16 Agosto 2022
Ele é um outsider na elite política; por isso, alguns na esquerda o subestimam. Mas em suas falas há saídas para os três grandes problemas da campanha Lula: salto alto, esquecimento da “pauta do povo” e ausência de apelo à mobilização popular, escreve Antônio Martins, jornalista, editor do sítio OutrasPalavras, em artigo publicado por OutrasPalavras, 16-08-2022.
O deputado André Janones é, assim como as cantoras Anitta e Pablo Vittar, ou comunicador Felipe Neto, um destes personagens singulares, cuja aparição desafia as interpretações do mundo que construímos ao longo do tempo. Como pode surgir um estrategista político longe de ambientes como os partidos institucionais, as melhores universidades e os sindicatos ou movimentos sociais conhecidos? Janones tem apenas 38 anos, e emergiu do precariado. Sua mãe foi empregada doméstica. Cursou Direito na singela Fundação Educacional de Ituiutaba, no Triângulo Mineiro. Para custear os estudos, trabalhou como cobrador de ônibus. Deixou o PT, ao qual foi filiado, por considerá-lo semelhante a “uma seita”. Em seus textos, não são raros pequenos deslizes de concordância e regência verbal.
Mas sua sensibilidade política e capacidade de comunicação são extraordinárias. Em sua primeira eleição (2018), quase sem recurso algum, foi o terceiro deputado federal mais votado de MG (pelo Avante), com 188 mil votos. Envolveu-se em movimentos de enorme impacto social – como a greve dos caminhoneiros – com os quais a esquerda jamais soube dialogar. Ninguém associou-se tanto quanto ele, desde o início da pandemia, à luta pelo Auxílio Emergencial. Como resultado, explodiu nas redes sociais. Com uma estrutura e uma visibilidade de mídia incomparavelmente menor, tem, no Facebook, quase tantos seguidores quanto Bolsonaro – e o dobro de Lula.
Foi com a autoridade conferida por estes feitos que André Janones aplicou, nos últimos dias, um primeiro choque-despertador na campanha Lula. Em 04-08, ele havia renunciado à sua candidatura presidencial (tinha 2% nas pesquisas, empatando com Simone Tebet), em favor da do ex-presidente. Uma semana depois, no momento preciso em que os R$ 600 começaram a ser pagos a 18 milhões de famílias, o deputado começou a demonstrar, empregando o método do exemplo, que o PT e seus aliados não podem permanecer prostrados diante da tentativa de estelionato eleitoral.
A ação teve ritmo de blitzkrieg. A partir de 10-08 (quarta-feira), Janones sacudiu as redes sociais num vídeo em que denunciou o caráter limitado e eleitoreiro do “novo” benefício. Lembrou (você vai perder seu auxílio!) que, segundo a proposta apresentada pelo governo e aprovada pelo Congresso, será cortado em dezembro. Nos dias seguintes, manteve o combate, mas algumas de suas postagens (1 2 3 4) dirigiram-se à própria esquerda ao apontar seu elitismo e sugerir que ela abre flanco muito perigoso para a reeleição de Bolsonaro.
Finalmente, no sábado, o deputado reuniu-se ao vivo com Lula e obteve deste a promessa de que manterá ao menos os R$ 600, estendendo-o às mães solteiras e a todos os integrantes do Cadastro Único. Suas falas sobre o tema tiveram sempre audiência superior às do “capitão” e seus filhos, e Janones fez questão de frisá-lo. A mesma observação, com números mais detalhados, foi feita por analistas reconhecidos de redes sociais como Pedro Barciela e Fábio Malini. Este último notou: “Na última semana, André Janones alcançou o primeiro lugar da categoria ‘post político em português’ no Facebook”. Seus vídeos atingiram 3,5 milhões de visualizações puxado pelas suas lives. Nos últimos três meses, já são 25 milhões de views.
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As eleições de 2022, talvez a disputa política mais importante da história do Brasil, será difícil e tensa ao extremo. Da ação-relâmpago de André Janones e dos grandes sustos que as pesquisas dos últimos dias pregaram, brotam três lições. É preciso assimilá-las sem demora, promovendo mudanças em, pelo menos, três aspectos da campanha:
1. Sem salto alto em campo… de lama:
Numa de suas postagens, Janones alertou com clareza para algo que a campanha de Lula parece muitas vezes subestimar. Bolsonaro não está morto; suas chances de ser reeleito são reais – porque, em crises profundas, a “normalidade” assegurada pelo velho centro se dissolve e o que era inusitado torna-se possível. A campanha Lula lembra, às vezes, um time de futebol que acredita tanto na vantagem parcial do placar que deixa o tempo correr, recusa-se a qualquer jogada de ousadia e usa chuteiras de salto alto. Ainda não percebeu que o campo é de lama, e o adversário está disposto a tudo. O sinal mais evidente desta tendência foram as portas abertas, no Congresso, para que a emenda do estelionato eleitoral passasse sem nenhuma resistência. É claro que não se tratava de votar contra os R$ 600. Mas havia vasto espaço, que foi desperdiçado, para denunciar o caráter parcial e eleitoreiro da medida – e em especial para propor alternativas. Um valor mais alto. A garantia do caráter permanente do dinheiro. A inclusão de novos públicos beneficiários. Nada disso foi feito, até que o deputado mineiro entrasse em cena. Sozinho, ele fez mais para desmascarar a trama que os 82 parlamentares do PT, PCdoB e PSOL juntos; e do que toda a comunicação da campanha.
2. Oferecer saídas ao pesadelo brasileiro:
“Enquanto a esquerda não trocar “renda mínima” por “dinheiro pro povo”, “carta em defesa da democracia” ao invés de “carta em defesa do povo”, e “nossas diretriz de programa [sic]” por “nossas propostas para os brasileiros”, o bolsonarismo continuará nadando de braçadas”, escreveu André Janones em 12-08. Talvez fosse uma referência ao fato de a campanha parecer às vezes muito mais voltada ao passado que ao futuro. Os anos de Lula foram de fato muito melhores, mas as maiorias parecem saber que o saudosismo e a melancolia não são afetos capazes de mobilizar para as transformações. O que fazer agora diante do pesadelo em que a vida do povão se transformou? Que saídas oferecer ao desamparo daqueles que se abrigam sob as marquises, nas praças, embaixo dos viadutos? Que dizer aos enforcados em dívidas e esfolados por juros; aos que arregalam os olhos com os preços nos mercados e os boletos no final do mês? Que propor a quem deseja cidades livres da ditadura do automóvel, a limpeza dos rios urbanos, um SUS recomposto, a transição para energias limpas, a reconstrução da indústria brasileira?
A pouca disposição da campanha para dar respostas a estas questões abre uma brecha gigantesca para Bolsonaro. Se não há um horizonte de mudanças reais pelo qual lutar, então qualquer pequena oferta pode fazer diferença – e quem está no poder pode mostrar-se mais capaz de cumpri-las. Duzentos reais a mais, para uma família inteira, no final do mês? Um real a menos por litro de combustível? Tudo isso é tão pouco – mas é tanto quando o pesadelo parece interminável, porque ninguém propõe que políticas permitirão viver sob uma perspectiva menos mesquinha…
3. Tirar da passividade milhões de ativistas:
Em 12-08, quando uma pesquisa em Minas Gerais mostrou que a diferença entre Lula e Bolsonaro caira de 18 para 9 pontos percentuais em poucos dias, Janones tuitou, em desabafo: “Ou a esquerda senta no chão da fábrica pra conversar com os operários ou já era. Detalhe: o chão da fábrica atualmente são as redes sociais, em especial o Face”. A angústia tinha endereço: a ausência de apelo à mobilização popular; a uma campanha em que a sociedade (em especial, os ativistas) não se limitem a depositar um voto em uma urna, ou a torcer pelo resultado da próxima pesquisa.
Há milhões de brasileiros conscientes dos riscos que uma nova vitória do fascismo representa – e dispostos a enfrentá-la. Eles o fizeram de distintas maneiras, nos últimos quatro anos: das manifestações gigantescas do Ele Não, em 2018, aos seguidos panelaços durante a pandemia e aos atos que pediam o impeachment do presidente. Mas uma campanha eleitoral tem dinâmica própria. O centro são os candidatos e os projetos para os quais eles apontam. Para dialogar com o povo, é preciso ter materiais e orientações que indiquem em quem votar – e por quê.
Falta isso, até o momento, na disputa de 2022. A necessidade é reconhecida. Ainda em fevereiro, num encontro do PT, a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, falava em formar “milhares de Comitês Populares de Luta”, que mais tarde se transformariam em Comitês de Lula. Mais adiante, em maio, a tarefa foi assumida, com contornos um pouco diferentes, por uma articulação de cem movimentos sociais, que se reuniu na Escola Florestan Fernandes, do MST, em Guararema-SP.
Mas por algum motivo, que é preciso investigar em maior profundidade, ela ainda não se realizou. Terá sido institucionalizada demais? Numa campanha muito curta, em que apenas 49 dias nos separam do primeiro turno, uma mobilização assim precisaria ser muito diversa, descentralizada, incentivadora de espontaneidades. Qualquer pessoa disposta a fazer uma panfletagem, levar informação aos vizinhos, familiares, ao trabalho ou à escola, deveria ser incentivada a fazê-lo e abastecida de material. O mesmo em relação à internet. Há por certo um contingente enorme de pessoas dispostas a travar a luta de ideias nas redes sociais. Elas podem ser muito mais efetivas que os exércitos de robôs bolsonaristas. Carecem das peças adequadas, e de orientação para usá-las ou produzi-las de forma autônoma. Nada disso está, por enquanto, presente.
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Quem examina a saga realizada por André Janones nos últimos dias não pode deixar de observar também a adoção de um método incomum entre a esquerda. Ao aplicar um choque-despertar na campanha de Lula, ao mostrar as possibilidades de uma disputa sem salto alto, ligada às pautas do povo e mobilizadora, o deputado fugiu das duas formas mais comuns de fazê-lo: a luta autofágica e o silêncio obsequioso. Ele não abriu um confronto interno (o que a esta altura seria desagregador), mas também não se calou (o que ajudaria a manter o imobilismo). Fez com que suas posições prevalecessem pelo efeito-demonstração. Será um estilo derivado de seu temperamento mineiro? Terá a ver com sua origem no precariado?
É cedo para dizer. De qualquer forma, no momento em que a disputa pelo futuro do Brasil entra em sua etapa decisiva, e em que será preciso conviver com sustos como os de São Paulo e Minas, na semana passada, é bom lembrar que há recursos para superá-los. E que, deste país de onde afloraram nos últimos anos tantos horrores, podem também surgir ventos de varrição.
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O que precisamos aprender com André Janones - Instituto Humanitas Unisinos - IHU