05 Julho 2022
“Uma questão que dominou o discurso público e reformulou a sociedade americana por mais de meio século permanece longe de ser resolvida – moral, política, legal e culturalmente. Os católicos ambivalentes em relação ao aborto e desencorajados pela aliança da Igreja com a direita continuarão a ignorar os bispos ou até mesmo se desfiliar. Enquanto isso, a rejeição muitas vezes arrogante da esquerda do status moral do nascituro torna o debate produtivo sobre essa questão cada vez mais difícil. Com a legislação sobre o aborto devolvida ao nível estadual, as divisões partidárias e as diferenças regionais se aprofundarão. As mulheres continuarão a procurar abortos, por meios legais e extralegais, incluindo medicamentos entregues pelo correio. É provável que o aborto continue sendo objeto de protestos, slogans e demagogia”, afirma em editorial a revista estadunidense Commonweal, 25-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quase dois meses depois que a decisão do juiz Samuel Alito sobre Dobbs vs. Organização de Saúde da Mulher da cidade de Jackson foi divulgada pela primeira vez ao público, a Suprema Corte emitiu oficialmente sua decisão revogando o direito constitucional ao aborto. A decisão seguiu as linhas previstas, com os juízes Amy Coney Barrett, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh, John Roberts e Clarence Thomas concordando com Alito. Os juízes Stephen Breyer, Elena Kagan e Sonia Sotomayor discordaram. O raciocínio da maioria do tribunal será examinado e criticado nos próximos anos, enquanto as implicações da decisão para outras decisões judiciais baseadas no direito à privacidade ainda não foram determinadas. Mas hoje, ao considerar as consequências imediatas e potenciais da revogação da decisão de Roe vs. Wade quase 50 anos depois, está claro que a nova decisão não traz uma resolução final para o tenso debate sobre o aborto neste país, e seria um erro para aqueles que acreditam no valor de toda a vida humana assumir ou fingir que isso faz.
As “leis de gatilho” em treze estados entrarão em vigor agora que a decisão foi proferida, e espera-se que mais estados sigam o exemplo. Alguns proíbem o aborto em quase todos os casos, incluindo estupro e incesto. Muitos forçam as mulheres a levar a termo uma gravidez inviável. Alguns consideram crime realizar ou ajudar alguém a fazer um aborto, mesmo que isso aconteça em outro estado onde o aborto é legal. Outros estados estão preparando leis semelhantes, e é provável que cerca de metade da população dos EUA em breve viva sob restrições que seriam impossíveis antes da nova decisão da Suprema Corte. É uma ironia sombria que muitos desses estados já estão entre os com menores direitos ao acesso a cuidados maternos e possuem algumas das mais altas taxas de mortalidade materna. Seus programas de rede de segurança social severamente subfinanciados também os tornam alguns dos piores lugares para criar filhos saudáveis.
É claro que os efeitos dessas leis não serão sentidos de maneira uniforme. Mulheres com dinheiro suficiente ainda poderão fazer abortos ou arcar com os custos de criar um filho inesperado. Mulheres pobres, muitas das quais são mulheres de cor, não vão. Enquanto isso, vários outros estados estão codificando o acesso legal ao aborto, em muitos casos com restrições mínimas. Alguns estados e cidades também estão se declarando “santuários” para mulheres que buscam abortos, elaborando leis para proteger aquelas que vêm de estados onde o aborto agora é ilegal. O governo Biden está ponderando ações executivas destinadas a limitar o impacto da decisão do tribunal. Se a opinião pública esteve dividida sobre o aborto, agora o Direito também estará – entre os estados em que está proibido ou restringido e estados onde se é amplamente permitido.
Não é uma contradição procurar proteger os nascituros e também se preocupar com essas e outras possíveis consequências da reversão de Roe. As pessoas que acreditam na santidade de toda a vida, incluindo o nascituro, podem reconhecer que a lei do aborto é um assunto particularmente complicado por causa dos bens concorrentes que deve equilibrar: a vida de uma criança, a saúde e a autodeterminação da mãe. O Estado tem interesse em proteger ambos.
Restringir o acesso ao aborto é moralmente irresponsável se for separado do cumprimento das obrigações de apoiar mulheres grávidas ou que possam engravidar.
Devemos reconhecer os riscos para a saúde física e mental que acompanham a gravidez, os estresses financeiros e sociais que a acompanham e os efeitos que podem ter na vida das mulheres – e devemos rejeitar afirmações simplistas de que adoção, caridade privada e acesso à centros para grávidas são suficientes para enfrentar os desafios que as novas restrições ao aborto criarão.
Devemos defender políticas que reflitam a convicção de que a criação dos filhos e o cuidado familiar não são fardos a serem suportados por indivíduos autossuficientes, mas algo pelo qual toda a comunidade compartilha a responsabilidade. Assumir essa responsabilidade nos EUA do século XXI requer programas estaduais e federais que atendam às necessidades materiais de mulheres grávidas, mães e seus filhos. Estes incluem:
É revelador que nenhuma das leis de gatilho que entram em vigor faz algo para abordar as realidades de carregar ou criar uma criança. Uma sociedade que exige que as mulheres levem a gravidez ao fim sem lidar com os encargos que podem acompanhar a maternidade demonstra que é possível – e muito comum – ser antiaborto sem realmente ser pró-vida.
Os bispos dos EUA podem tentar manter isso em mente. Falando na Loyola University de Chicago em 1985, o cardeal Joseph R. Bernardin lembrou ao público de que o catolicismo vê a vida humana como sagrada e social e, portanto, “devemos desenvolver o tipo de ambiente social que proteja e promova seu desenvolvimento”. Mas em sua insistência em tratar o aborto como a prioridade política “preeminente” – que o neocardeal Robert McElroy, de San Diego, chamou corretamente de distorção do ensino católico – muitos bispos parecem ter perdido de vista essa necessidade.
Em sua busca desenfreada para proibir o aborto por qualquer meio necessário, eles amarraram a Igreja institucional a um partido político hostil às mesmas políticas que ajudariam mulheres e famílias a criarem seus filhos – um partido agora disposto a abandonar a democracia para chegar e manter o poder. Os líderes da Igreja que usam a Eucaristia como uma ferramenta para impor sua política de questão única alienam muitos católicos comuns, que entendem intuitivamente que as dimensões legais e políticas do aborto são mais complexas e menos certas do que a questão moral.
Pesquisas recentes mostram que 63% dos católicos dos EUA acreditam que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos – colocando-os alinhados com a população geral dos EUA – e 68% acreditam que a decisão de Roe deveria ter sido mantida. É claro que a Igreja não é uma democracia e seus ensinamentos morais não são determinados por pesquisas de opinião. Mas até que os bispos consigam persuadir a maioria dos leigos, eles devem parar de tentar forçar os políticos católicos por meio de ameaças.
Em 1973, semanas após a decisão de Roe, os editores da Commonweal escreveram: “Agora a Igreja deve pensar nas implicações de sua derrota”, alertando que se o público “continuar a ver o aborto isoladamente de outros problemas sociais e morais, tornará a causa contra o aborto uma ferramenta da direita”. Isso, infelizmente, foi exatamente o que aconteceu. Agora que o caso Roe finalmente foi revertido, a Igreja deve pensar nas implicações de seu sucesso. Uma questão que dominou o discurso público e reformulou a sociedade americana por mais de meio século permanece longe de ser resolvida – moral, política, legal e culturalmente. Os católicos ambivalentes em relação ao aborto e desencorajados pela aliança da Igreja com a direita continuarão a ignorar os bispos ou até mesmo se desfiliar.
Enquanto isso, a rejeição muitas vezes arrogante da esquerda do status moral do nascituro torna o debate produtivo sobre essa questão cada vez mais difícil. Com a legislação sobre o aborto devolvida ao nível estadual, as divisões partidárias e as diferenças regionais se aprofundarão. As mulheres continuarão a procurar abortos, por meios legais e extralegais, incluindo medicamentos entregues pelo correio. É provável que o aborto continue sendo objeto de protestos, slogans e demagogia. Como vimos ao longo das décadas – desde os assassinatos de médicos abortistas e o bombardeio de clínicas até os recentes ataques a centros de aconselhamento de gestantes e uma ameaça de morte contra o juiz Brett Kavanaugh – algumas pessoas de ambos os lados dessa questão estão dispostas a recorrer à violência. Tal violência tende a aumentar neste momento de incerteza.
Em uma democracia pluralista como a nossa, as convicções de uma minoria não podem ser transformadas em lei sobre a vontade da maioria. Isso significa que, para aqueles que se opõem ao aborto, não há como contornar o árduo trabalho de persuasão e a necessidade de compromisso. Mas o Partido Republicano trumpificado com o qual a maioria do movimento pró-vida se alinhou nos últimos anos não tem tempo para persuasão ou compromisso, e nenhum interesse em atender à ambivalência desconfortável que muitas pessoas sentem sobre essa questão. Vale lembrar que a maioria dos estadunidenses está relutante em proibir o aborto e está disposta a reconsiderar as novas restrições. Eles estão cientes das condições únicas da metade da espécie humana que experimenta a gravidez e apoiam as medidas que tornariam mais fácil para as mulheres ter e criar filhos.
É difícil imaginar o tipo de compromisso que pode ser aceitável para ambos os lados deste debate em curso, mas que outra opção existe agora que o tribunal devolveu esta questão aos nossos representantes eleitos? Não vai ser fácil. Exigirá flexibilidade, imaginação e, sim, sabedoria por parte dos legisladores em todos os níveis de governo. Será necessária a vontade de aprender com a experiência de outros países que já tiveram de lidar com esta questão de forma legislativa. Finalmente, exigirá que intelectuais públicos, o setor privado, líderes religiosos e estadunidenses comuns aprendam a tratar o aborto como uma questão de política pública, e não apenas como um marcador tribal em uma guerra cultural. Se estamos à altura dessas tarefas difíceis permanece uma questão em aberto, mas não podemos mais evitá-las ou adiá-las. Com esta decisão da Suprema Corte, uma era conturbada terminou e outra está prestes a começar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
EUA. O fim do direito ao aborto: um teste para a democracia estadunidense. Editorial da Commonweal Magazine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU