"Encontramos Deus em nossa própria humanidade"

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02 Janeiro 2011

"O Evangelho tem algo muito forte, muito duro, que não cabe em nossa cabeça. A partir do primeiro Natal que houve na história, Deus já não é encontrado no forte, mas sim no frágil. Desde o momento em que Jesus veio a este mundo, encontramos Deus em nossa própria humanidade."

A reflexão é do teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado no sítio Religión Digital, 08-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Não falo de males e de catástrofes, que já temos muitos. E muito falamos de nossas desgraças. Melhor seria se tivéssemos uma visão positiva e esperançosa da vida e das coisas. Por isso, hoje, às vésperas do Natal, proponho que pensemos no dano que a todos nos causa o medo que temos à nossa própria humanidade. Porque estou persuadido de que, nesse medo, está a explicação e a raiz de tantas torpezas e maldades que poderiam e que teriam que ser evitadas.

Desde a noite de Natal até o Dia dos Reis, os cristãos recordam uma série de episódios nos quais é fácil indicar o que há de lenda e o que há de verdade nesses relatos. Os estudiosos quebram a cabeça tentando decifrar cada detalhe e não conseguem se pôr de acordo. Mas, em todo o caso, o que há de certo (para um cristão) nos evangelhos da infância (Mt 1-2; Lc 1-2), é que "o divino" (Deus, em definitiva) se deu a conhecer, se fez presente e se manifestou no "humano". E precisamente no mais humano: uma criança, de condição humilde e em circunstâncias de despojo, desamparo e perseguição à morte.

Sem dúvida, como se sabe, a historicidade desses fatos é questionada por não poucos pontos de vista e em muitos de seus detalhes. Mas isso é o que menos importa neste momento. Não esqueçamos que os evangelhos não são primordialmente "livros de história", mas neles nos é oferecida uma "mensagem religiosa". E isso é o que interesse ao fiel. Ou é isso o que lhe deve interessar.

Pois bem, a "mensagem religiosa" dos evangelhos da infância é obstinadamente clara e provocativa. É a mensagem que nos diz isto: "o divino" se encontra no "humano". No mais humano, isto é, no frágil, no marginal, no excluído e até no perseguido. "O divino" não se fez presente no portentoso, no milagroso, no surpreendente, como aconteceu com Moisés na sarça ardente ou no monte Sinai. "O divino" se fez presente em uma criança, em um estábulo, entre sujeira e animais. E foi anunciado a pastores, uma das atividades marginais daquele tempo. E até o rei, informado pelos sacerdotes, decidiu matá-lo.

Foi assim que "o divino" teve que se fazer emigrante. Porque "o divino", que se faz presente no "humano", não tem "papéis". É verdade que o menino foi circuncidado (Lc 2, 21), como se fazia com todos os humanos daquela cultura. E o levaram ao templo (Lc 2, 22-23), como também se fazia então com todos os humanos. Mas fica de pé o fato de que, segundo os evangelhos da Natividade, "o divino" se faz presente, se comunica, se dá em algo tão humano, tão frágil, tão entranhável que é encontrado "um recém nascido envolto em faixas e deitado em uma manjedoura" (Lc 2, 12).

O Evangelho tem algo muito forte, muito duro, que não cabe em nossa cabeça. A partir do primeiro Natal que houve na história, Deus já não é encontrado no forte, mas sim no frágil. Não é encontrado no grande, mas sim no insignificante. Não é encontrado no grandioso e no notável, mas sim no que não tem valor para ninguém. Não se trata de que o Evangelho representa um projeto niilista, inumano. Trata-se exatamente de todo o contrário. O Evangelho é a afirmação mais sublime do humano. Porque é evidente que aqueles que conheceram Jesus, o que viram e apalparam nele foi um ser humano.

Então, por que, desde antes de nascer e em seu nascimento, os anjos e a força do Espírito interviram? E tudo isso, além disso, envolto em sonhos, aparições, enigmas e manifestações do extraordinário e do celestial? Porque era preciso vencer nossa pertinaz resistência para aceitar que, desde o momento em que Jesus veio a este mundo, encontramos Deus em nossa própria humanidade.

Mas isso é o que não cabe em nossa cabeça, nós, humanos. Gostamos do grande, do importante, do notável, do solene, do que impressiona e chama a atenção, do que se impõe e se admira... Tudo isso e o que se parece a isso. Mas e o que não é nem mais nem menos do que o humano? O que é comum a todos os humanos? Pois isso, precisamente isso, que é o que tantas vezes menos valorizamos, isso é o que mais necessitamos. Porque é o que mais nos humaniza. E é o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade. Todos somos "educados" para ser importantes, mas não para ser simplesmente humanos.

Daí, a consequência mais perigosa e mais patética que todos arrastamos. Seduz-nos o poder. Seduz-nos a glória. Queremos, a todo custo, ser importantes, nos destacar, ser notáveis. Confesso publicamente que, para mim pelo menos, tudo isso me atrai, me agrada e é motivo de anseios inconfessáveis. Anseios e desejos que, quando sou sincero comigo mesmos, os maldigo mil vezes. Porque esses sentimentos me rompem por dentro e destroçam minha própria humanidade.

Essa "civilização" (?), essa "cultura" (?) em que vivemos fez conosco o pior que podia ser feito. Inoculou-nos o medo à nossa própria humanidade. Tem razão o velho mito do paraíso perdido: a tentação satânica, que a todos nos acossa, é o desejo de "ser como Deus" (Gn 3, 5). Estou cansado de ver "ateus" (e não digamos "crentes") que passam a vida aspirando a ser "como Deus". Não sei se conseguem. O que eu sei, sim, é que somos muitos os que, à força de tanto querer alcançar ser "divinos", deixamos de ser verdadeiramente "humanos". Tanta falsa apetência de "divindade" esfarrapou a nossa própria "humanidade".

E, além disso, se pensamos no que aconteceu no âmbito das crenças e no próprio terreno da teologia, o que aconteceu é que "o divino" se distanciou tanto do "humano" que chegou a entrar em conflito com as melhores manifestações da nossa própria humanidade. Basta pensar nos constantes enfrentamentos entre os supostos direitos do divino e os direitos humanos. Sem falar no destroço que essas ideias causaram no próprio estudo da cristologia. Dá pena pensar que não poucos hierarcas da Igreja gritam aos céus se ouvem dizer que Jesus foi não somente humano, mas também o modelo perfeito da plenitude humana. Ser representantes do poder divino, que lhes dá cargos e poder, lhes encanta. Ser exemplos de humanidade, isso é outra história.

 

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