De Pio XI & Mussolini a Francisco & Trump

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01 Dezembro 2016

“Não acho que os católicos americanos irão redefinir por completo suas identidades ou que vão se realinhar a fim de construir uma frente unida contra Trump. Mas eu ficarei surpreso se a presidência de Trump vier a deixar inalterado o catolicismo neste país. Uma parte significativa da Igreja se viu ferida nesta eleição”, escreve Massimo Faggioli,  em artigo publicado por Commonweal, 29-11-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis o artigo.

O Jubileu Extraordinário da Misericórdia acabou. O Papa Francisco fechou a Porta Santa em Roma no domingo, 20 de novembro, na solenidade de Cristo, Rei do Universo, que concluía o ano litúrgico. Esta solenidade foi instituída pelo Papa Pio XI com a encíclica Quas Primas, publicada no ano jubilar de 1925. Tal encíclica ocorreu num momento em que o fascismo estava em ascensão na Itália, seguindo-se à “marcha sobre Roma” em 1922 e em meio ao seu fortalecimento e controle violento sobre todos os aspectos da vida italiana em 1924 e 1925. Em Quas Primas, Pio XI fala contra o secularismo e o anticlericalismo, declarando que a verdadeira soberania nos assuntos terrenos não pertence aos humanos, mas a Cristo: “En cambio, si los hombres, pública y privadamente, reconocen la regia potestad de Cristo, necesariamente vendrán a toda la sociedad civil increíbles beneficios, como justa libertad, tranquilidad y disciplina, paz y concordia”. Essa visão da realeza ou régia potestade de Cristo expandiu o papel da Igreja Católica de Roma e do papa nos assuntos políticos. A concordata, porém, assinada entre o Vaticano e Mussolini em 1929 foi, na prática, uma bênção ao regime fascista. O plano ilusório de amansar Mussolini não ajudou os católicos europeus a evitar o colapso moral para dentro do nacionalismo que levou à Segunda Guerra Mundial.

Frequentemente o Papa Francisco evoca a imagem de Cristo Rei; isto resulta de sua criação religiosa nas décadas de 1930 e 1940. Mas, com notou um pesquisador italiano recentemente, ele usa essa imagem no enquadramento de uma eclesiologia diferente da Igreja no mundo moderno, que, de forma alguma, é uma imagem progressista no sentido de “distinção” que tende à “separação”. Francisco tem reformulado as ideias da realeza de Cristo e do papel da Igreja no mundo retendo a ideia de “devoção”, porém despindo da imagem de realeza o componente antidemocrático comum no catolicismo anterior à Segunda Guerra Mundial e ao Vaticano II. Mais do que isso: Francisco expressa e encarna um espaço cultural e geográfico muito maior, um espaço que não comunica uma teologia das nações ou de uma nação particular; a Igreja global que ele encarna evita que a ideia de realeza de Cristo de torne subserviente e subjugada a uma cultura política nacionalista, fascista e antidemocrática. Na recém-publicada carta apostólica para o fim do jubileu, Misericordia Et Misera, Francisco criou um novo “Dia Mundial dos Pobres” para o domingo antes da solenidade de Cristo Rei, tentando assim ressignificar, para os nossos tempos, uma solenidade litúrgica que, em 1925, foi criada com uma intenção claramente política.

Veremos se e como a eclesiologia e a mensagem sociopolítica de Francisco vão ajudar os católicos americanos a lidar com a eleição de Donald Trump. O contraste entre o que defendem Francisco e Trump é central para entender o apelo do papa no mundo perigoso de hoje. Mas não se trata apenas de uma escolha entre a visão de Trump e a visão de Francisco a respeito de um assunto ou outro. Tem também o desafio ao universalismo católico – ou melhor, o desafio à convicção de que o universalismo católico é uma maneira eclesiológica de definir a catolicidade do nosso mundo singular, de sua unidade e solidariedade.

Em última instância, o desafio é eclesiológico: uma configuração nacionalista/identitária do cristianismo versus uma configuração ecumênico-universal. Embora o catolicismo americano não vá passar pelo que passou a Igreja Ortodoxa Russa durante o regime de Putin, vale avaliar essa situação e suas implicações no contexto atual. Creio que na era Trump poderá haver mudanças genuínas na Igreja Católica americana.

Primeiramente está o impacto potencial sobre o elemento “romano” do catolicismo nos Estados Unidos, dadas as tensões nas respectivas cosmovisões de Francisco e Trump. Um dos melhores livros sobre o catolicismo e o fascismo é “Rome in America”, de Peter D’Agostino, que descreve como o fascismo na Itália se relacionava com o “romanismo” dos católicos americanos. Será que aqueles católicos americanos que resistem a Trump irão se aproximar de Roma, de Francisco e ao que o Vaticano hoje propõe? Se algo assim acontecer, será uma virada irônica, dada a longa e ainda recente história de acusações contra o Vaticano que estaria conspirando para destruir a democracia americana.

Uma segunda mudança poderia se dar no papel da instituição eclesiástica, que, no mundo ocidental de democracias sob o perigo dos populismos, é na verdade uma das últimas instituições em pé, dada a significação diminuída dos partidos políticos, dos sindicatos e outras instituições que tornaram possível a inclusão das massas populares no processo democrático. Eis uma outra virada irônica da história, visto que a Igreja Católica lutou contra a legitimação secular do Estado-nação até o começo e meados do século XX. Será que a crise das instituições democráticas irá unir os católicos em torno de uma igreja (como a Igreja Católica) que, embora não democrática na forma como funciona, permanece não obstante sendo uma das últimas defensoras da democracia e da ideia de política como uma vocação nobre? Em outras palavras, o desafio de Trump à civilidade poderá unir identidades católicas que têm estado em conflito há décadas sobre temas biopolíticos e sobre “valores não negociáveis”?

Talvez uma resistência católico-americana a Trump possa fazer o que a Igreja institucional não tem sido capaz de fazer: criar uma maior unidade. Não acho que os católicos americanos irão redefinir por completo suas identidades ou que vão se realinhar a fim de construir uma frente unida contra Trump. Mas eu ficarei surpreso se a presidência de Trump vier a deixar inalterado o catolicismo neste país. Uma parte significativa da Igreja se viu ferida nesta eleição. Necessário e urgente como o é, nomear mais bispos de descendência latina ou ficar ao lado dos católicos latinos não vai ser tudo o que os católicos americanos têm de fazer. Não tem a ver apenas com salvar a democracia americana, mas também salvar o catolicismo americano da ilusão da possibilidade de uma reconciliação católica com Trump na base de uma abordagem pragmática politicamente orientada.

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