Sentimentos fraternos estão na UTI psiquiátrica. Entrevista especial com Denise Regina Quaresma da Silva

Foto: Univesp

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 03 Mai 2019

O mito da mãe perfeita tem origem no romance pedagógico Emílio ou Da Educação, escrito pelo filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau. Essa obra, publicada em 1762, serviu, segundo a psicóloga Denise Regina Quaresma da Silva, “de ponto de partida para as teorias de todos os grandes educadores dos séculos XIX e XX, pois sua difusão e aceitação provocaram uma transformação fundamental no modelo familiar, colocando o amor materno no cerne dessa instituição”. Entre as ideias defendidas por Rousseau, destaca-se a de que “somente as mães deveriam amamentar e criar seus filhos, criticando as amas de leite, que eram aceitas na época”. Na obra, explica, o filósofo “recriminava as mães que tinham outros interesses para além da maternidade. Para Rousseau, a maternidade era natural, obrigatória e instintiva, o que passou a reforçar a crença da maternidade como um atributo natural e tradicional das mulheres”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Denise Regina Quaresma da Silva diz que “a reiteração dessas crenças até nossos dias as tornaram simbólicas, introjetadas na cultura, de tal forma que a consequência de insistir na crença de que a maternidade é ‘natural’ criou o sentimento da ‘mãe desnaturada’, que é como nominamos as mulheres que são mães e vivenciam de forma diferente a maternidade”. De acordo com ela, quando as mulheres não correspondem ao mito da mãe perfeita proposto por Rousseau, “percebe-se que há um rechaço ao seu modo de ser mãe, o que é uma forma de violência contra a mulher, na medida em que ela é criticada socialmente e recebe a designa de ‘mãe desnaturada’”.

Apesar de apontar problemas na visão de “mãe perfeita”, a psicóloga também chama atenção para um sintoma das relações familiares nos dias atuais. “Estamos vivendo tempos em que os sentimentos fraternos estão na UTI psiquiátrica”, e “percebe-se também uma certa intolerância nas mães e um excesso de violência da parte dessas com a prole”. De acordo com a psicóloga, “uma pesquisa recentemente feita em um conselho tutelar de uma cidade do sul do Brasil revelou que as mães são as maiores agressoras dos filhos/filhas ou, em muitos casos, são omissas nas agressões que essas crianças sofrem”. Entre os fatores que ajudam a explicar esse quadro, Deise menciona a hipótese de que “a dupla ou tripla jornada de trabalho, exaustiva e estressante ao extremo para essas mulheres, acaba adoecendo-as psiquicamente, o que as impossibilita de serem amorosas, atenciosas, cuidadoras”.

Denise da Silva (Foto: Arquivo pessoal)

Deise Regina Quaresma da Silva é graduada, mestra e doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente leciona nas Universidades Feevale e Unilasalle. Ela esteve no Instituto Humanitas Unisinos - IHU ontem, 02-05-2019, onde ministrou a palestra "O mito da mãe perfeita e outras formas (in)visíveis de violência contra as mulheres”.


Confira a entrevista.

IHU On-Line - No que consiste o mito da mãe perfeita? E como a introjeção desse mito pode se configurar como uma violência à mulher?

Denise Regina Quaresma da Silva - Presume-se que o mito da mãe perfeita tenha sua origem na publicação de 1762 de Rousseau, Emílio ou Da Educação: trata-se de um romance pedagógico que conta a educação de um órfão nobre e rico, Emílio, de seu nascimento até seu casamento. Essa obra fez grande sucesso, revolucionando a pedagogia, e serviu de ponto de partida para as teorias de todos os grandes educadores dos séculos XIX e XX, pois sua difusão e aceitação provocaram uma transformação fundamental no modelo familiar, colocando o amor materno no cerne dessa instituição. Segundo esse autor, somente as mães deveriam amamentar e criar seus filhos, criticando as amas de leite, que eram aceitas na época. Na obra, ele recriminava as mães que tinham outros interesses para além da maternidade. Para Rousseau, a maternidade era natural, obrigatória e instintiva, o que passou a reforçar a crença da maternidade como um atributo natural e tradicional das mulheres.

A reiteração dessas crenças até nossos dias as tornaram simbólicas, introjetadas na cultura, de tal forma que a consequência de insistir na crença de que a maternidade é “natural” criou o sentimento da “mãe desnaturada”, que é como nominamos as mulheres que são mães e vivenciam de forma diferente a maternidade. Quando uma mulher não corresponde ao mito da mãe perfeita proposto em 1762 por Rousseau, percebe-se que há um rechaço ao seu modo de ser mãe, o que é uma forma de violência contra a mulher, na medida em que ela é criticada socialmente e recebe a designa de “mãe desnaturada”.

IHU On-Line - Além do mito da mãe perfeita, que outros estereótipos cotidianos invisibilizam formas de violência contra a mulher? E como trazer à luz, revelar essas formas de violência?

Denise Regina Quaresma da Silva - Desde que nascemos, nós mulheres somos vistas/vestidas de rosa, o que implica conceder a nós, para além da cor delicada, a delicadeza, a sensibilidade, a emotividade, o que nos coloca em uma fragilidade que introjetamos e que é reforçada pela cultura que nos rodeia. Uma mulher que não corresponda a essas designações de gênero revela e vivencia novas possibilidades de feminilidade, desafiando o “status quo” vigente, e seguramente sofre discriminações, exclusões e violências. O estereótipo gera estigmas, marcando determinadas pessoas de tal forma que se acaba estigmatizando-as, o que revela os traços de ódio contra essas pessoas.

Podemos aqui falar dos corpos abjetos, citando [Judith] Butler, cujas vidas não vale a pena serem vividas e por isso constituem grupos vulneráveis às violências cotidianas, ao preconceito, ao ódio que o estigma suscita. Podemos, nesses grupos, citar as mulheres que amam outras mulheres, as que não desejam ser mães, as que sofrem violência psicológica ou física (o que ela fez para apanhar ou para morrer?), as que jogam futebol, as que engravidam muito cedo ou tardiamente, as mulheres que envelhecem sexuadas e não assexuadas — desprovidas de desejos e da vida sexual —, as mulheres com sobrepeso que não cobrem o corpo ou as jovens que mostram o corpo e, por isso, são culpadas pelos assédios sexuais que sofrem, entre tantas outras violências cotidianas que as mulheres que resistem ao modelo hegemônico de feminilidade sofrem.

IHU On-Line - Quais os desafios e as maiores angústias da maternidade em nosso tempo?

Denise Regina Quaresma da Silva - Entendo que uma das angústias recorrentes das mães atualmente diz respeito a seguir dando conta deste modelo que é repetido acriticamente. Percebe-se alguns movimentos no sentido de os homens borrarem as fronteiras que também são impostas a eles no que constitui a masculinidade hegemônica, mas geralmente essas modificações são acompanhadas de muito diálogo ou de muitos atritos com as companheiras que sejam mães de seus/suas filhos/as. O grande desafio é nos darmos conta de que os avanços que conquistamos hoje repercutirão nas nossas filhas, netas e bisnetas que talvez ainda não nasceram, de que estamos fazendo a história. Ao acatar essas designações sem a criticidade que elas merecem, estamos contribuindo para a cristalização dos comportamentos machistas e misóginos.

IHU On-Line - A ideia de maternidade é sempre associada ao feminino. Mas ainda podemos pensar na maternidade dessa forma? Quais os limites e potencialidades em compreender a maternidade como questão de gênero?

Denise Regina Quaresma da Silva - Sabe-se que a maternidade é exercida por quem faz o que na psicanálise intitulamos “função materna” e a paternidade por quem faz a “função paterna”; assim como nos estudos de gênero, entendemos que o sexo biológico nem sempre está ao lado do desejo e da identificação de gênero. Desta forma, podemos conceber que uma pessoa que seja biologicamente do sexo masculino possa maternar e vice-versa. Aliás, desde meu ponto de vista, todos e todas nós em algum momento da criação de nossa prole fazemos função materna e paterna, independente do sexo biológico que tenhamos.

IHU On-Line - Também concebemos a maternidade como sinônimo de cuidado, carinho, proteção, dedicação, acolhimento. Atualmente, numa sociedade na qual se vivem rompantes de intolerância e de extrema disputa, podemos falar que vivemos a falta de sentimentos maternais? Por quê?

Denise Regina Quaresma da Silva - Sim, estamos vivendo tempos em que os sentimentos fraternos estão na UTI psiquiátrica, juntamente com os corpos das pessoas, que não possuem empatia, pois essas pessoas causam mal-estar na sociedade e na família, mas na ausência/falta do amor do outro, também adoecem... Percebe-se também uma certa intolerância nas mães e um excesso de violência da parte dessas com a prole. Uma pesquisa recentemente feita em um conselho tutelar de uma cidade do sul do Brasil revelou que as mães são as maiores agressoras dos filhos/filhas ou, em muitos casos, são omissas nas agressões que essas crianças sofrem. Podemos levantar algumas hipóteses, entre elas a de que a dupla ou tripla jornada de trabalho, exaustiva e estressante ao extremo para essas mulheres, acaba adoecendo-as psiquicamente, o que as impossibilita de serem amorosas, atenciosas, cuidadoras.

IHU On-Line - Como pesquisadora, você também desenvolveu pesquisas sobre jovens-mães. Como interpreta os atuais índices de gravidez na adolescência?

Denise Regina Quaresma da Silva - Como epidêmicos e invisíveis ao mesmo tempo. A gravidez na adolescência passa a ter seus índices computados pelo IBGE na faixa entre 10 e 14 anos de idade desde 2005. Essas “mães menininhas”, no entanto, seguem engravidando, seguem sendo consideradas as culpadas pela gravidez, tanto pela escola como pela família e a sociedade. Na cidade de Novo Hamburgo-RS, em dois anos, a pesquisa que realizei mapeou cerca de 112 alunas grávidas nessa faixa etária, sendo que muitas escolas não sabiam afirmar com certeza se algumas alunas abandonaram a escola por estarem grávidas, o que denota a falta de controle e de cuidado com essas adolescentes.

IHU On-Line - As chamadas novas tecnologias e as redes sociais digitais reconfiguraram as formas como os jovens vêm se relacionando com o mundo. No que diz respeito à sexualidade de jovens e adolescentes, também podemos falar em reconfigurações das sexualidades? Como isso se dá?

Denise Regina Quaresma da Silva - Sim, de forma muito complexa. Estou neste momento desenvolvendo uma pesquisa na cidade de Canoas-RS, onde observo justamente estes aspectos em uma pesquisa denominada “Observatório de práticas de Educação Sexual em escolas públicas de ensino fundamental no Sul do Brasil: diálogos sobre a influência das mídias na sexualidade juvenil”. Nessa pesquisa, busco identificar os discursos midiáticos sobre sexualidade conhecidos pelos estudantes, investigando o alcance das redes sociais e da mídia na subjetivação das suas sexualidades. Entre a intensa produtividade da mídia, que constrói realidades sociais, selecionando e recortando os discursos mais convenientes ou mais prósperos economicamente, e a morosidade da escola em reconhecer a urgência e a necessidade com que os jovens precisam se atualizar sobre determinadas temáticas, existe um mundo a ser descoberto. Afinal, os adolescentes têm dúvidas e questionamentos sobre educação sexual e prevenção e precisam ser orientados de maneira franca e simples. Ao mesmo tempo, os docentes também precisam ser capacitados para que conheçam mais sobre essas temáticas e possam conversar sobre elas de forma segura e assertiva.

Neste hiato, os/as alunos/as concluintes do ensino fundamental que fazem parte da amostra dessa pesquisa revelam que quase todos/as estão consumindo excessivamente informações sobre sexualidade na pornografia, revelando que entendem sexo como algo que ocorre pela via do sadismo e da humilhação feminina, descolando o ato sexual da relação amorosa com pares e do próprio desenvolvimento da sexualidade de forma subjetiva e individual.

IHU On-Line – Você finalizou sua pesquisa sobre mães-meninas em 2007. Passados mais de dez anos da conclusão desses estudos, como as transformações da maternidade impactam a vida social e profissional e a saúde física e mental das adolescentes de hoje?

Denise Regina Quaresma da Silva - Em minha primeira pesquisa de 2007, centrei a atenção nas vivências sobre a gestação, a relação mãe-filha, como transcorreram os processos de identificação sexual perante a figura materna e quais nexos puderam se interligar com a gravidez, sendo este o objetivo geral da minha tese doutoral. Nessa tese, restou claro que nas famílias não há educação sexual e o tema sexualidade é tabu, pois “disto não se fala”. Na continuidade do meu estudo, enfoquei a pesquisa no campo escolar, que, por sua função, conteúdo e compromisso social, apresenta-se para as adolescentes como um templo de saberes e de pessoas sábias que acolherão suas interrogações sobre sexualidade. No entanto, constatei que a escola é atravessada por marcadores e atribuições de gênero e é impossível pensar em uma instituição sem considerar as construções sociais e culturais de masculinidade e feminilidade, sendo que as crenças das/dos docentes são constituídas na cultura, fato este revelado pelas/os entrevistados, que reiteram a dificuldade em falar sobre sexualidade na escola. Delegam às disciplinas de Educação Física, Ciências e Religião a missão de esclarecerem aos discentes o tema, o que ocorre marcadamente somente sob o aspecto biológico dos corpos.

Atualmente, as pesquisas que desenvolvo apontam que a adolescente que, por diversas razões, continua com a gravidez, não está precisamente o mais próximo do ideal de feminilidade que foi construído para essa etapa da vida, inclusive nem sequer nos casos de uma gravidez adolescente planejada e desejada. A adolescente grávida, de maneira geral, começa a confrontar as expectativas em torno do seu gênero para essa fase da vida e a vivenciar situações de evidente exclusão e afastamento da escola, sendo que são sutilmente "convidadas" a permanecerem em casa para ficarem mais "protegidas" ou então elas simplesmente somem do espaço escolar.

Constatei que a maioria das adolescentes grávidas que evadem não são objeto de investimento por parte das escolas ou de cuidados por parte do Conselho Tutelar na tentativa de que regressem ao convívio escolar. Ao contrário, o abandono é dado como normal e não existe uma preocupação com esse fato, tanto que na maioria das escolas pesquisadas não há sequer um controle dessas ocorrências, o que denota o descaso com essas adolescentes. Quando há um controle e é feito o encaminhamento do abandono escolar da adolescente grávida ao Conselho Tutelar, por meio do preenchimento e encaminhamento da Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente - Ficai, as entrevistadas revelaram que não recebem retorno desse órgão. Em raras ocasiões, há uma visita de algum conselheiro tutelar na escola ou na casa da aluna que evadiu.
Infelizmente, a maioria das adolescentes grávidas evadem da escola e raramente retornam, sendo que não raras vezes até os 18 anos já estão na segunda ou terceira gestação, passando a engrossar o “cinturão” da pobreza nas periferias das cidades, resultando no que sabemos: a pobreza é feminina.

IHU On-Line - Quais os desafios de hoje que se impõem à família, à escola, ao poder público e à sociedade em geral para tratar o tema da sexualidade entre crianças e adolescentes?

Denise Regina Quaresma da Silva - Neste momento, o desafio é imenso, na medida em que vivemos um retrocesso histórico e um retorno às velhas fórmulas de educar, sobretudo, no campo da sexualidade. No campo da pesquisa, concluí que as escolas vêm desempenhando um papel fracassado na educação sexual de meninos, meninas e adolescentes, e que a transversalização da perspectiva de gênero na educação sexual não existe nesses ambientes, onde prevalece uma educação sexista, que continua reproduzindo modelos de relações hegemônicos e excludentes. Esses resultados possuem em seu bojo um potencial para entendermos o momento que vivemos, afinal, os/as professores/as são pessoas que estão na sociedade e refletem, em suas práticas, crenças sociais arraigadas.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Denise Regina Quaresma Da Silva - Sim, que mitos são mitos e que é preciso repensarmos cotidianamente sobre as verdades e os dogmas em que cremos. Somente uma pessoa madura emocionalmente é capaz de apresentar-se a si mesma de tempos em tempos, pois já não se reconhece em si mesma, lapidada que é pela vida, pelo conhecimento adquirido na passagem do tempo e pelo desenvolvimento humano que ocorre até o último sopro dessa existência. Temos, portanto, a chance de desenvolver a criticidade, aprender a respeitar a vida e a individualidade de cada um/uma e rever os mitos que nos cercam. Afinal, não podemos julgar a vida de uma pessoa, pois não vivemos a vida dela; por isso, jamais compreenderemos suas escolhas, entre elas o fato de uma mulher ser ou não ser mãe ou como ela desempenha a maternidade.

 

 

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