Valery e Carl Schmitt: a exceção é a desordem

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23 Agosto 2016

"Da parte de quem quer, mesmo, combater a corrupção – doa a quem doer – distribuir renda e viver num país democrático mais coeso e feliz, temos que inventar o impossível. Mobilizar todas as energias da sociedade – da academia aos movimentos sociais, dos políticos honestos às frações de partidos e organizações da sociedade civil – para ajustarmos um programa democrático e social para recuperar a política como o espaço da dignidade e do conflito. Do consenso e da hegemonia legítima. A mídia oligopólica se apropriou da agenda política do país e fez um novo Governo. O capital financeiro global se apropriou do Estado e vai, gradativamente, eliminando as suas funções públicas. Se a ordem e a desordem são ambas problemáticas, temos que fundi-las num novo processo Constituinte, para que elas possam reinaugurar o seu convívio dentro da República", escreve Tarso Genro, ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul, em artigo publicado por Sul21, 22-08-2016.

Eis o artigo.

Por mais que se queira separar o Direito da Política, tanto para compreender as questões jurídicas mais importantes em profundidade, como para aproximar-se com intimidade dos seus conflitos, a história repõe – com intermitência e regularidade – a unidade incindível de ambas, em momentos críticos, tanto das ditaduras, como dos processos democráticos. O Relatório Kruschev, sobre o que passaram a ser os “crimes de Stálin” – que antes eram mera defesa política da “exceção” contra os inimigos internos -; o julgamento dos presumidos autores do Incêndio do Reichstag, no ascenso hitleriano; a aplicação (ou não) da Lei Anistia aos torturadores, no nosso país, são momentos exemplares em que Política e Direito se convertem um no outro – e vice versa – cuja fusão acaba deitando a sua influência por largos períodos históricos.

O livro brilhante do Professor Gilberto Bercovici (“Constituição e Estado de Exceção Permanente” – Azougue Editorial, 2004) foi a obra que me chamou atenção, há um ano atrás, para o que apontei na oportunidade como processo de “exceção não declarada”, que iniciara a sua instauração no Brasil. A partir dali entendi que ficava claro que os políticos liberais da direita compreenderam que chegara o momento em que “as verdadeiras questões da política (…) passavam a se expressar como “questões sobre a unidade e o conflito, não sobre a liberdade dos indivíduos”. Estes tinham escolhido, nas eleições de 2014, uma mandatária para mais 4 anos que precisava ser retirada do poder.

Tratava-se do seguinte: a Política, como expressão da liberdade dos indivíduos, para o campo do Governo e da esquerda, já estava resolvida no resultado das eleições presidenciais. Neste resultado, pois, é que deveríamos nos agarrar para defender a legitimidade e a legalidade do mandato da Presidente Dilma. De outra parte, para a direita liberal -aliada a grupos autoritários e fascistas- as questões fundamentais da política se transladavam, rapidamente, do campo da soberania popular, para o campo da “unidade e do conflito”. Isso significaria, especialmente, levar ao poder quem teria capacidade (ou não a teria), para promover o “ajuste”. Como se viu do resultado deste processo, a justa indignação com a corrupção que envolveu vastos setores das classes médias e dos mais pobres do país, tornou-se mero instrumento para levar ao poder quem poderia “decidir” sobre o ajuste. Não um campo composto para combater a corrupção.

Resultado: para este campo da direita liberal, a “capacidade de decidir” – que segundo Carl Schmitt é o que revela a essência do poder soberano – passou a ser vinculada à capacidade de realizar o ajuste, independentemente de que tivesse origem na soberania popular. E para o campo do Governo, a “capacidade de decidir” permaneceu ancorada na formalidade do processo eleitoral, pois este representava a liberdade, expressa pela forma da soberania popular. O que não levamos em conta, nesta esquina da história, é que a soberania popular – para os grupos sociais que detém a maior parte da renda nacional – é puro instrumento, não fonte de legitimidade, quando os seus privilégios e o seu modo de vida passam a ser instabilizados, como já estava insinuando a crise

Nos Governos do Presidente Lula, em função das condições especiais da economia mundial e da correta compreensão do Presidente, de que aquele era um momento possível para distribuir renda sem muitos conflitos, a soberania popular foi um interlúdio amoroso, que permitiu o país avançar mais unido. Esta, todavia, deixou de ser importante para os mais ricos, quando se esgotaram as condições que permitiram que os “banqueiros nunca ganhassem tanto dinheiro como agora” – como dizia Lula – não sem um certo orgulho. A partir da crise, para pelos menos estabilizar a renda já distribuída, seria necessário redistribuir a responsabilidade com as receitas da União, taxando, por exemplo, quem ganhasse mais de um milhão de dólares por ano.

Os governos da Presidenta Dilma, por uma série de limitações políticas e convicções confusas sobre o estatuto do político – num período em que o máximo de aspiração possível para esquerda é uma democracia social fundada numa cooperação com soberania – não fizeram o “ajuste dos ricos”. Também não propuseram um ajuste alternativo para continuar distribuindo a renda e não buscaram – quando o modelo já dava sinais de esgotamento – uma recomposição do sistema de alianças, que fora repassado a ela, de forma mecânica, pelos nossos governos anteriores.

Como nota o professor Bercovici – apresentando as fórmulas de Schmitt – “definir soberania como decisão sobre o estado de exceção significa dizer que o ordenamento está à disposição de quem decide”. Com verdades e inverdades, processos devidos ou inventados, conduções coercitivas, prisões legais e ilegais, vazamentos seletivos infames e delações “premiadas”, foi se aniquilando a legitimidade da soberania popular pelo voto, transferindo o poder soberano para a mera “capacidade decidir” e implementar o “ajuste”. O mesmo “ajuste” que a soberania popular se negara a aceitar nas eleições presidenciais!

Em 20 de agosto, no Blog do Noblat, está uma “Carta de Buenos Aires”, da jornalista Gabriela Antunes, que noticia que o ajuste argentino aumentou os aluguéis em 40%, a inflação cresceu de forma acelerada, 1,5 milhões de argentinos foram para pobreza, a conta de gás de uma família de renda média-baixa foi do equivalente a 30 reais para 800 reais e todas as famílias perderam, drasticamente, o seu poder de compra. Macri tem sido corrido a pedradas, de lugares que ele agora frequenta com carros blindados. E ali o ajuste não se deu pela exceção, mas por uma vitória apertada nas urnas – respeitada a soberania popular-, em favor do candidato que prometera colocar a economia do país no seu estatuto “real”. Nesta economia do estatuto real, os investimentos estrangeiros não aportam, o PIB cai, a violência aumenta e os lucros financeiros decolam.

Paul Valéry – sempre que posso lembro seus aforismos – dizia que os grandes perigos que acossam os homens são a “ordem e a desordem”. Na desordem, perdemos a coerência e caímos na confusão. Na ordem, nos petrificamos: ela se transforma em doutrina e perde a sua capacidade de se adaptar ao mundo vivente. Não é esta petrificação da ordem, esta incapacidade de – por dentro das instituições da democracia - resolver os nossos problemas, o lugar em que viceja a “exceção”?

O conflito que nos encontrávamos poderia ser resolvido nas eleições de 2018, mas o oligopólio da mídia atiçou contra Lula a ira do fascismo, que estava escondida, com vergonha da luz da democracia. Esta foi a vanguarda do golpismo, que resolveu que a saída deveria ser pela exceção, mesmo que tivessem que entregar o Governo para uma Confederação de Investigados e Denunciados. E assim o fizeram: a ideia de democracia está rompida, substituída pela desordem e pela confusão. E a ideia de coesão nacional –cujos conflitos se resolvem pelo voto em eleições periódicas- está sendo assassinada por um “impeachment” sem causa.

Da parte de quem quer, mesmo, combater a corrupção – doa a quem doer – distribuir renda e viver num país democrático mais coeso e feliz, temos que inventar o impossível. Mobilizar todas as energias da sociedade – da academia aos movimentos sociais, dos políticos honestos às frações de partidos e organizações da sociedade civil – para ajustarmos um programa democrático e social para recuperar a política como o espaço da dignidade e do conflito. Do consenso e da hegemonia legítima. A mídia oligopólica se apropriou da agenda política do país e fez um novo Governo. O capital financeiro global se apropriou do Estado e vai, gradativamente, eliminando as suas funções públicas. Se a ordem e a desordem são ambas problemáticas, temos que fundi-las num novo processo Constituinte, para que elas possam reinaugurar o seu convívio dentro da República.

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