Novas leis trabalhistas podem aumentar desigualdade no campo

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21 Setembro 2017

Trabalhadores rurais podem receber menos e ter que trabalhar mais a partir de novembro, quando passam a valer as regras da reforma trabalhista. Críticos apontam que novas regras devem aumentar a desigualdade.

A reportagem é de Ana Magalhães e publicada por Repórter Brasil, 20-09-2017.

Eduardo [nome fictício], 44 anos, trabalha de pé. Passa pelo menos seis horas por dia percorrendo uma extensa plantação de cana no interior de São Paulo. Nas costas, carrega um vasilhame cheio de herbicida, usado para o controle de ervas daninhas. Há oito anos, ele faz a mesma coisa: acorda às 5 horas da manhã, pega o ônibus da empresa às 6h30, fumiga, fumiga, fumiga, espera ansioso pelos intervalos de descanso e sombra até voltar cansado para casa no final da tarde.

Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Mesmo com um trabalho pesado e desgastante, é considerado um privilegiado. Eduardo tem carteira assinada e salário garantido o ano inteiro – e não apenas no período da safra. Como ele, apenas 1,6 milhão de trabalhadores rurais têm contratos fixos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Os dados, colhidos pelo IBGE em 2015, mostram que do total de 13,5 milhões de trabalhadores rurais brasileiros, 12% têm carteira assinada, 17% trabalham informalmente (com acordos verbais e temporários) e 68% dedicam-se à agricultura familiar, mas vez ou outra fazem bicos na roça ou na construção civil para complementarem a renda.

Eduardo ainda não sabe que seu “privilégio” está por um fio. Ao falar sobre as mudanças nas leis trabalhistas promovidas pelo governo Michel Temer, diz que “não tá por dentro”. Ele não suspeita que, a partir de novembro, quando as novas regras da reforma trabalhista entram em vigor, o seu salário pode ter redução de 12%.

A queda salarial acontece porque, hoje, Eduardo recebe pela hora que gasta no ônibus da empresa para chegar à plantação de cana. Os longos deslocamentos no campo são considerados como tempo de trabalho, e portanto integram o salário. A partir de novembro, as empresas podem parar de pagar por essas horas de deslocamento.

“Isso não está certo”, reage Eduardo quando informado da mudança. Cada hora faz diferença. Eduardo ganha hoje cerca de R$ 1.400 por mês, dos quais cerca de R$ 170 referem-se ao deslocamento. Além do dinheiro, ele também pode ser obrigado a fazer jornadas mais longas, além de estar mais exposto ao risco do trabalho escravo.

Aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Michel Temer no dia 13 de julho, a reforma trabalhista alterará a vida de milhares de trabalhadores brasileiros. Entre as mais afetadas estão as do campo, onde são baixos os salários e é grande a vulnerabilidade.

Redução em até 20% dos salários

Uma das mudanças mais significativas para a população rural é justamente o fim do pagamento pela hora de deslocamento. Na avaliação do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaú, Junior Stefanin, os cerca de 5 mil trabalhadores da cana da região terão perda salarial entre R$ 150 e R$ 200 por mês apenas por causa dessa mudança – um valor que equivale de 10% a 20% do salário médio desses trabalhadores.

Similar é o cálculo feito por Abílio Penteado da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Empregados Rurais de Paulistânia, região de São Paulo que concentra plantações de laranja. Segundo ele, os cerca de 8 mil trabalhadores da região gastam, em média, 2 horas por dia de deslocamento em ônibus da empresa.

Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Se deixarem de receber por essas horas, a redução salarial pode chegar a R$ 170 por mês. “Esse valor parece pequeno, mas vai fazer muita falta para o trabalhador”, lamenta. O piso da categoria é de R$ 1.100, mais o pagamento pelas horas de deslocamento e horas extras.

O Ministério do Trabalho e Emprego informou, por meio de nota, que a Reforma Trabalhista não reduzirá o padrão salarial dos trabalhadores rurais, porque “todos os benefícios foram mantidos, tanto para o trabalhador urbano, quanto para o rural”. A nota diz também que o fim do pagamento pela hora de deslocamento não prejudica o trabalhador do campo, “já que as regras que versam sobre a matéria foram apenas transferidas para acordos e convenções coletivas”.

Outra mudança prevista na reforma também pode reduzir os benefícios dos trabalhadores rurais contratados: trata-se do artigo da nova lei que diz que “prêmios e gratificações”, entre outros adicionais, deixam de fazer parte do salário dos trabalhadores.

No campo, o adicional por produção hoje integra o salário do trabalhador. Isso faz diferença na hora de calcular as férias remuneradas, o 13º salário, o FGTS, o seguro-desemprego e as contribuições ao INSS. Esse adicional por produção pode passar a ser pago como “prêmio” por produção – por fora do salário. Assim, um trabalhador rural que ganha hoje R$ 1.600 – o que inclui o piso da categoria e o adicional por produção – pode passar a ganhar R$ 1.100 na carteira – e um prêmio por produção de R$ 500. “É a legalização do pagamento por fora”, critica Carlos Eduardo Chaves, assessor jurídico da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar).

O Ministério do Trabalho informa não haver prejuízo ao trabalhador diante do fato de prêmios e gratificações deixarem de fazer parte do salário. “O objetivo da lei é fortalecer os atores empregados/empregadores por meio de acordos e convenções coletivas”, diz a nota.

Desigualdade em cascata

A maior preocupação dos pesquisadores ouvidos pela Repórter Brasil é a de que a reforma reduza o padrão salarial de todos trabalhadores rurais. Começando pelos formalizados e depois influenciando no pagamento dos informais, gerando a ampliação da desigualdade, que já é acentuada na zona rural.

“A filosofia da nova CLT é deixar o mercado de trabalho se autorregular. Em um mercado desigual como o do agronegócio e do trabalho na zona rural, a reforma vai produzir mais desigualdade”, lamenta Guilherme Delgado, economista pela Unicamp e um dos maiores estudiosos da questão agrária brasileira.

Segundo análise do Dieese, com base na Pnad, 78% dos trabalhadores rurais informais têm rendimento mensal médio de até um salário mínimo. Sendo que um terço deles recebe menos de um salário.

“Não existe igualdade de forças entre patrão e empregado – e no campo essa desigualdade é ainda maior”, afirma Chaves, da Contar.

Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

A reforma ameaça o que costumava ser um porto seguro do trabalhador do campo: o salário mínimo. O pagamento costumava ser respeitado para quem tem carteira assinada e para a maioria dos informais, mas está ameaçado pelas novas regras, na avaliação de Alexandre Arbex e Marcelo Galiza, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

“Os empregados permanentes do campo hoje podem passar a ser empregados temporários”, afirma Arbex. Isso porque contratos fixos poderão ser substituídos por contratos temporários ou intermitentes – quando o trabalhador fica à disposição, mas recebe apenas pelas horas realmente trabalhadas. Pelo texto aprovado, o pagamento mínimo por dia na jornada intermitente equivale ao salário mínimo diário. Entretanto, o trabalhador pode não trabalhar dias suficientes para completar o salário mínimo no final do mês.

Sobre a jornada intermitente, o Ministério do Trabalho informa que a ideia dessa nova forma de contrato é justamente alcançar aquele trabalhador que quer flexibilizar sua atividade laboral. O órgão destaca ainda que, quando a categoria profissional tiver um piso salarial superior ao salário mínimo, “o contrato intermitente levará em consideração o pagamento proporcional ao piso”.

Agricultura familiar em risco

Além do efeito cascata sobre os trabalhadores informais, a precarização dos atuais contratos rurais poderia gerar efeito indireto sobre a maioria que se dedica à agricultura familiar.

Primeiro, porque os contratos informais têm como referência os valores pagos a quem tem carteira assinada. Depois, porque em uma única família rural há diversos tipos de trabalhadores: aqueles que se se dedicam à própria lavoura, os que têm trabalhos temporários e há ainda aqueles com carteira assinada. Assim, precarizar o trabalho e a remuneração dos assalariados pode afetar a remuneração familiar como um todo e complicar, indiretamente, a manutenção dessas famílias no campo.

“Os reflexos da reforma trabalhista sobre a dinâmica de produção da agricultura familiar podem influir negativamente, de modo indireto, sobre a produção de alimentos”, avalia Arbex. De acordo com o último Censo Agropecuário, realizado em 2006, 70% dos alimentos produzidos no Brasil são cultivados pela agricultura familiar.

Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Um efeito positivo seria a possível formalização dos atuais trabalhadores informais, já que as novas regras permitem jornadas bastante flexíveis. No entanto, essa formalização não significaria uma melhora, pois as condições de trabalho, pagamentos e jornadas seriam os mesmos do que já é praticado hoje na informalidade. Neste caso, seria uma formalização positiva para as estatísticas, mas sem mudanças reais na vida dos trabalhadores.

Guilherme Delgado discorda até dessa possibilidade de aumento da formalização. “Ao contrário, a reforma tende a aumentar a rotatividade, já alta no campo”.

O Ministério do Trabalho rebate o possível aumento da rotatividade no campo ao afirmar que o “equilíbrio nas relações de trabalho visa à estabilidade na relações contratuais e aumento da confiabilidade do mercado para novas contratações”.

Entidades patronais defenderam novas regras

Todos esses impactos da reforma trabalhista são possibilidades abertas pela nova lei, o que não significa que as empresas e empregadores de fato vão instituir essas mudanças. No entanto, algumas das alterações trabalhistas foram demandas diretas de entidades patronais e de representantes do agronegócio, sinal de que provavelmente serão aplicadas.

A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), por exemplo, apoiou a reforma com o argumento de que as mudanças representarão a modernização no campo. Assim como ela, as federações estatais da agricultura e pecuária foram as principais defensoras do fim do pagamento da hora de deslocamento. O advogado da CNA, Cristiano Zaranza, chegou a defender, em entrevista ao Canal Rural, o fim da hora de deslocamento, argumentando que o pagamento reduziria a jornada e a produtividade do trabalhador.

A entidade também soltou uma nota pública em março elogiando a aprovação, pelo Congresso, da terceirização da atividade-fim. A nota afirma que “no setor agropecuário, a nova lei irá contribuir não só para reduzir os custos do produtor rural, mas também para aumentar a oferta de empregos”. A ampliação da terceirização foi sancionada pelo presidente Michel Temer em 31 de março, em um projeto de lei diferente da reforma trabalhista.

Procurada pela reportagem, a CNA afirmou que está estudando os possíveis impactos da reforma trabalhista no campo e que não se manifestaria até a conclusão dessa análise – sem prazo para ser concluída. A Faesp-Senar (Federaçao da Agricultura do Estado de São Paulo) foi procurada pela Repórter Brasil, mas também não atendeu ao pedido de entrevista.

Aumento do trabalho escravo e da jornada

O campo brasileiro concentra as piores formas de exploração do trabalho. Entre 1995 e 2015, dos 50 mil trabalhadores resgatados em situação análoga ao trabalho escravo, 88% se dedicavam a atividades rurais.

Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Esse quadro se agrava devido à ampliação da terceirização, aprovada em março pelo Congresso Nacional. Para Roberto Figueiredo, coordenador do projeto rural do Ministério do Trabalho em São Paulo, as novas regras podem dificultar o combate ao trabalho escravo no campo. Isso porque, até hoje, a maior parte dos resgatados estavam em terceirizadas, em geral empresas com poucos recursos e que dependem de grupos econômicos maiores. Por isso, a principal estratégia da Justiça e do Ministério Trabalho no combate ao crime é o de responsabilizar os grupos econômicos maiores, que determinam as condições dos terceirizados. Com a nova lei da terceirização, porém, essa responsabilização fica mais difícil. Enfraquecendo, assim, o combate sistemático ao trabalho escravo.

Em nota, o Ministério do Trabalho afirma que “em virtude da regulamentação do do contrato de terceirização, verifica-se possibilidade de maior atuação estatal, não havendo que se falar em disseminação do trabalho escravo e ausência de fiscalização”.

Há ainda o risco de aumento da jornada de trabalho, um elemento de alto impacto para atividades que geram desgaste físico. A nova lei permite jornadas de até 10 horas e redução dos intervalos de descanso. “Um canavieiro, por exemplo, não consegue trabalhar esse tanto de horas, e se o fizer, vai adoecer”, afirma Figueiredo.

“No campo estão os maiores índices de informalidade, os trabalhadores com menor escolaridade e onde há a cultura do trabalho escravo”, afirma o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Aristides Santos, argumentando pela importância dos sindicatos rurais. Ele avalia que o fim da obrigatoriedade do imposto sindical, previsto na reforma, provavelmente enfraquecerá essas entidades – o que pode deixar o trabalhador do campo ainda mais à deriva.

Pagamento em comida

Na esteira da reforma, outros projetos de lei chamaram a atenção pelo avanço sobre direitos básicos do trabalhador rural. O principal deles é o PL 6442, do deputado Nilson Leitão (PSDB / MT), que prevê a possibilidade de pagamento dos trabalhadores rurais mediante “remuneração de qualquer espécie”, o que pode incluir alimentação e moradia.

Dentre as mudanças propostas, todas específicas para os trabalhadores rurais, está ainda o aumento da jornada para 12 horas “por motivo de força maior”. O projeto foi apresentado no plenário da Câmara em novembro do ano passado e ainda não tramitou pelas comissões. Após repercussão negativa na imprensa e nas redes sociais, Leitão, um dos líderes da bancada ruralista, disse que vai alterar o projeto. A simples proposição de uma lei autorizando pagamento em alimentação e moradia, porém, é um indicativo do quanto a bancada ruralista está disposta a avançar nos questionamentos às leis trabalhistas.

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