31 Outubro 2022
Em 2007, quando o jornalista Dan Saladino viajou para a Sicília para gravar seu programa de rádio The Food Program para a BBC, teve que mudar o roteiro. Tinha pensado em falar sobre a cultura, as tradições e a paisagem dos campos de laranjas e limões que dominavam o leste da ilha por séculos, mas ao conversar com os agricultores muitos lhe disseram que aquela seria sua última colheita.
A reportagem-entrevista é de Laura Rodríguez, publicada por El Diario, 03-11-2019. A tradução é do Cepat.
No ano seguinte, não colheriam as laranjas das árvores. Seus preços não podiam competir com os das frutas que vinham de lugares com grandes plantações. Não era lucrativo para eles. Naquela noite, Saladino jantou com agricultores e produtores da região. Todos os cinco pratos que foram servidos incluíam como ingredientes as laranjas sanguíneas que não queriam mais cultivar.
A partir de seu programa de rádio, o jornalista continuou investigando por 15 anos. Seu livro Eating to Extinction: The World's Rarest Foods and Why We Need to Save Them (Comer até a extinção: os alimentos mais raros do mundo e por que precisamos salvá-los), publicado em 2021, descreve as viagens que fez para descobrir o que estava acontecendo com essas variedades cada vez mais ameaçadas e por que tinham sido abandonadas.
“Minha pequena contribuição é tentar mostrar como o sistema alimentar funciona hoje, como funcionava e por que o que muitas vezes é visto como uma tradição pitoresca é, na verdade, um recurso essencial para o nosso futuro”, afirma.
Pede para que pensemos sobre esses dados: apenas quatro corporações controlam 60% da maior fonte de nossos alimentos, as sementes. Metade dos queijos do mundo é produzido com bactérias e enzimas que são comercializadas por um único laboratório. Uma em cada quatro cervejas que bebemos é fabricada por uma única cervejaria. A produção global de suínos depende principalmente de uma raça. E das 1.500 variedades de banana que conhecemos, a Cavendish domina as monoculturas de todo o planeta.
“Esse tipo de homogeneidade nunca se viu antes”, diz Saladino, “e levanta grandes questões sobre o futuro de nossa alimentação e seus desafios. Como vemos agora na Ucrânia, uma das consequências de depender das grandes plantações em regiões altamente produtivas é que a resiliência diminui. Não só porque torna a cadeia de alimentos mais vulnerável, mas porque acaba com culturas que foram construídas ao longo de séculos e economias locais que dependem delas”. Há décadas, adverte, temos uma abordagem linear e simplista do progresso e da produção. Ignoramos a importância da diversidade e a complexidade dos sistemas que modificamos.
O maior declínio na diversidade de cultivos ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, explica, quando os cientistas buscaram aumentar a produtividade para evitar a fome que era aguardada. A Revolução Verde, como foi chamado esse novo modelo, baseou-se na seleção genética de variedades mais produtivas, na mecanização de grandes monoculturas, no uso de fertilizantes e agrotóxicos e na aplicação da técnica de irrigação.
Os resultados foram espetaculares: a produção de cereais triplicou para uma população que estava duplicando, e o grão que sobrava serviu para alimentar o rebanho, fazendo com que, em 60 anos, quadruplicasse. “Mas foi uma sequência de etapas, a partir de descobertas científicas e tecnológicas, que foram acontecendo de forma reducionista”, diz Saladino.
“Ao se concentrar apenas na quantidade, ignoraram outros fatores como a degradação dos solos, a necessidade de maiores quantidades de fertilizantes em consequência dessa degradação, a dependência de combustíveis fósseis e a vulnerabilidade a pragas devido à semelhança genética dos cultivos”, afirma.
O resultado, aponta este autor em seu livro, é que doenças como a fusariose do trigo, a doença do dragão amarelo nos citros ou o mal-do-Panamá em bananas Cavendish colocaram em perigo plantações em todo o mundo e ameaçaram com a fome grandes populações. Os porcos, as galinhas, as vacas também se tornaram, de diversas formas, mais vulneráveis. O risco de doenças como a gripe aviária ou suína é muito maior nas granjas industrializadas que criam apenas espécies geneticamente selecionadas por sua alta produção.
Dan Saladino viajou da Austrália ao Peru para falar com aqueles que protegem alimentos ameaçados de extinção. Muitos deles são agricultores ou moradores locais. “Com o desaparecimento dessas variedades, viam que perdiam suas tradições e o controle sobre suas vidas e a economia local, e que dependiam cada vez mais de empresas ou sistemas que nem sequer entendiam completamente”. Outros são cientistas que, conscientes dos riscos, estabeleceram depósitos onde são conservadas espécies que, para Saladino, representam milhares de anos de coevolução entre os cultivos, o meio ambiente e os climas onde se desenvolveram.
“Agora, a guerra na Ucrânia expôs nossa vulnerabilidade. O impacto da produção em uma parte do mundo coloca outros lugares em risco de não ter alimentos suficientes. Por isso, há governos que tomaram medidas por causa da instabilidade. A Índia parou de exportar trigo e está considerando voltar à produção de milho, substituído décadas atrás pelo trigo e o arroz. O Reino Unido está elaborando um plano para produzir mais alimentos no país. Penso que é inevitável que vejamos uma mudança”, aponta.
Em 2017, no Fórum de Bens de Consumo, em Berlim, o então diretor da multinacional Danone, Emmanuel Faber, disse que o sistema tinha chegado ao seu limite. Durante a conferência, sugeriu que a ideia de que o alimento pode ser considerado uma mercadoria a mais à mercê do mercado era insustentável e que se não ocorria mudança na indústria, era só porque o consumidor ignora como funciona.
O sistema desconectou completamente os indivíduos de sua própria alimentação, alertou. “Faber reconheceu que estamos fracassando com os alimentos e que para garantir o futuro precisamos das variedades genéticas de alimentos que estamos deixando morrer”, disse Saladino. Naquela conferência, os números foram impactantes: no mundo, dois terços de nossa alimentação vêm de apenas nove indústrias, 40% do solo já está degradado e a indústria de laticínios, em alguns países como os Estados Unidos, depende 99% de uma única raça de vaca: a holandesa.
As quatro companhias que fornecem ao mundo mais da metade de suas sementes são Corteva, ChemChina, Bayer e BASF. Todas começaram como empresas químicas, mas aos poucos foram se interessando pelo mercado de sementes e começaram a comprar empresas menores. Hoje, essas companhias vendem “pacotes agrícolas” que, além de sementes, incluem seus próprios agrotóxicos e fertilizantes.
“É preciso questionar se companhias desse tamanho podem prover a diversidade proposta no livro”, avalia Saladino. “Assim como estamos presos em um sistema, essas companhias estão presas em uma forma de operar que se baseia em consolidar empresas cada vez maiores”, afirma.
Saladino destaca que os governos gastam milhões em subsídios que favorecem esse modelo: milhões de dólares em monoculturas de milho, na América do Norte, de euros em culturas de trigo cada vez mais homogêneas, na Europa, e de yuans para enviar mais navios de pesca para águas superexploradas.
“Não haverá uma mudança radical enquanto os bilhões de bilhões que sustentam o sistema não forem redirecionados e alterados”, prevê. “Os subsídios sustentam o sistema e são motores de como os alimentos são produzidos e como o mundo é alimentado”, conclui.
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“Temos uma abordagem linear e simplista da produção de alimentos”. Entrevista com Dan Saladino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU