11 Outubro 2022
A anexação dos territórios do Donbass à Federação Russa após um referendo sem confiabilidade democrática (23-27 de setembro) provoca o afastamento das dioceses envolvidas da Igreja ortodoxa de Onofre (pró-Rússia), o crescimento da suspeita do outras Igrejas (ortodoxas e católicas) contra esta última e a irritação do poder político ucraniano que se encaminha para uma legislação restritiva e talvez punitiva. Volta à tona a pergunta sobre qual será o panorama das Igrejas no país após a guerra.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada em Settimana News, 08-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No salão São Jorge do Kremlin, em 30 de setembro, o presidente da Federação Russa e os representantes das áreas do Donbass (Donetsk, Luhansk, Zaporozhye e Kherson) assinaram o ato de admissão desses territórios à Federação.
Entre as centenas de presentes, estavam os representantes do Patriarcado de Moscou, mas também três expoentes locais da Igreja Ortodoxa Ucraniana pró-Rússia de Onofre. Esta reafirmou imediatamente seu apoio “completo e incondicional” à soberania e integridade do Estado: “Os gestos de alguns membros do clero que não se adequam ao direcionamento oficial da Igreja expressam sua escolha política pessoal da qual carregam toda responsabilidade como cidadãos ucranianos”.
Foi muito dura a reação do governo. O conselheiro do presidente Zelensky, Mikail Podolyak, disse que os cidadãos ucranianos presentes no Kremlin devem ser considerados colaboracionistas do Exército invasor e, portanto, devem ser processados e presos. E “isso também vale para os representantes da Igreja Ortodoxa Ucraniana” pró-Rússia. O parlamento ucraniano é instado a esclarecer por lei a configuração das Igrejas após a guerra.
O Conselho Pan-Ucraniano de Igrejas e Organizações Religiosas, órgão que representa 15 Igrejas e grupos religiosos, ou seja, 95% dos fiéis do país, havia se manifestado em termos claros contra a organização dos referendos. Eles violam os direitos dos cidadãos, humilham as pessoas e não têm nenhum reconhecimento internacional. O Estado russo deve renunciar ao “plano criminosa de anexação”. Seu comportamento é inconciliável com os valores do cristianismo, do Islã e do judaísmo.
O primaz da Igreja ucraniana autocéfala (ligada a Constantinopla), Epifânio, denuncia mais uma prova do “ortodoxismo” da Igreja russa, que paganizou a tradição ortodoxa, tornando-a uma religião em benefício do poder, aquela que Putin evocava em um discurso em Kiev de julho de 2013: “A nossa unidade espiritual é tão sólida que não é afetada por nenhuma iniciativa de nenhuma autoridade: nem das governamentais, nem, ousaria dizer, das eclesiásticas. De fato, seja qual for a autoridade que conduz o povo, nenhuma pode ser mais forte do que a do Senhor. Nada pode ser”.
Antes da agressão russa contra uma população de 44 milhões, 62% eram ortodoxos, 9,5% greco-católicos (também conhecidos como uniatas), 1,2% católicos de rito latino, 8,9% “sem denominação confessional”, 15,2% não religiosos. Dentro de 62% dos ortodoxos, 18,6% afirmavam pertencer à Igreja autocéfala de Epifânio, 13,6% à Igreja ortodoxa pró-Rússia de Onofre, 2,3% à Igreja de Filarete (diferente da de Epifânio e oposta à de Onofre).
Atualmente, sobre o tema da anexação do Donbass à Rússia, todas as três Igrejas estão alinhadas pela unidade nacional, contra a Rússia de Putin e a Igreja Ortodoxa de Moscou.
A Igreja ortodoxa de Onofre, pró-Rússia, é a mais exposta, apesar da decisão de um concílio reunido às pressas que, em 27 de maio passado, se pronunciou pela total autonomia em relação a Moscou em uma plataforma muito semelhante à autocefalia.
Uma escolha que subverteu a tradicional proximidade com o patriarcado russo e obrigou a marginalizar várias figuras ancoradas na obediência russa, acelerando um pertencimento claramente nacional. A operação concluiu com o enorme impulso identitário produzido pela guerra contra a Rússia, mas não impediu nem evitou as suspeitas, as agressões e a tendência das comunidades paroquiais a mudarem de filiação, entrando na Igreja autocéfala.
Esta denuncia dezenas de casos de violência contra padres, de ocupação de igrejas, de abusos administrativos pedindo contas à Igreja autocéfala que, por sua vez, recorda comportamentos semelhantes em prejuízo próprio nos anos anteriores à guerra.
Tanto o Patriarcado de Moscou quanto a Igreja Greco-Católica na Ucrânia têm voz na complexa trama das influências recíprocas. Kirill continua seu apoio acrítico às escolhas de Putin e à guerra fratricida em curso. Não só isso, ele também enviou uma delegação ao evento da anexação do Donbass, mas, junto com o sínodo, agregou definitivamente para si as dioceses da Crimeia e, ainda que de forma menos vinculante, as das regiões ocupadas.
Ele pediu a todas as dioceses russas uma extraordinária coleta de fundos (de 15 a 30 de outubro) em favor das populações lá residentes e das que foram levadas para a Rússia, convidou a uma fervorosa oração pela saúde do chefe de Estado, oferecendo duas intenções para todas as celebrações em nível nacional, organizou guarnições de assistência espiritual em todos os escritórios militares de registro e alistamento para a mobilização solicitada pelo poder político.
Uma inquietante identificação da qual a Igreja russa custará a se libertar no futuro.
A Igreja Greco-Católica é aquela que tem uma memória histórica mais limpa em relação ao passado soviético, uma ampla rede internacional (ligada à diáspora no mundo), uma boa organização interna (com centros acadêmicos de excelência) e um vínculo com Roma de grande importância e não desprovido de autonomia.
No caso específico dos referendos no Donbass, o arcebispo maior, Sviatoslav Shevchuk, disse: “Assistimos a um evento sem precedentes na história: um roubo de Estado despudorado”, um Estado que se torna ladrão ao anexar territórios de um Estado independente. Uma operação que pode ser qualificada, segundo um lema recentemente adquirido pela doutrina social da Igreja, como uma “estrutura de pecado”, ou seja, como um mal generalizado que se estende a todo o Estado russo.
As breves crônicas mencionadas acima testemunham as distâncias entre as Igrejas que foram ainda mais ampliadas pela guerra. No entanto, deixando as tensões imediatas decantarem, deve-se registrar a situação de todas as três Igrejas ortodoxas do país em uma plataforma já comum: nenhum vínculo de subordinação com Igrejas externas, posição compartilhada sobre a guerra, ritualidade e teologia idênticas, pertencimento nacional explícito.
O velho “patriarca” Filarete se deu conta disso e, ainda que de forma instrumental, convidou à unificação, propondo um concílio ortodoxo pan-ucraniano para decidir sobre a unificação administrativa, a escolha do patriarca e a plena autocefalia. “Neste momento crucial, enquanto os ucranianos defendem corajosamente a liberdade, a independência e a integridade do país no campo de batalha, os pastores devem dar prova de abnegação, deixando para trás aquilo que é secundário e unindo-se no essencial”. Que a independência alcançada pelas armas se transforme – assim ele sugere – em liberdade espiritual para a Igreja.
Um observador atento como Sergiej Chapnin reconhece três possibilidades para a Igreja ortodoxa pró-Rússia de Onofre: unir-se à Igreja autocéfala de Epifânio; criar um exarcado sob a jurisdição de Bartolomeu de Constantinopla; permanecer unida em uma área canonicamente cinzenta à espera de escolhas subsequentes. Ambas as Igrejas ucranianas continuam reafirmando a disponibilidade para o diálogo, mesmo em um contexto fortemente conflitante. Ambas sabem que o futuro se jogará em particular sobre as suas escolhas.
O documento elaborado pelo Cemes, um centro eclesiástico de estudos em Tessalônica, também aponta para a unificação das Igrejas ortodoxas ucranianas. Em um texto, publicado em 12 de abril passado, levanta-se a hipótese de uma dupla jurisdição (Moscou e Constantinopla) com instrumentos de representação binária, como já ocorre na diáspora no Ocidente, ou o estabelecimento de uma estrutura sinodal comum provisória que antecipe a possível unificação.
A proposta mais criativa vem da Igreja greco-católica, ou seja, a de um único patriarcado no qual convirjam todas as Igrejas ortodoxas locais e a Igreja greco-católica. O único patriarca deveria estar em comunhão com Roma, distanciando-se do exercício monárquico do primado, e permitir que as Igrejas ortodoxas mantenham as referências espirituais recíprocas.
Uma espécie de antecipação da unidade das Igrejas em um contexto em que as diferenças não são teológicas, mas históricas e culturais. Como me dizia o cardeal Lubomyr Husar, arcebispo maior dos ucranianos, em 2008: “O nosso desejo e esforço é favorecer o retorno à unidade primigênia (da Igreja em Kiev). Isso requer, acima de tudo, um único chefe, um único patriarca, como sempre para as Igrejas orientais. Um chefe significaria a unidade, e nós, como greco-católicos, gostaríamos que tal patriarca estivesse em plena comunhão com o sucessor de Pedro”.
Se os processos de reconciliação eclesial não começarem rapidamente, a ameaça do conselheiro de Zelenski terá a precedência. Serão o Estado e a lei que tornarão inviável o caminho da Igreja pró-Rússia, impondo de fato a unidade com infinitas consequências de ressentimentos.
Já existem projetos de lei que vão nesse sentido. Mas isso confirmaria o poder impróprio da política sobre as Igrejas que os eventos recentes ligados às autocefalias mostram com evidência.
O papel atual de Roma e dos greco-católicos em Kiev expressa bem o fascínio do sonho de Husar. Sviatoslav Shevchuk defende plenamente as razões, inclusive militares, da Ucrânia e realiza um diálogo credível e aceito pelas Igrejas ortodoxas internamente, sem se isentar de alguma distinção em relação ao papa. Isso constitui a derrubada da acusação de que o “uniatismo” é hoje um fator de divisão.
Ao mesmo tempo, Francisco impede que a Igreja Greco-Católica se identifique com o nacionalismo. Desempenhando um papel que não é o de “capelão do Ocidente”, Francisco mantém a abertura com Moscou (Igreja e Estado) e trabalha por uma superação das razões da guerra e das divisões cristãs. O Evangelho vai além dos exércitos e das pequenas identidades confessionais.
A Ucrânia, que foi o centro do cisma que está despedaçando as Igrejas ortodoxas e dificultando o diálogo ecumênico, poderia iniciar uma experimentação surpreendente e antecipadora de unidade cristã. Mas talvez seja apenas um sonho.
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Rússia-Ucrânia: a guerra redesenha as Igrejas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU