. E tudo isso me leva a suspeitar que escrevi e pensei demais.
O que lhe faz supor isso?
Nestes anos finais, parece-me que acentuei a atenção às coisas mais simples da natureza. Surpreendo-me diante das árvores e às vezes me parece espontâneo falar com elas, e fico encantado com as ervas aromáticas, as flores, o animal selvagem que atravessa o meu caminho. Há uma profundidade de destino em tudo isso que me comove. Eu não achava que poderia amar a terra tão intensamente a ponto de formular o mandamento “ame a terra como a si mesmo”.
Não é uma forma de spinozismo?
Não se trata de panteísmo nem de idolatria. Verdadeiramente, eu amo esta terra porque venho da terra e a ela voltarei, e sinto uma grande dívida para com a natureza.
É como se você revestisse a esperança com folhas e ramos, com vento e ar.
Bem, a grande esperança é aquela que eu encontro na Bíblia, quando diz que haverá um novo céu e uma nova terra, e que neste mundo nada se perderá, mas tudo será transfigurado.
Qual é a força capaz de transfigurar tudo isso?
Identifico-a no amor, um sentimento que nunca me abandonou e que deu sentido à minha vida, sobretudo no encontro com a vida dos outros. Confesso-lhe que não me arrependo de nada, porque tudo o que fiz, eu vivi ao máximo.
Sinto como que uma amargura em suas palavras, como se – e já mencionamos isto antes – esse amor tivesse sido posto a dura prova pela traição e pela deslealdade.
Acredito que o que cada um viveu não pode ser esquecido. Mesmo quando perdoamos, a ferida permanece dentro de nós. É terrível reconhecer que o amor pode ser traído, mas é o destino do amor que, mesmo quando é traído, possa continuar existindo e não deva ser desmentido. Afinal, é a grandeza do amor humano: ele nos oferece a oportunidade de vencer a condição negativa da morte. E, portanto, vencer também a traição. Não a apaga, mas a vence, mesmo quando não se consegue conter a dor que provoca em nós.
Gostaria de deslocar essa sua menção à dor para outro plano. Todo seu discurso é um grande hino à vida. Mas, quando a vida está acabando, você diz, e eu digo com palavras elementares e diretas, não é bom confiar na dor, em sua ilusória grandeza.
Sinto-me distante de uma interpretação “dolorista” do cristianismo. Acho que a dor e os sofrimentos são insensatos. E, no fundo, onde há uma pessoa – um homem ou uma mulher – que sofre, aí somos chamados a ficar a seu lado, muitas vezes sem palavras, porque as palavras podem ser inadequadas, mas sabendo que a resistência à dor, o seu combate é uma batalha de humanismo e de cristianismo. Se não fôssemos capazes de enfrentar essa batalha, também não seríamos capazes de compaixão. Pois bem, para ser mais direto, é preciso passar pela dor do outro sem sublimá-la, mas combatê-la para torná-la ao menos suportável.
E isso também vale para o fim da vida?
Não pode ser uma exceção, por mais que pareça ser no fim.
Explique.
Por que a saída da vida deve ser uma experiência tão dolorosa? E, a partir dessa interrogação, surge outra pergunta: por que continuamos pedindo para morrer logo?
Você dá a resposta em “Cosa c’è di là”, quando escreve que “a dor é desumana, e, por isso, não ouso condenar quem se suicida ou pede para ser ajudado para pôr fim ao sofrimento”.
Estou profundamente convencido de que é preciso morrer preservando a própria dignidade.
Suas posições têm gerado muitos embates na Igreja. E, recentemente, nas colunas deste jornal, na coluna da segunda-feira, você sublinhou o risco de um catolicismo sem cristianismo.
Lembro-me bem desse artigo, uma espécie de corolário do livro que você citou e que indica uma urgência em torno de alguns temas sobre os quais caiu o silêncio. No mundo católico, existe muita ética, e a ética é dada pelos homens. O cristianismo não pode ser reduzido a uma experiência ética. Eu gosto de uma fórmula um pouco paradoxal: o cristianismo é uma religião que pede a saída da religião, é a esperança de que a morte não é o fim de tudo.
Não lhe parece que também é responsabilidade da Igreja cuidar dos problemas sociais?
Parece-me óbvio repeti-lo. Ai se o cristianismo não fosse profético em relação à injustiça e à opressão. Mas sua mensagem não pode se reduzir a isso. Como cristãos, temos a capacidade e o dever de pedir liberdade, igualdade, fraternidade. São os valores já expressados pelo Iluminismo. Mas a esperança de que a morte não seja o último porto, a última palavra é a própria essência do cristianismo. E então a pergunta: Igreja, quem você é? Não basta o decálogo de como devemos viver ética e moralmente; a esta altura, permanecemos no nível da lei. Permanecemos no nível do ser humano capaz de acolher essa visão mesmo sem Deus.
Uma frase de seu livro me surpreendeu: “Não ouso sequer deixar entrar nos meus pensamentos Deus, essa palavra que, quanto fico mais velho, mais sinto insuficiente, até mesmo ambígua”.
Enquanto o cristianismo não se tornou uma religião de Estado, grosso modo durante o terceiro século, os Padres da Igreja defendiam que Deus era uma palavra insuficiente. Nós não sabemos de Deus.
A Bíblia mostra o contrário.
A Bíblia nos dá uma imagem remota de Deus. O relato direto de Deus é feito por um homem que é Jesus de Nazaré. E esse relato nos mostra que não se pode dizer Deus sem o ser humano, e o ser humano sem Deus. Quando escrevi que Deus é uma palavra ambígua, queria dizer que ela é usada por todas as religiões e pode mudar de cultura para cultura. O Deus que eu imagino pode ser muito diferente daquele que você imagina.
Há alguns meses, a Bíblia editada por você, com novas traduções e novos comentários, foi publicada na coleção “Millenni”, da editora Einaudi. O que foi edificado sobre esse livro inesgotável?
É um dos pilares da cultura ocidental. Uma espécie de grande código ao qual recorrer. Mas não é um simples livro, pois nele convivem inúmeros textos compostos ao longo de milhares de anos por autores muito distantes, também geograficamente: do Iraque a Roma. Considero a Bíblia como a grande biblioteca da humanidade, dentro da qual está resumido o ensinamento dos Evangelhos, para os quais, além da morte, há a esperança quanto ao nosso destino. Eu tinha 11 anos quando ganhei uma Bíblia. Eu a leio quase todos os dias e encontro nela razões sólidas para esperar em um diálogo contínuo com os outros. Lê-la me faz me sentir como um viandante que ainda caminha sobre a terra aproximando-se dos 80 anos.
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O cristianismo é um hino à vida. Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU