Agamben: profanar a Democracia Representativa

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23 Mai 2017

A quem interessa sacralizar um sistema que já não representa ninguém, senão o poder financeiro — ou o Deus convertido em Dinheiro, segundo notou o filósofo?, escreve Fran Alavina, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da USP. Mestre em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, publicado por Outras Palavras, 22-05-2017.

Eis o artigo.

Este texto dialoga com a série de vídeos de Outras Palavras, nos quais Antonio Martins propõe e instiga que pensemos novos recursos democráticos que rompam com a farsa da representação. Aqui, nos integramos a este debate pensando a partir da filosofia de Giorgio Agamben.

Deus não morreu. Ele tornou-se dinheiro”. Esta já célebre afirmação de Giorgio Agamben nos dá uma amostra expressiva de como seu trabalho de pensamento explicita a função religiosa do capitalismo: a violência do discurso economicista que se apresenta como dogma e a mistificação do sacrifício subsumido no discurso da meritocracia. Tal aspecto, de descer às estruturas do modo de pensar religioso e teológico a fim de se pensar o político não é algo periférico na filosofia de Aganbem.

Por exemplo, na obra Profanações (Boitempo, 2007), que reúne preciosos artigos e ensaios, observa-se um movimento comum em suas obras filosóficas. O autor centra sua reflexão na gênese de um termo-conceito aparentemente apenas “teológico”, o de profanação, para dele pensar o político. Não se trata tanto de um simples movimento teórico de inversão, de fazer um termo passar do sacro ao profano como é comum nas análises típicas de uma secularização mal justificada do pensamento. Trata-se de compreender o sentido genético do termo e as intercessões entre o teológico e o político.

Agamben nos mostra, com seu procedimento genético, que o sentido do termo profanar é, antes de tudo, jurídico. Isto nos é dito no ensaio que dá título ao livro: Elogio da Profanação. Se o consagrar é o ato de tornar algo sagrado, isto é, o isolar no círculo simbólico do religioso, separando do uso ordinário das coisas, o profanar não equivale tanto tornar impuro, mas a restituir aos homens isto que antes havia sido isolado, retirado do uso comum. Por isso, o sentido original da palavra possui um aspecto positivo, e não negativo; afastado, portanto, daquilo que hoje o termo significa.

Nesse aspecto, profanar é a restituição de algo que antes fora expropriado, reversão da expropriação que torna possível um uso comum. A profanação é um exercício de desmonte da separação, do isolamento e de uma suposta singularidade inacessível que empresta a aura de sagrado às coisas, aos gestos e mesmo aos lugares, pois tudo aquilo que se quer fora do comum da vida hodierna supõe um lugar particular que possa preservar a “sacralidade”, retirando do fácil acesso cotidiano. As coisas não são isoladas por divinas, mas divinas por serem isoladas, apartadas. É o gesto de isolamento que as institui como algo diferente, raro e de difícil acesso.

Ademais, por se tratar de um gesto político de restituição, de tomada daquilo que sendo comum fora violentado pelo uso restrito de alguns, a profanação não se identifica com a secularização. Secularizar supõe que algo antes sagrado, divino, por isso extraordinário, é despido de sua impostação divina para tornar-se humano. Ou seja, reconhece que aquilo que se seculariza possuía, antes, um estatuto diferenciado; enquanto na profanação este estatuto diferenciado é negado por princípio, pois na gênese está o comum. Secularizar é instituir, profanar é restituir.

Aqui, nosso leitor, que nunca tenha lido uma linha de Agamben, pode estar se perguntando: mais qual a relação disto com nosso atual quadro político? Ora, os sistemas de democracia representativa passaram e ainda passam por um processo de divinização e mistificação. A Representação tomou o lugar da Democracia, como a parte que toma o lugar do todo em uma metonímia desajustada. Um dos meios dos processos democráticos foi isolado, como se a essência da Democracia se resumisse aos pleitos eleitorais, e apenas em função deles existisse.

Assim, a democracia representativa “sacralizou”-se, tornou-se intocável, algo que não pode ser removido, ou sequer modificado. Falar contra ela, apontar seus defeitos, pensar uma forma de Democracia que rompa com a farsa da representação seria profaná-la. Mas é disto mesmo que se trata: profanar a representação para restituir a democracia, tirá-la da separação entre os políticos profissionais e o homem comum, retirá-la dos espaços apartadores das instituições que funcionam não com base no comum, mas para manutenção do privilégio de alguns.

A quem interessa sacralizar este sistema representativo que não representa ninguém, senão o poder financeiro — de fato, o único representado? A democracia representativa não é mais democracia, mas sim plutocracia. É preciso profaná-la para restituí-la ao comum, pois a essência democrática que se assenta na igualdade do comum é ferida pelo princípio da representação que separa aqueles que têm vozes nas instituições daqueles que, ainda que falem e gritem, nunca são ouvidos. A Democracia isola eleitores e escolhidos como estão isolados no templo religioso o sacerdote no altar e o resto dos fiéis.

Quem nunca escutou a frase: “A Democracia é Sagrada (!)”? Pensá-la desse modo, tendo em mente a preservação do sistema representativo atual, é pensá-la de modo mítico, é operar uma reversão de sentido que a coloca fora de seu registro natural: aquele das coisas próximas e nossas. A democracia não é sagrada, é profana; não é pura, feita por escolhidos; ela é impura, e se suja com o pó do caminho de suas reinvenções. A gênese da Democracia, como nos mostraram os gregos, não está no âmbito das coisas extraordinárias, pelo contrário, ela deve ocorrer no comum da vida banal. A Democracia é gesto inconcluso, que se faz e se refaz, e se reinventa somente quando caminha na via para ser: direta, nossa, comum, sem diferenças entre outorgantes e outorgados, entre os que fazem e os que “assistem”.

Todavia, para que isso comece a ser pensado como possível, é preciso, antes de tudo, se desfazer do cabedal teológico-político que está enraizado na vida nacional. A bancada da Bíblia não se resume aos confessos e representantes de igrejas, ela está muito além dos deputados pastores. Nela podem se inserir mesmo aqueles que se dizem laicos, mas que pensam a democracia ao modo teológico-político.

Ao contrário, do que se possa pensar à esquerda, o esquema teológico-político não faz acepção de lado: pode se apresentar tanto à direita, quanto à esquerda. Há um exemplo claro de teológico-político à esquerda proferido cotidianamente nos últimos dias, e em tons proféticos. Trata-se do messianismo de parte da esquerda em relação à candidatura de Lula em 2018. Vaticinada na afirmação de que apenas a “sua volta à presidência poderá restaurar a Democracia”. Pensar dessa maneira é incorrer no pensamento mágico e tentar esconder as mazelas de um sistema representativo carcomido que não poderá ser refeito pelas ações mágicas de um, independentemente de suas qualidades. Valendo-se da caçada que é feita ao ex-presidente, os que proferem esse discurso, cada vez mais se utilizam da mitificação de um passado recente, como se somente sua volta restaurasse um reino de prosperidade. Este retorno não significará nada se tudo voltar a ser como antes: ao contrário, poderá tornar o problema ainda maior.

Este pensamento mágico à esquerda é a outra face do pensamento mágico cada vez mais assumido pela direita: a de que a restauração da legitimidade de um sistema deslegitimado se dará com a assunção dos ditos “não políticos”, aqueles “homens puros”, com auréolas midiáticas, que nunca se contaminaram com as impurezas da política: são apresentados e se apresentam como vestais. Trata-se de um curto circuito do pensamento lógico: afirmar que os “não políticos” podem restaurar a confiança na política é o mesmo que crer que um não médico é o mais habilitado para começar o tratamento de uma doença grave. A farsa, que é também a perversidade dos “não políticos”, está em usar a rejeição da representação não para descartá-la, mas para se apropriar desse sentimento e manter tudo como está. Não é por outra razão que uma das mais carcomidas caricaturas do nosso sistema representativo – FHC – esteja a incensar os novos, os “não políticos”: o apresentador global e o prefeito gestor de imagens.

Este pensamento teológico-político que sacraliza personificações hipostasiadas da representação se faz sentir também no discurso acerca de seu rito legitimador: as eleições. Não é por outro motivo que a mídia hegemônica chama as eleições do sistema representativo de “festa da democracia”. Tal expressão dá o sentido teológico-político de como se concebe o gesto de escolha: entre as onerosas ocupações da vida normal, há um dia em que se concede, como que por dádiva divina, ocorrer algo extraordinário: votar. Depois daquele dia único e extraordinário, por se tratar de uma festa, tudo volta ao normal, de modo que o “dia da democracia” está separado do restante dos dias, como estarão separados os que escolhem e os seus escolhidos.

Em tempos de golpe nunca se repetiu tanto a palavra Democracia: seu uso indiscriminado entre reacionários e progressistas – na boca de golpeadores e golpeados – mostra o quanto o termo se desgastou. É claro que o sentido do termo não é o mesmo para os dois lados; mas a possibilidade de que na boca de reacionários e nos ouvidos de seus respectivos seguidores o termo possa fazer algum sentido prova seu esgarçamento. O termo tornou-se uma simples peça retórica de sentido confuso porque o nome não corresponde mais à coisa, nem a coisa ao nome.

O que hoje vemos por baixo do termo Democracia nada mais é que seu oposto mais contraditório. Em nome da Democracia se exerce o julgo impiedoso do autoritarismo, a imposição, a farsa, em suma: não a liberdade, mas a opressão. Tudo que é antidemocrático hoje é possível de caber nos regimes democráticos, em muitos casos sem maiores problemas, porque a Democracia já não é mais ela mesma, porém a sua encenação consumada no teatro da representação. Em um teatro de enredo único, com trama asfixiante onde se encenam tragédias reais, tão reais que mesmo os momentos cômicos nada mais são que a face mais perversa da tragicidade.

Se no momento histórico em que se gestavam os regimes democráticos de hoje falou-se que o rei estava nu, agora é possível afirmar que a representação está nua: a vemos como ela é, eivada de contradições, paradoxalmente despida por aqueles que com ela se vestem. Por isso, toda tentativa de reforma da Democracia que mantenha a atual versão representativa será remendo de pano novo em roupa velha. Não há mais espaços para meras reformas, é preciso, de fato, reinventá-la, recriá-la: em outros termos, é preciso profaná-la. Somente quando profanado o sistema representativo, os escolhidos deixarão de constituir a casta de hoje, e nós deixaremos de ser os párias.

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