A Bolívia diante de seu novo desafio. Artigo de Atilio Boron

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07 Setembro 2016

“A Bolívia teve imensos progressos com o governo de Evo Morales e uma adequada combinação de serenidade e firmeza lhe permitirá superar os desafios atuais e também romper o cerco regional constituído pelos governos de muito frágil legitimidade e cuja duração, especialmente no caso do Brasil e, em menor medida, na Argentina, está incerta”, escreve o sociólogo e cientista político Atilio A. Boron, em artigo publicado por America Latina en Movimiento, 05-09-2016. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

O assassinato em Panduro, Bolívia, do vice-ministro Illanes reflete claramente os extremos aos quais é capaz de chegar a coalizão destituinte formada pelo imperialismo norte-americano, como indubitável “diretor de orquestra”, acompanhado pela oligarquia tradicional e as diversas frações da burguesia como “segundos violinistas”, para continuar com a metáfora sinfônica, e o desafinado e heterogêneo coro integrado por certos segmentos das camadas médias, a pequena burguesia e alguns setores das classes e camadas populares da cidade e o campo.

A metodologia foi ensaiada e colocada em prática em numerosas ocasiões. Basicamente, consiste em promover, mediante uma alimentada campanha de desinformação e manipulação, a irritação de grupos ou categorias sociais de raiz popular especialmente sensíveis aos resultados de certas políticas pontuais que um governo desenvolve – caso dos caminhoneiros no Chile de Allende – ou, como ocorre na atualidade, no caso da República Bolivariana de Venezuela, aos efeitos de políticas globais que impactem negativamente sobre o conjunto da população, muito especialmente os mais pobres.

Em não poucos casos, as duas táticas se combinam. No Chile, o desabastecimento planejado de certos produtos combinou com a virulenta reação dos caminhoneiros e, infelizmente, com os mineiros na mina de cobre El Teniente, nacionalizada por Allende, que se declararam em greve indefinida por maiores salários (durou 74 dias, sendo o cobre “o salário do Chile”, como dizia o presidente chileno). Pouco depois, um violento e confuso confronto com os mineiros, em Santiago, deixa um saldo de um mineiro morto e mais de meia centena de feridos. Como resultou evidente pouco depois, a sinistra mão da CIA estava metida em todas estas operações que culminaram na queda de Allende e no banho de sangue que enlutou esse país.

Por isso, o infame assassinato do vice-ministro Illanes deve ser posto sob esta perspectiva. A conversão de cooperativistas em pequenos empresários mineiros que estão promovendo a privatização de facto dos recursos minerais da Bolívia é um dado inescapável. Embora as políticas de governo de Evo Morales tenham favorecido este setor cooperativo mineiro, a aprovação da Lei Geral de Cooperativas Mineiras, em agosto deste ano, acarretou oposição a ele. O que aparentemente foi o foco do conflito é a normativa que autoriza a sindicalização dos trabalhadores empregados pelos cooperativistas.

O modelo “Walmart” de proibição da sindicalização nesta empresa parece ter calado fundo nos cooperativistas. Em sua radical intransigência, estes também ampliaram a disputa com o governo e constituíram uma coalizão que agrupa cooperativas de outros setores fora da mineração. O resultado: das 10 demandas iniciais, passou-se a uma lista de exigências com 24 pontos, acompanhada por uma greve por tempo indeterminado. Entre os pontos, destaca-se a rejeição à Lei de Mineração e Metalurgia que impede que as empresas privadas invistam nas concessões dos cooperativistas. Conforme destaca Katu Arkonada, em uma análise recente, “os cooperativistas possuem ao menos 31 contratos assinados com empresas privadas, algumas delas transnacionais, sendo uma delas a Comsur, de Sánchez de Losada”. As queixas contra as rigorosas regulamentações ambientais impostas pelo governo Boliviano também fazem parte da reivindicação dos cooperativistas, assim como a exigência de que sejam beneficiados com preços preferenciais para seu consumo de energia.

Diante da magnitude destas demandas, o governo de Evo Morales manteve aberto todos os canais de diálogo e a negociação, dentro de um limite infranqueável: preservar o império da Constituição, que não podia ser colocado em questão pelo acionar de um conjunto de atores de suspeitosa intransigência.

Há numerosas razões para pensar que houve alguém que estimulou o conflito quando as negociações entre governo e cooperativistas estavam encaminhadas. Uma falsa ordem de apreensão de dirigentes cooperativistas provocou a passagem à clandestinidade de seus dirigentes e a intensificação dos bloqueios. Dias depois, em 24 de agosto, ocorre o assassinato de dois mineiros cooperativistas, durante os bloqueios, sem ser possível apurar, até o momento, quem são os eventuais autores dos disparos. O que segue é história conhecida, com outro mineiro morto e o linchamento de Illanes.

A longa experiência latino-americana em tais tipos de situações não exige muito esforço de imaginação para compreender o que aconteceu. Assim como é relatado por John Perkins, em seu conhecido livro (Confissões de um Assassino Econômico), e é ratificado pelos manuais de Eugene Sharp, incidentes como os que estamos analisando fazem parte dos SOP, “Standard Operating Procedures”, dos agentes do império.

Os meios de comunicação, é claro, cumpriram uma função importantíssima ao atiçar o conflito, assim como El Mercurio e o Canal 13 da Universidade Católica atuaram no caso do Chile. Na Bolívia, tornaram-se cúmplices de uma falsa informação que foi divulgada irresponsavelmente para aumentar o conflito, intensificar os bloqueios e enfurecer os cooperativistas. Após os trágicos acontecimentos de Panduro, a imprensa hegemônica acentuou seu trabalho destituinte afirmando que foi a intransigência do governo a causa da morte dos cooperativistas e do vice-ministro Illanes.

Não seria descabido pensar que os traumáticos acontecimentos de agosto produzirão uma redefinição no arco de alianças do governo e a oposição. Os benefícios conferidos aos cooperativistas já haviam provocado mal-estar em múltiplos movimentos sociais que não concordam que lhes sejam mantidos privilégios.

Dependendo do avanço das investigações, não é improvável que boa parte dos dirigentes cooperativos envolvida nestes lutuosos acontecimentos seja substituída. É evidente que o problema está muito mais na direção do cooperativismo mineiro que em sua base, submetida a pressões e chantagens por aquela e obrigada a atuar como massa de manobra em bloqueios e outras iniciativas violentas de franco caráter destituinte.

Do anterior decorre que o governo de Evo Morales enfrenta um novo desafio. Para se sair bem deverá atuar com serenidade e firmeza. Primeiro, para não cair em provocações, cuja frequência e gravidade certamente vão aumentar na medida em que a Bolívia se aproximar do crucial ano de 2019, onde estará em jogo a continuidade do processo de mudança iniciado sob a liderança do Presidente Evo Morales. Provocações e armadilhas facilitadas por  um ambiente geopolítico que não podia ser mais desfavorável: governos de direita radical na Argentina, Brasil, Paraguai, Chile e Peru; iniciativa norte-americana de reforçar “o controle do narcotráfico” na fronteira Norte da Argentina, com uma eventual base militar dos Estados Unidos na limítrofe província de Jujuy, destinada a monitorar o mais próximo possível o irresistível ímã, para Washington, do lítio boliviano; a militarização da fronteira chileno-boliviana, os exercícios conjuntos entre as forças armadas dos dois países e a belicosidade da chancelaria chilena auguram tempos difíceis para o governo dos movimentos sociais.

Serenidade, então, para responder com a frieza cerebral de um xadrezista, mas também dizíamos firmeza. Se é possível aprender algo da atual tragédia brasileira é que a política de apaziguamento e concessões dos inimigos do processo, longe de atenuar sua beligerância, só alimentam seu ressentimento e seu desejo de vingança. Convalidar com a passividade oficial o crime perpetrado pelos cooperativistas seria uma atitude suicida. Com a lei na mão, o governo deve punir exemplarmente seus responsáveis materiais e intelectuais.

Para concluir: a Bolívia teve imensos progressos com o governo de Evo Morales e uma adequada combinação de serenidade e firmeza lhe permitirá superar os desafios atuais e também romper o cerco regional constituído pelos governos de muito frágil legitimidade e cuja duração, especialmente no caso do Brasil e, em menor medida, na Argentina, está incerta. No passado, o governo dos movimentos sociais enfrentou com êxito numerosos desafios. Não há razão agora para pensar que a história poderia ser diferente.

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