19 Agosto 2022
"Os cidadãos de países muçulmanos, que sinceramente deploram e condenam o ataque a Rushdie, expressam seu pesar apenas a portas fechadas e entre os amigos mais próximos. Até mesmo os paladinos da liberdade de expressão não ousam manifestar sua desaprovação", escreve Orhan Pamuk (1), escritor nascido na Turquia, e professor de literatura da Universidade Columbia e vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2006, em artigo publicado por Corriere della Sera, 18-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Nos últimos vinte anos tive a oportunidade de compartilhar muitas longas conversas com vários escritores ameaçados de morte, especialmente por "islamistas" ou "extremistas islâmicos”, ou com escritores que, pelos motivos mais diversos, se encontram sob essa ameaça em países islâmicos e merecem usufruir da proteção de guarda-costas. Eu também sou um deles.
Nos últimos quinze anos, minha vida pública foi protegida graças à escolta que me foi designada pelo governo turco. No entanto, por mais simpáticos e atenciosos que os guarda-costas sejam, e por mais que se esforcem para não atrair a atenção, sua presença nunca é agradável. Por experiência, sei muito bem que após os primeiros cinco anos, os mais perigosos, o escritor sob proteção se convence de que "o pior já passou", que talvez ele possa dispensar a escolta e voltar à sua velha, boa vida "normal”.
Na maioria dos casos, no entanto, não é uma decisão realista e, portanto, universidades, organizações, fundações, órgãos e municípios que decidem convidar aqueles escritores que não estão dispostos a se deixar intimidar, têm o dever, automaticamente, de tutelar pela sua segurança, independentemente do que os próprios escritores possam pensar ou argumentar sobre a sua condição.
Sempre que um escritor é agredido fisicamente, imediatamente reclamamos que palavras devem ser respondidas com palavras, livros com outros livros.
Mas esse princípio antiquado ainda faz sentido em nossos dias? Normalmente, todos aqueles que puxam o gatilho ou seguram a faca leram bem poucos livros em sua vida. Se tivessem lido mais, ou talvez se tivessem escrito um por conta própria, teriam sido capazes de tais atos de violência? Teriam conseguido fazer publicar a sua obra?
Embora reconhecendo o papel que as desigualdades sociais desempenham nesse tipo de agressão brutal contra escritores, livros e liberdade de expressão - a humilhação de se sentir cidadãos de segunda ou terceira classe, de parecer invisíveis, sem representação e sem a mínima importância - isso nada diminui à nossa defesa da liberdade de expressão. Pelo contrário, lembrar as desigualdades sociais e culturais e os rancores nacionalistas que muitas vezes se aninham por trás dessas ameaças e ataques deve servir para fortalecer nosso compromisso de manter viva a liberdade de expressão.
Também é bastante deprimente ver como essa agressão vergonhosa tenha sido recebida com aprovação, aplausos e evidente satisfação não apenas no Irã, mas em muitos outros países muçulmanos.
Os cidadãos de países muçulmanos, que sinceramente deploram e condenam o ataque a Rushdie, expressam seu pesar apenas a portas fechadas e entre os amigos mais próximos. Até mesmo os paladinos da liberdade de expressão não ousam manifestar sua desaprovação.
Alguns amigos, ao saber dessas minhas poucas linhas, já me avisaram para tomar as devidas precauções, mesmo sabendo que conto com proteção de uma escolta.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos - IHU
Pamuk é uma figura de proa na Turquia na defesa dos direitos políticos dos curdos, tendo sido processado em 1995 juntamente com outros escritores por publicarem uma série de ensaios muito críticos em relação ao tratamento dado aos curdos pela Turquia.
Em 2005 Pamuk foi acusado de "insultar e desacreditar a identidade turca" numa entrevista concedida a Das Magazin, um suplemento semanal de vários jornais diários suíços.
Na entrevista, o escritor afirmava que "ninguém se atreve a falar" do genocídio contra o povo armênio levado a cabo pela Turquia durante a Primeira Guerra Mundial e da posterior matança de 30 mil curdos. O caso foi levado à justiça turca, e Pamuk teve mesmo que prestar declarações em tribunal. Este caso suscitou grande polêmica internacional e o romancista tornou-se conhecido um pouco por todo o mundo. (As informações são de Wikipedia)
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Há um mundo que tem medo de condenar. Depoimento de Orhan Pamuk - Instituto Humanitas Unisinos - IHU