14 Outubro 2016
"As ocupações gestam novas formas de sociabilidade. Implicam um uso inédito de um espaço disciplinar e de normalização (a escola) como uma alternativa tática às ruas, que foram o espaço aberto e exposto ao controle e à repressão que definiu junho. No espaço cerrado das escolas é possível redefinir e revalorizar experiências coletivas de liberdade e de responsabilidade", escreve Murilo Duarte Costa Corrêa, professor de Filosofia Política da Faculdade de Direito da UEPG, em artigo publicado por A Navalha de Dalí, 11-10-16.
Eis o artigo.
Domingo, 09 de outubro de 2016. Eu ponho pela segunda vez na vida os pés no Colégio Regente Feijó, um dos mais tradicionais de Ponta Grossa. A primeira vez havia sido uma semana antes, para justificar meu não-comparecimento eleitoral. Havia reunido dez pessoas para fazer uma visita, entre alunos da graduação em Direito, orientandos de Iniciação Científica, monitores de Teoria Política – tínhamos até um aluno do curso de Medicina da UEPG. Três secundaristas nos recebem por uma porta lateral. Anotam nossos nomes, o horário de entrada, pedem credenciais: “somos da Universidade. Viemos fazer uma visita à Ocupação”, explicamos. Reencontro o Bolota, um secundarista com seus 17 anos com quem havia conversado no dia anterior ao ver uma faixa pendurada no Colégio que dizia: “Fascistas não passarão”. Comentara com ele sobre minha intenção de visitar o ocupa e ele disse: “Podem chegar, a UEPG é sempre bem-vinda”.
Entramos. Não se ouve barulho nenhum. Há cartazes e faixas por todos os lados. Somos conduzidos ao auditório do Regente e avisados de que “vai rolar uma atividade, uma roda de conversa para discutir a PEC 241 e o PLC 257”. Antes de cursar Direito, provavelmente nem sabia o que essas siglas queriam dizer – mas eles, com seus 15 ou 17 anos de idade, sabem. Dois professores ligados ao ensino básico e à universidade fazem uma breve exposição. Expõem meia dúzia de ideias claras que permanecem abertas ao escrutínio e à contestação horizontal: os professores falam, mas no lugar do chefe indígena – porque os alunos só dão ouvidos ao que lhes interessa; o resto, deixam pra lá. Abre-se a discussão e as falas dos estudantes começam a produzir sentido: conectam a realidade cotidiana da merenda de chá com bolacha por meses a fio (“bolacha” é como se chama o biscoito no Paraná), ou das dificuldades estruturais do colégio com medidas de austeridade. Conectam a inexistência de uma educação integral e para a cidadania (a crítica à escola entediante e conteúdista) com a tecnocracia e as demandas do mercado por mão-de-obra qualificada e de pensamento curto. “A nossa escola ainda é muito melhor que a da MP. Temos bons professores”, diz alguém. Estimam e estabelecem a relação entre a reforma do Ensino Médio, de viés tecnocrático, com as medidas econômicas do governo, que tendem a liquidar os serviços públicos por asfixia, congelando investimentos. Dizem que nem eles, nem seus pais, podem pagar por esses serviços no varejo privado: “Somos pobres”, fala uma moça negra que tem um ar muito altivo. “Alguns de nós não se acham pobres, se acham classe média. Classe média é quem tem casa e carro quitado e viaja para fora do país uma vez por ano. Nós somos pobres”, ela diz.
E então outra menina, cujo rosto não consigo ver, incidentalmente responde aos críticos: “Dizem que nós somos vagabundos, que não queremos estudar, que aluno tem que estar na escola estudando. Mas nós estamos ocupando para poder continuar na escola, para poder continuar estudando, para a escola continuar existindo. É pelo nosso direito! Para que os nossos colegas, que discordam da ocupação, possam continuar estudando numa escola de nível bom. Para que os filhos das pessoas lá fora continuem estudando. E nossos filhos e os filhos dos nossos filhos… Não somos vagabundos: a escola está aberta. Tem atividades todos os dias. É só chegar e participar”.
“Dizem também que estamos sendo manipulados pelos professores. O movimento é dos estudantes do Regente. Nós decidimos tudo. Se algum professor quiser falar, nós até podemos ouvir, mas a escolha é nossa. Aqui não tem partido, não entra nem mídia, porque nós não deixamos; eles distorcem tudo e a gente tá lutando pela educação. E professor não vota na ocupação dos alunos. De todos os professores do Regente, um ou dois têm vindo dar algum apoio, perguntar se precisamos de alguma coisa. O resto não aparece. Mesmo os professores que, na sala de aula, diziam que achavam legais as ocupações em São Paulo. Contraditório, né?”, diz ainda outra menina.
As falas se multiplicam. A roda de conversa dura quase três horas. Poucos alunos entram e saem ao sabor do seu interesse. Estudantes de artes, direito, medicina, história, jornalismo e do magistério, também estão ali, ouvindo e, às vezes, intervindo. Integrantes de movimentos estudantis também foram dar seu apoio.
No final da atividade, nos levantamos e ficamos em onze ou doze pessoas, em pé – ao pé da porta. Conhecemos alguns estudantes, meninas e meninos, que se apresentam como “lideranças informais” da ocupação. “Aqui ninguém é líder. Quem decide tudo é a assembleia. A gente só tá ajudando a organizar horários, agendar atividades. Temos um quadro com as regras da ocupação. Tem horário pra entrar e pra sair, tem toque de recolher, tem horário para usar as quadras: não dá pra ficar o dia inteiro jogando bola, né? Não pode fumar, não pode beber. Dividimos as tarefas da comida e da limpeza. Tem três meninas na cozinha. Elas gostam de ficar na cozinha, mas queremos que alguns meninos participem – pra ficar mais igual”, conta V., uma menina que aparenta ter uns 16 anos, cabelo colorido, óculos estilosos, de acetato, aro grosso e um ar de irreverência e decisão. Apresenta o namorado e diz: “A gente até fez uma roda de conversa só das minas, ontem. Girl power. E teve oficina de origami. Precisamos pensar em atividades. Segunda vai ser tenso. Vamos ter uma reunião com os alunos que não apoiam a ocupação. Eles podem até agredir a gente, mas a gente não vai revidar. Vamos falar de boa, com respeito. A gente quer o respeito deles. Precisamos respeitar, mesmo que eles não concordem; mas eles têm que saber que o colégio continua ocupado. O calendário foi suspenso, mas o colégio está aberto para quem quiser ficar”.?
Saímos do auditório. Lá fora a noite havia caído. O pátio era um útero iluminado. Uma banda de rock local se preparava para tocar. Isso atraiu alguns estudantes universitários, ex-alunos do Regente estavam lá. Caminho pelo colégio ao som de uma canção antiga da Rita Lee. Em seguida, tocam duas ou três do Arctic Monkeys. “Trocaram o baterista”, alguém comenta. Tiro fotos. Ajudo a mudar uma faixa de lugar – tinta fresca. Enquanto isso, alguns alunos instauram uma oficina de malabares em plena quadra. Rock, dança e malabares. Um grupo menor, em um canto, com um violão, leva um metal que mal se ouve. Polifonia-Regente.
Leio um quadro com regras da ocupação. Uma ordem disciplinar estrita, mas muito simples: horários, regras de convivência, limpeza e asseio, tabela com as atividades do dia. Uma escola onírica cujo currículo está estruturado na educação dos afetos, do corpo e da linguagem: artes, esportes e diálogo. Os meninos do Regente haviam reinventado uma porção da Paideia grega – sem seus aportes policiais – na Ponta Grossa do século XXI, e isso era, sob todos os aspectos, um avanço veloz em direção a uma outra vida em comum.
No prefácio a Escolas de Luta (Veneta, 2016), Pablo Ortellado afirmou acertadamente que o movimento dos estudantes é “a primeira flor de junho, o primeiro desdobramento dos protestos de junho de 2013”. A luta dos estudantes paulistas contra a reorganização escolar promovida pelo governo Alckmin (eufemismo que ocultava o fechamento de escolas estaduais) constituía um desdobramento de uma práxis organizativa e política vinculada a um dos serviços públicos básicos que foi objeto das pautas sociais difusas que circularam nas ruas dois anos antes: a tal “Educação padrão FIFA”. Seu sucesso estaria na capacidade de integrar estudantes e obter apoio dos setores sociais mais “impolíticos”, geralmente referenciados pelo discurso anticorrupção.
As ocupações das escolas paranaenses têm uma pauta clara e universal, que transcende as reivindicações locais de muitas escolas: a imediata e integral revogação da Medida Provisória 746, que reforma o Ensino Médio segundo padrões tecnocráticos, editada pelo governo Temer. Se as ocupações são instrumentos de luta política – e seu resultado é, ainda, incerto –, já se pode antever um resultado político imediato na dimensão da experiência de resistência.
As ocupações gestam novas formas de sociabilidade. Implicam um uso inédito de um espaço disciplinar e de normalização (a escola) como uma alternativa tática às ruas, que foram o espaço aberto e exposto ao controle e à repressão que definiu junho. No espaço cerrado das escolas é possível redefinir e revalorizar experiências coletivas de liberdade e de responsabilidade. As formas de funcionamento geral de uma ocupação são definidas politicamente pela horizontalidade dos processos decisórios, pela inexistência de líderes – exceto lideranças informais e executivas, de caráter meramente organizativo – e, portanto, pela experiência de uma cultura autonomista. É essa cultura autonomista que serve de escudo político contra as investidas das mídias tradicionais, dos políticos profissionais que desejam tirar uma casquinha do movimento e da influência de partidos políticos. Uma agenda contestatória, como a dos ocupas, pode ter metas políticas claras e de largo espectro social sem ser partidária – e pode fazer da escola um laboratório social e político em escala reduzida: micropolítica…
Os ocupas também são espaços de gestação de uma nova possibilidade ética para um mundo acossado pelos universais da crise. Não se trata de restituir os valores em crise, mas de suspender as demandas da crise; trata-se de criar valores fundados na autonomia coletiva e performá-los, dando forma à vida comum que se desenrola na ocupação estudantil. Um ocupa tem, pelo menos, três pilares éticos: (1) a corresponsabilidade: os estudantes estão cientes das tentativas de desqualificação política e de criminalização de seu protesto; por isso, “andar na linha”, “fazer tudo certinho”, impor-se uma autodisciplina, torna-se condição de procedimentalidade para avançar sua pauta política e ganhar adeptos na sociedade civil – mesmo diante de uma opinião pública inicialmente refratária; (2) cuidado com o patrimônio público material e imaterial: os alunos cuidam da escola, de sua infraestrutura física, alimentação, higiene e propõem atividades, geralmente com o concurso de professores, ativistas de movimentos sociais, apoiadores da sociedade civil, que os mantêm ocupados e entretidos, identificando formas mais abertas de experimentar o aprender e o ensinar. Essas formas não precisam, necessariamente, dar-se no interior das salas de aula, ou segundo as disposições escolares tradicionais. Por isso, as rodas de conversa, as oficinas, os grupos de trabalho, as assembleias e as atividades de lazer convergem em uma experiência de educação integral (afetos, corpo, linguagem) e cidadã (política e, por isso mesmo, centrada na alteridade e na diferença); (3) a atividade propriamente política e democrática de dar-se regras é uma parte da ética de autodisciplina que os alunos se impõem. Encerrar-se na escola, “fugir do mundo” – nada disso é, para eles, uma forma ingênua de escapismo político. Trata-se de uma condição autoimposta, que lembra muito um movimento da vida monástica ou cenóbica que Agamben descreve em Altìssima povertà, em que a adesão a regras e a constituição de uma forma-de-vida se tornam indiscerníveis.
As ocupações são experiências de inventividade e de autonomia política; nelas, as escolas são o espaço de autoconstituição existencial e de “antecipação performativa do que se busca”, forjando, na experiência do próprio movimento, “as formas sociais a que se aspira” (Ortellado, 2016). Assim, os alunos transformam em práxis tudo aquilo que esperam do Estado, das instituições e do governo, mostrando à sociedade civil e aos poderes constituídos que a escola é um impossível feito real.
A escola tornou-se o útero de um mundo que está por vir: o ato de encerrar-se voluntariamente em um espaço disciplinar para converter a normalização em autodisciplina ou em ética, e as regras em forma de vida a instaurar pela experimentação prudente, é dar-se a chance de fazer da escola um espaço absolutamente outro, de cadenciar as cronologias (os sinais continuam ritmando a vida nas ocupações, mas em sentidos novos, imprevistos), e de brindar-se com a educação integral e cidadã que a Constituição da República promete e a MP 746 ameaça. A prática dos ocupas faz cair por terra as divisões tradicionais: ensino básico e superior, estudo e lazer, afeto/corpo/linguagem. Tudo se mistura em uma linha de fuga potente e ética que antecipa o devir de uma forma coletiva de viver e estar junto.
E na entrada principal do Regente Feijó continua escrito, desde o primeiro dia, um cartaz com uma frase do poeta Ferreira Gullar, que diz: “a arte existe porque a vida não basta”. É por perceber que a vida não basta, que esta vida não basta, que eles tornaram sua existência coletiva e radicalmente democrática uma obra de arte que instaura novos marcos na sensibilidade coletiva para uma outra forma de vida possível. Classicamente, nossa civilização dá a esse ato criador o nome de política. Eu chamo isso de “a escola contra o Estado”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Escola contra Estado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU