22 Dezembro 2022
A mais recente é Chiara Ferragni, alvo no Instagram após um vídeo usando lingerie. Depois de mais de 7.000 comentários, reagiu: "Isso não é liberdade de pensamento." De fato. Basta estar em uma rede social, e basta uma visita no perfil de uma mulher conhecida, Laura Boldrini, Michela Murgia, Vera Gheno, Ilaria Cucchi e outras. Basta ler as torrentes de insultos que também vêm de pessoas supostamente cultas e esclarecidas, e nos perguntamos por quê. Há quem esteja trabalhando nisso: são duas sociólogas, Lucia Bainotti e Silvia Semenzin (autoras do livro Donne tutte puttane: revenge porn e maschilitâ egemone [Mulheres todas prostitutas: revenge porn e machismo hegemônico], publicado pela Durango), que se questionam justamente sobre a natureza das plataformas digitais e a forma como o ódio às mulheres está crescendo. O quanto, é difícil dizer exatamente.
“No entanto, sabemos com certeza que as mulheres são as primeiras vítimas da web em termos de ataques, ameaças e humilhações. Isso é especialmente verdadeiro no caso de mulheres que se expõem (políticas, jornalistas, ativistas, influenciadoras) que, em comparação com seus colegas do sexo masculino, recebem cerca do triplo de violência”, afirmam as duas estudiosas.
A entrevista é de Loredana Lipperin, publicada por La Stampa, 21-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
As várias plataformas sociais, e sobretudo aquelas que vocês examinaram, favorecem o desenvolvimento dessas reações? E, se sim, como?
A violência de gênero e a misoginia on-line são amplificadas pelas tecnologias digitais, tornando esses comportamentos mais invasivos, onipresentes e até virais, fornecendo um novo e perigoso disfarce para a violência de gênero. As plataformas digitais apresentam características sociotécnicas particulares (chamadas affordances) que podem facilitar e amplificar as formas de violência e de misoginia digital. Essas affordances também têm um componente de gênero: têm o poder de orientar as práticas individuais de maneira diferente com base no gênero. Assim, contribuem para criar ambientes propícios ao compartilhamento de mensagens misóginas, destinadas a replicar as configurações sociais que reproduzem as estruturas de desigualdade de gênero.
Qual a diferença entre o ódio praticado nas redes sociais visíveis como Facebook e Twitter e aquele que se move em grupos mais ocultos como os do Telegram e do WhatsApp?
Por um lado, as plataformas acima mencionadas ajudam a moldar a misoginia on-line. O fato de, por exemplo, ser possível usufruir de um ‘pseudoanonimato’ no Telegram, permite que grupos fechados possam ser criados com um número muito alto de usuários e a própria plataforma não adote técnicas de moderação de conteúdo em casos de violência de gênero, participa da criação de um clima de impunidade compartilhado pelos usuários, tornando a violência mais difícil de rastrear e punir. Existe também uma diferença no tipo de ódio on-line contra as mulheres que é articulado nas conversas públicas das plataformas em relação àquelas dentro das mensagens ou grupos privados: de um determinado ponto de vista, mídias sociais como Facebook, Instagram e Twitter tornam-se megafones de instâncias antifeministas e ataques públicos às mulheres que se empenham em fazer ouvir a sua voz. Muitas vezes, trata-se de uma verdadeira e própria resposta ao crescimento do feminismo on-line nos últimos anos. Grupos fechados no Telegram e WhatsApp muitas vezes funcionam como locais para organizar e coordenar ataques contra mulheres, como no caso de compartilhamento não consensual de material íntimo. Dentro desses grupos predominantemente masculinos, no entanto, também se nota como a violência contra as mulheres é enormemente normalizada e se torna uma prática central na construção de relações homossociais entre homens.
A construção de uma masculinidade tóxica assenta-se numa necessidade de autoconsolação face a uma feminilidade profundamente diferente daquela das gerações anteriores? Que faixas etárias abrange? E quando são as próprias mulheres que atacam outras mulheres?
Trata-se sobretudo de uma construção da masculinidade, que diz respeito a todas as faixas etárias, visando a reapropriação do poder masculino, cada vez menor face a pedidos de igualdade e independência. Trata-se de uma forma através da qual o privilégio masculino e o status quo são mantidos diante da difusão das instâncias do movimento feminista. Hoje existem muitos modelos para a construção das masculinidades (deliberadamente no plural). Existem formas de masculinidade caracterizadas por comportamentos mais atenciosos e sensíveis do que aqueles das gerações anteriores: até a chamada masculinidade tóxica está mudando, basta pensar nos incels, um grupo de homens que se definem como "involuntariamente celibatários" e que expressam (a maioria das vezes em ambientes digitais) autocompadecimento, frustração e, ao mesmo tempo, agressividade e violência contra mulheres que não os consideram válidos como parceiros sexuais. Frequentemente, as formas de masculinidade hegemônica são sustentadas por mulheres que criticam outras mulheres. Nesses casos, as mulheres tornam-se cúmplices da ordem patriarcal, replicando aqueles comportamentos que visam afirmar a ordem "‘natural" das coisas e as relações "tradicionais" (do seu ponto de vista) entre os gêneros, punindo com difamação e ódio quem se desvia desses padrões.
Como vocês trabalham? Quais são os resultados que vocês estão obtendo?
Primeiro, continuamos a monitorar como a violência de gênero on-line e o compartilhamento não consensual de material íntimo se desenvolvem. Por se tratar de fenômenos em constante mutação, que acompanham a evolução das tecnologias digitais, também temos o cuidado de levar em consideração os novos assédios on-line no Metaverso e o desenvolvimento dos deepfake porn (série de técnicas de sintetização da imagem que através da inteligência artificial substituem os rostos de atores e atrizes pornográficos pelos de pessoas comuns. Assim, qualquer pessoa pode se tornar objeto de conteúdo pornográfico).
Tende-se a subestimar esse fenômeno, a defini-lo como “irônico” e inofensivo.
Obviamente não é. A violência contra as mulheres ainda costuma ser rotulada por muitos como "‘viril", como "coisa de homem", uma brincadeira da qual as mulheres devem aprender a se proteger, mas que basicamente não tem nenhuma malícia. Essa crença está enraizada na chamada “cultura do estupro”, na qual a violência de gênero (seja qual for) é vista como um fenômeno impossível de erradicar e derrotar, já que os homens são naturalmente inclinados a assumir atitudes violentas e agressivas e, portanto, torna-se dever da mulher aprender a não se expor a isso.
Assim, a divulgação de imagens íntimas de alguém, os "votos" para ser estuprada ou o envio de uma "dick pic", são justificados como uma brincadeira, acabando por desresponsabilizar o agressor e culpabilizar a vítima que "pediu por isso". É uma ideia enormemente nociva para a segurança das mulheres, porque torna adiável a necessidade de promover o conceito de consenso e abre as portas a uma normalização de fenômenos que, nos casos mais graves, podem levar ao feminicídio ou ao suicídio.
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“Violência e misoginia nas plataformas web: assim triunfa a cultura do estupro”. Entrevista com Lucia Bainotti e Silvia Semenzin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU