Os pecados de omissão

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24 Novembro 2017

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 34º Domingo do Tempo Comum, solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, 26 de novembro (Mt 25, 31-46). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Chegamos ao último domingo do ano litúrgico, que, nos tempos recentes (precisamente desde 1925, por obra de Pio XI), foi instituído como “Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo”: festa daquele que reunirá em si todas as realidades criadas, que se mostrará como “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap 19, 16) e que, no juízo final, emitirá a última palavra sobre o bem e sobre o mal da história, inaugurando “novos céus e nova terra” (Is 65, 17; 66, 22; 2Pd 3, 13; Ap 21, 1).

O ordo litúrgico prevê um trecho do Evangelho segundo Mateus, a conclusão do discurso escatológico (cf. Mt 24-25), pronunciado por Jesus em Jerusalém nos dias anteriores à sua paixão e morte. No coração do longo discurso referente ao fim dos tempos, Jesus anunciou a vinda do Filho do homem, a sua parusia gloriosa: primeiro, aparecerá nos céus o sinal do Filho do homem, a cruz, depois todos verão o mesmo Filho do homem que vem no poder e na glória subir nas nuvens do céu, cercado por anjos enviados para reunir os eleitos de todos os confins da terra.

Será um advento de dimensão cósmica, um evento que se imporá a todo o universo e que provocará nos povos da terra um sentimento de acusação contra si pelo mal cometido, até se bater no peito. Cada um contemplará Aquele que vem na glória, transpassado, porque ele atrairá a si os olhos de todos (cf. Jo 19, 37; Ap 1, 7).

Depois desse anúncio (cf. Mt 24, 4-44), Jesus faz uma admoestação (cf. Mt 24, 37-44) e entrega três parábolas sobre a vigilância e sobre responsabilidade a ser assumida diante da sua vinda gloriosa (cf. Mt 24, 45-25, 30). Por fim, encerra o discurso com o trecho que meditamos neste domingo, texto dificilmente catalogável nos gêneros literários: é um relato que parece uma parábola, mas não o é plenamente; também não é uma alegoria; é mais um relato exemplar, a descrição profética de um quadro apocalíptico.

Abrindo o coração e pedindo ao Espírito Santo que atue na nossa inteligência, tentemos agora captar nessas palavras de Jesus onde está para nós, aqui e agora, o Evangelho, a boa notícia.

“Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos…” Sim, no horizonte da história, está a vinda do Filho do homem, Aquele que vem de Deus, preexistente à criação do mundo junto de Deus, que, na humildade, veio ao mundo e anunciou o Reino em ações e palavras, que agora vai rumo à paixão e morte, mas que virá na glória no fim da história por um decreto extrínseco à própria história, em obediência à vontade do Pai, Senhor e Criador do céu e da terra.

Quando ele vier na glória, aparecerá com todos os seus anjos, criaturas invisíveis a nós. Assim ocorria, de acordo com o Antigo Testamento, a manifestação, a epifania do Deus vivo: quando Deus aparece, é cercado pelas suas fileiras de mensageiros (cf. Dt 33, 2) e pelos seus santos (cf. Zc 14, 5). É o jom ‘Adonaj, “o dia do Senhor” (cf. Am 5, 18.20; Is 2, 12; Sf 1, 7 etc.), preanunciado pelos profetas, no qual Aquele que vem se manifestará, encarregado de emitir o juízo sobre toda a história. Ele tem a aparência de um “humano” (ben enosh, hyiòs toû anthrópou) e, sendo juiz, vai se sentar no trono da glória, o trono sobre o qual o Senhor reina (cf. Sl 9, 5.8; 11, 4 etc.).

A visão é grandiosa: diante dele, estarão reunidas todos os povos da terra, de todos os lugares e de todos os tempos, toda a humanidade! Acima de tudo, se tratará de fazer uma separação, de fazer um discernimento entre os humanos, do mesmo modo com que um pastor deve separar as ovelhas das cabras. Se o joio havia crescido junto com o grão, agora deve-se separá-lo deste (cf. Mt 13, 24-30.36-43); se a rede havia capturado peixes bons e peixes ruins, chegou o momento de fazer a seleção, conservando os bons e jogando ao mar os ruins (cf. Mt 13, 47-50).

Essa operação que o Filho do homem fará como pastor sempre foi anunciada e é necessária para que a última palavra sobre o mal e sobre o bem realizado pelos humanos na história seja de Deus: palavra definitiva, palavra de justiça, que contém em si a misericórdia, mas é, ao mesmo tempo, um juízo. Ai do cristão se esquecer essa realidade que o espera, confessada, por outro lado, no Credo: “De novo há de vir em sua glória, para julgar (venturus est... iudicare) os vivos e os mortos, e o seu Reino não terá fim”.

Diante desse Rei universal, que admite ou exclui do seu reino, há o oikouméne, o mundo inteiro, a humanidade, os cristãos e os filhos de Israel: todos, realmente todos! Ao mesmo tempo, adverte-se que o juízo é feito a cada pessoa, homem e mulher, porque o Rei “retribuirá a cada um de acordo com as suas ações” (Mt 16, 27; cf. Sl 62, 13).

Eis, então, a segunda cena, a do juízo propriamente dito, constituída por um dítico que apresenta elementos paralelos: uma dupla sentença emitida sobre a humanidade, a primeira, positiva; a segunda, negativa. O que o Rei sentado no trono da glória considera para formular o juízo? Isso é muito interessante, e acho que pouco nos interrogamos sobre a escolha dos capítulos de aprovação ou de acusação escolhidos e proclamados por Jesus.

Não se trata de questões que dizem respeito à fragilidade dos humanos, ao fato de terem feito o mal por serem atraídos por paixões humanas. Não que estes não tenham sido pecados, mas, em vista da salvação ou da perdição, não aparecem como causas de vida ou de morte eterna. Também não são elencados os pecados contra Deus, como a blasfêmia ou a não observância do sábado (de tradições religiosas). As culpas que causam a exclusão ou o ingresso no Reino são, ao contrário, aquelas concernentes às relações, aos relacionamentos entre os humanos, particularmente referentes à situação de necessidade ou de desgraça: a fome, a sede, a marginalização do estrangeiro, a nudez, a doença, a prisão. Em relação a essas situações, como os humanos se comportaram? É sobre a resposta a essa interrogação que se fundamenta a bênção ou a maldição.

Esse Rei do universo, portanto, pode dizer: “Vinde benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar”.

Aqui se joga a salvação: na relação concreta com todos os outros seres humanos. Sobre a terra, já ocorre o “processo”, quando, diante de quem tem necessidade, fazemos algo, aquilo que podemos e sabemos fazer, ou não fazemos nada, porque passamos adiante, ignorando o seu grito de ajuda. No fim, no juízo, haverá apenas a sentença.

Não é no culto, não é na liturgia que nos salvamos, mas na relação entre corpos, no rosto contra rosto, mão na mão, carne que toca a carne... O amor que Jesus requer não é abstrato, não é feito de intenções e sentimentos, não é apenas “oração por”: é ação, comportamento, responsabilidade concreta.

Se a liturgia, a oração e os sacramentos não nos levam a isso, então são estéreis e inúteis, porque, na verdade, estão finalizados ao amor, ao viver no amor, ao amar até mesmo o inimigo, o não amável (cf. Mt 5, 43-48).

Mas essa sentença do Rei surpreende e maravilha aqueles a quem é dirigida. Por isso, eles reagem com uma pergunta: “Senhor, quando foi que fizemos isto e aquilo?” O estupor dos justos é altamente significativo: estes “benditos” não sabem que foram misericordiosos também para com Jesus! E é fundamental não saber disso, porque Jesus, como Deus, é presença escondida, evasiva: se não o reconhecemos, fazemos a ação em plena gratuidade, sem pensar em ter feito uma obra meritória que Deus recompensará por ter sido dirigida ao Filho do homem. A maldade ou a bondade da ação feita nascem do modo em que se vive a relação com o irmão ou a irmã, e não em relação ao Deus que não se vê.

Sobre isso, são sempre instrutivas as palavras da Primeira Carta de João: “Ninguém jamais viu Deus. Se nos amamos uns aos outros, Deus está conosco, e o seu amor se realiza completamente entre nós. (…) Se alguém diz: ‘Eu amo a Deus’, e no entanto odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4, 12.20; trad. Bíblia Pastoral).

Sim, entre estas pessoas diante do Rei, há algumas que não conhecem Jesus, que nunca ouviram falar dele: seja os seus discípulos, seja aqueles que são estranhos ao cristianismo, todos são julgados com base na relação com os pequeninos (oi eláchistoi), irmãos e irmãs de Jesus, o pequeno e o pobre por excelência.

Ao término dessa escuta, ardem-me os ouvidos, porque, como ouvinte e leitor, sou obrigado a constatar quantas vezes eu cometi omissões, isto é, não fiz o bem: os pecados de omissão são os capítulos de acusação contra nós no dia do juízo. Bênção para quem soube cuidar, com a sua carne, da carne de irmãos e das irmãs; maldição para quem passou adiante, talvez sussurrando orações, mas não vendo, não reconhecendo, não se aproximando do outro que estava em necessidade.

Essa página é um grande ensinamento para aqueles que pensam que podem amar ao Deus que não se vê sem amar o necessitado que se vê... No entanto, nós, cristãos – confessemo-lo –, não estamos entre os benditos: há pessoas com fome na entrada dos supermercados, e nós lhes damos apenas as moedas que pesam nos nossos bolsos; há pessoas estrangeiras, e nós pensamos nelas dando algo de supérfluo à Cáritas, talvez para a ceia de Natal, mas nunca as convidamos para a nossa mesa, na nossa casa, porque isso causa muito desconforto; há aqueles que estão nus, e, no máximo, damos-lhes uma roupa consumida por nós, que consideramos indigna de estar nos nossos armários cheios; há aqueles que estão na prisão, e nós sequer sonhamos em ir encontrá-lo, porque não o conhecemos e porque pensamos que mereceu estar onde está.

Como somos hipócritas! O juízo do Rei o mostrará.

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