28 Julho 2022
Para Antonio Cattani, a “síndrome do mal” aparece na forma de autoritarismo, egoísmo, obsessão com sexo e irracionalismo.
“Pessoas acometidas pela síndrome do mal aparecem diariamente no palanque presidencial”, afirma Cattani. (Foto: Igor Sperotto |Extra Classe)
A reportagem é de Ayrton Centeno, publicada por Brasil de Fato, 27-07-2022.
Pesquisador do mundo dos trabalhadores e dos seus sindicatos, o sociólogo Antonio David Cattani resolveu, nos últimos anos, dar uma guinada de 180 graus: passou a estudar as classes abastadas. Consequência dessa mudança de rota são seus livros Riqueza desmistificada, Carí$$imos ricos, Ricos, podres de ricos e A sociedade justa e seus inimigos, este em co-autoria com Marcelo Oliveira.
Cattani fez doutorado na Université de Paris I - Panthéon-Sorbonne e foi pesquisador e professor visitante nas Universidades de Oxford e Bologna. Sua última obra é A síndrome do mal (Ed. Cirkula, 2020), na qual investiga as peculiaridades do fascismo no Brasil bolsonarista, onde aflorou aquilo que qualifica como “a parte podre da sociedade” composta por uma confraria de ressentidos e intolerantes.
Depois do assassinato do dirigente petista Marcelo Arruda e diante da ameaça de uma maré de violência política ameaçando a campanha eleitoral, O Brasil de Fato RS conversou com ele sobre as raízes desse ódio que enche de incertezas os próximos dias e meses.
Em A Síndrome do Mal, notas que o mal tem “concretude política”. No começo do mês, um policial bolsonarista invadiu uma festa de aniversário em Foz do Iguaçu e matou o aniversariante, que nem conhecia, porque a festinha tinha como motivo a campanha de Lula. Como se explica uma ação assim, ainda mais que não se trata de um ato isolado mas do elo mais recente de uma corrente de crimes de ódio ou extremamente violentos como aconteceu, por exemplo, com Genivaldo Santos, em Sergipe, Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia e atentados contra manifestações da oposição em Minas e no Rio?
São manifestações da violência profunda que sempre existiu no Brasil. Suas origens estão vinculadas, basicamente, ao anti-igualitarismo, à intolerância ao diferente, ao ódio aos mais vulneráveis, ao ressentimento e a outras práticas deletérias exacerbadas por um individualismo e egoísmo crescentes.
As pessoas racistas, machistas, frustradas sexualmente, que desprezam o conhecimento científico, a educação e a democracia, estavam entre nós. Porém, eram contidas pelas normas legais, pelas instituições e pelas ações e valores que permitem a vida em sociedade. Acontece que essas mesmas pessoas acometidas pela “síndrome do mal”, pelo conjunto de valores antissociais e antidemocráticos, são autoritárias, têm obsessão pela disciplina e pela hierarquia. Os intolerantes precisam receber o aval de um chefe, de um patrão, de um general ou de um Führer que lhes permite e estimula a cometer os atos criminosos.
Inúmeras vezes, Bolsonaro incentivou a violência dizendo, inclusive, que iria “fuzilar a petralhada”. Antes, declarou que o erro da ditadura de 1964 “foi torturar e não matar”. E que teriam que ser mortos “uns 30 mil”. Na sua pesquisa, você não enfatiza o papel do “Mito” ou do “Fuhrer”. Afirma que ambos são fruto de determinadas forças. Que forças estão por trás do presidente e do ambiente tóxico que vivemos no Brasil?
Acabas de formular a questão mais importante e que raramente é entendida pelos progressistas no Brasil. Não adianta sair gritando pelas ruas “Fora Bolsonaro”. Ele é apenas o expoente da parte podre da sociedade, daquela parte que não só não é democrata e civilizada como odeia a democracia e a civilização. Com todas as abominações que comete e estimula, dia após dia, ele conta com um irredutível apoio de 30% da população. Bolsonaro pode cair, mas os 30% de anti-igualitaristas, violentos, machistas etc continuarão por aí.
Tua pergunta aponta para um desafio complexo: compreender a natureza das forças que sustentam o atual presidente. Não faz muito tempo, uma personalidade política importante disse com toda a razão: “Bolsonaro é apenas um capanga”. Seu comportamento histriônico, mal-educado, caricato, serve para desviar a atenção do que realmente está acontecendo em termos econômicos: desmonte do aparelho de Estado, das políticas públicas, da legislação protetiva e inclusiva, manutenção de privilégios tributários, estímulo aos negócios predadores, perda da soberania nacional.
Se focarmos sobre essas questões essenciais, encontraremos os financiadores e avalistas do atual governo, o agronegócio predador, os grandes conglomerados entreguistas, o setor financeiro, os milhares de oficiais das forças armadas acaparados na máquina estatal, sem falar de algumas centenas de pastores evangélicos multimilionários.
O escritor norte-americano Upton Sinclair deixou uma definição sumária de fascismo. Para ele, fascismo era “capitalismo mais assassinato”. Como definiria o que vemos no Brasil, onde parece haver uma simbiose entre ultraliberalismo e fascismo?
Fórmula sintética que aponta para uma dinâmica possível. Os grandes beneficiados por um capitalismo extremado não irão recuar, não irão abrir mão dos seus ganhos. Na ausência de resistência consequente, darão o próximo passo.
Dois anos atrás, você estava estudando os muito ricos para entender como operam para debilitar a democracia, mantendo e ampliando seus privilégios e eternizando as desigualdades. O que pode dizer hoje sobre a pesquisa?
Estive relendo os vários livros que publiquei nestes últimos anos (Ricos, podres de ricos, Carí$$imos ricos, A riqueza desmistificada, A sociedade justa e seus inimigos, com Marcelo Oliveira). Não vi nenhum motivo para fazer edições atualizadas. Infelizmente, o que esses livros descrevem e analisam continua de extrema atualidade. Basicamente, os ricos estão cada vez mais ricos, a classe média cada vez mais alienada e ressentida. E os pobres cada vez mais pobres.
Em que medida o ressentimento alimenta o que chamas de "mal"?
O conceito de ressentimento é mais elaborado pela psicologia social e pela psicanálise do que pelas ciências sociais. O “sentimento ressentido” tem origem, de modo geral, na insegurança, no medo daquilo que a pessoa não conhece ou sobre o qual fantasia de maneira negativa.
O ressentido nunca se reconhece como responsável pelo que sente ou pela falta de reconhecimento. O problema são os outros que o fazem sofrer, que não o valorizam. E o ressentido se considera sempre vítima. Como analisa a Maria Rita Kehl no livro intitulado Ressentimento, é um estado afetivo que não sossega, fermenta e intoxica a alma. Prossigo dizendo que existe um encadeamento nefasto: ressentimento-ódio que não podendo ficar sem solução se transforma em ação. Ação violenta. O ódio não será dirigido contra os mais poderosos e sim contra os mais vulneráveis, contra bodes expiatórios. No passado, judeus, comunistas, minorias. Hoje em dia, negros, LGBTs, petistas, imigrantes e outros.
Diferentemente do mal visto pela religião, por exemplo, o mal que identificas no livro tem outra natureza. Fala um pouco sobre a "síndrome do mal".
Quase todas as religiões elaboram um conceito metafísico de mal, o que não é o caso no meu trabalho. Procuro analisar as dimensões concretas do mal não considerando indivíduos específicos e sim a dimensão social. O termo “síndrome” é tomado emprestado do vocabulário médico mas, de modo algum, está associado à ideia de enfermidade física ou biológica. É usado como sinônimo de composição, remetendo sempre ao social. Mas um social que não é marcado por clivagens de classe, de educação ou mesmo de cor. As pessoas acometidas pela síndrome do mal podem ser ricas, pobres, com formação universitária ou analfabetos, pretos, brancos etc.
O mal expresso em termos de coletividade compõe uma espécie de constelação de opiniões, crenças, convicções traduzidas em comportamentos concretos. O epicentro desta constelação é formado pelo anti-igualitarismo, pelo elitismo, pela ideologia que faz com que determinadas pessoas se achem melhores que as outras, meritórias ou abençoadas por um deus qualquer. Não suportam qualquer ideia de ser humano universal, de direitos coletivos ou de igualdade essencial. A partir dessa convicção, são encadeados todos os demais elementos que compõem a síndrome: autoritarismo, individualismo e egoísmo, obsessão com a sexualidade, machismo, misoginia, idealização da família e da tradição, anti-intelectualismo, incultura e irracionalismo.
Exemplos de pessoas acometidas da síndrome do mal aparecem diariamente no palanque presidencial, nos palcos das igrejas fundamentalistas, nos quartéis, nos espaços públicos e nas redes sociais.
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“Bolsonaro pode cair, mas os 30% de violentos e machistas vão continuar”, avisa pesquisador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU