A virada profética do Papa Francisco: um simpósio brasileiro e quatro livros para descobrir. Artigo de Andrea Grillo (parte 1)

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05 Junho 2018

“Estive em Porto Alegre, no belo simpósio organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos (IHU) sobre o tema da 'virada profética' de Francisco. Ter viajado quase até o 'fim do mundo' – a Argentina não está muito longe de Porto Alegre – me permitiu compreender algumas coisas novas sobre Francisco e a recepção que está sendo feita sobre o seu pensamento no mundo.

O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado em Come Se Non, 04-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Estive em Porto Alegre, no belo simpósio organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU sobre o tema da “virada profética” que Francisco introduziu na vida eclesial desde o dia 13 de março de 2013.

Como sempre acontece, um congresso nunca é apenas uma mera revisão de conferências, mas é também lugar de confronto e de aprofundamento pessoal entre diversas perspectivas de leitura: eu diria que, neste caso, a “distância” era proporcional à “profundidade”. Ter viajado quase até o “fim do mundo” – a Argentina não está muito longe de Porto Alegre – me permitiu compreender algumas coisas novas sobre Francisco e a recepção que está sendo feita sobre o seu pensamento no mundo.

Gostaria de utilizar este post para esclarecer algumas das perspectivas que foram se manifestando mais claramente, graças aos trabalhos do simpósio e das conferências com outros teólogos. E abrir o olhar sobre algumas publicações às quais dedicarei atenção em alguns próximos posts.

a) Como compreender Francisco?

O primeiro ponto-chave do simpósio está em ter oferecido uma hermenêutica conciliar de Francisco. A partir de um certo ponto de vista, hoje, Francisco, como papa, nos permite um acesso mais cheio de frescor e mais fecundo à palavra do Concílio Vaticano II. Mas o contrário também é verdadeiro: ou seja, sem um “pano de fundo conciliar” – aquilo que Marciano Vidal chamou de “pressentimento” – é difícil compreender Francisco realmente. Muitas vezes se disse, também com tons diferenciados: o Concílio Vaticano II é conditio sine qua non para uma verdadeira inteligência do magistério de Francisco.

b) Uma reconstrução “anestesiada” da sua profecia?

No centro da perspectiva de trabalho do simpósio do IHU, estava a “virada profética” do Papa Francisco. O modo de entender essa “virada”, no entanto, não parece totalmente compartilhado. De um lado, de fato, a profecia se apresentava mais como “interior”, traduzida de modo a “não tocar na doutrina” e a introduzir “variações livres” no plano da disciplina possível. Por outro lado, a profecia também era compreendida como necessariamente “exterior”, ou seja, conectada a uma reforma da Igreja, a uma tradução da doutrina, a uma profunda reelaboração da disciplina.

A redescoberta das fontes, que possam explicar essa alternativa, também foi bastante interessante em sua diferenciação. Uma leitura “filosófica” e “místico-ascética” do Papa Francisco se orienta mais facilmente a uma continuidade substancial com os antecessores, também em vista de uma redução o maior possível do “escândalo” que Francisco traz ao catolicismo burguês. Essa abordagem não tematiza a teologia mais por medo do que por escolha. Isso parece objetivamente favorecido por uma leitura “filosófica” das fontes de Francisco, que não avança até o fim na análise teológica das suas inspirações. Quase como se a “teologia” ficasse “suspensa”, para fazer falar apenas a mística inaciana e a inspiração filosófica (essa orientação está presente sobretudo em [Austin] Ivereigh e [Massimo] Borghesi).

Por outro lado, uma abordagem decididamente teológica – por exemplo, no campo moral, como proposta por [Todd] Salzmann ou por [Paulo] Suess – é capaz de identificar com muita lucidez as diferenças e as novidades que Francisco trouxe para o debate e para as consciências, com todo o necessário impulso profético à reforma das estruturas e das formas de vida eclesial.

c) O problema do imaginário papal

Reconstruir cuidadosamente os componentes originais do “pensamento de Francisco” é uma ação que se deve compor com a pressão que o “imaginário papal” exerce sobre o exegeta. Não há aqui historiador ou hermeneuta que possa se isentar da influência de um “pensamento sistemático implícito” que faz sentir seu influxo sobre os “pilares” da reconstrução. Percebi, neste caso com particular evidência, a fragilidade de muitos “pressupostos sistemáticos”, que subjazem às análises e à consideração dos dados. Quanto mais fortes esses condicionamentos, mais escassa é a consciência deles. Isto acontece sobretudo às leituras menos competentes sobre o – ou menos interessadas no – plano estritamente teológico.

d) A pretensão de uma “absoluta continuidade” em relação ao período pré-Francisco

No âmbito desses “preconceitos”, parece ser particularmente insidiosa uma preocupação legítima, mas unilateral: a de obstaculizar a operação que – a partir da direita – quer contrapor frontalmente Francisco a Bento XVI. Como a descontinuidade é usada “pela direita” para deslegitimar Francisco, parece se impor uma necessária tranquilização sobre a plena e total continuidade entre os dois papados. Mas, desse modo, põe-se em risco justamente a profecia, que não pode deixar de indicar elementos substanciais e insuperáveis de descontinuidade. Ninguém pode ser chamado de “profeta” se não indicar “outras coisas” e “coisas outras”. Aqui também, parece-me que os instrumentos da investigação e as fórmulas de julgamento sofrem, em muitos casos, de um fôlego teológico curto demais e limitado demais, ou, pelo menos, temeroso demais.

e) Diversas instâncias: Europa, América do Norte, América do Sul

Uma viagem tão longa expôs as diversas preocupações dos diversos continentes envolvidos. Estávamos na América do Sul, mas também éramos europeus e norte-americanos. E emergiu com muita clareza um fato muito relevante: cada continente recebe Francisco a seu modo: a América do Sul reconhece bem suas fontes autóctones, mesmo quando contesta algumas de suas elaborações; a América do Norte está mais preocupada com uma “tendência de resistência”, que atravessa profundamente o corpo episcopal, presbiteral e, não secundariamente, também laical. Por outro lado, na Europa, uma interferência mais maciça no “modelo ideal” do papado permite uma apreciação católica da profecia papal difundida transversalmente pelo corpo eclesial. Isso envolve uma série de consequências bastante interessantes, no modo de refletir e no modo de comunicar as reflexões:

- nem todos são igualmente livres para aderir à profecia papal. O condicionamento “local” parece ser, em alguns casos, muito pesado, pretendendo um “alinhamento” do teólogo em relação ao “preconceito” antiprofético do catolicismo. Um catolicismo “não profético” – um catolicismo apenas sacerdotal e real – corre o risco de impor uma imagem de Francisco totalmente interiorizada. Para enfrentar o ultracatolicismo reacionário, propõe-se um Papa Francisco pouco interessado nas reformas...

- um Francisco “pasteurizado” e “aburguesado” é o risco corrido por uma normalização dele à luz do que acaba de ser indicado. Foi totalmente exemplar, por um lado, o modo franco e aberto de ler a Amoris laetitia (Salzmann) ou o Sínodo sobre a Amazônia (Suess), ou a retomada da eclesiologia do Vaticano II ([Massimo] Faggioli), com todas as suas consequências inovadoras, enquanto, em paralelo, assomavam-se leituras preocupadas em reencontrar em Francisco o horizonte da Familiaris Consortio, em vez de descobrir os avanços objetivos da Amoris laetitia.

f) Um projeto, em conclusão

À luz dessas considerações, pensei que é oportuno dedicar uma série de posts à apresentação de algumas dessas “visões sintéticas” de Francisco, que tornam bastante complexo uma avaliação unitária do seu pontificado. Nelas, tentarei pôr à prova os critérios de julgamento que o belo simpósio de Porto Alegre me sugeriu. Os textos que gostaria de apresentar são os seguintes:

- Ghislain Lafont. Piccolo saggio sul tempo di papa Francesco. Bologna, EDB, 2017;

- Massimo Borghesi. Jorge Mario Bergoglio. Una biografia intellettuale. Milão: Jaca Book, 2017; tradução brasileira: Jorge Mario Bergoglio: uma biografia intelectual (Vozes, 2018).

- Massimo Faggioli. Cattolicesimo, nazionalismo, cosmopolitismo. Chiesa società e politica dal Vaticano II a papa Francesco. Roma: Armando, 2018.

- Peter Hünermann. Uomini secondo Cristo oggi. L’antropologia di papa Francesco. Cidade do Vaticano: LEV, 2017.

Dedicarei um post a cada um deles nos próximos dias. Se não tivesse estado em Porto Alegre, eu teria lido esses livros com lentes bem diferentes.

Assista à íntegra das conferências ministradas por Andrea Grillo durante o XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo. A demais conferências podem ser acessadas aqui

 

 

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