A devastadora submissão de Gaia ao ''capitalceno'', a face mais obscura do antropoceno

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30 Março 2016

A reportagem é de Ricardo Machado, jornalista do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Moema Miranda é uma mulher forte. Sua força vem do franciscanismo que encarna não somente em seu discurso, mas também no jeito simples de se apresentar e defender um outro paradigma civilizacional, o da Ecologia Integral. Sua força vem do conhecimento daquilo que poderíamos chamar de "agonia da terra", vem dos pequenos detalhes como o Tao que carrega no pescoço, vem das roupas simples e cor de tecido cru que vestia durante sua palestra A 21ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – COP 21: perspectivas para a agenda ambiental do Brasil. Sua força vem da fé em um outro mundo possível.

"A Terra é um ser vivente. Esta ideia muda radicalmente nossa relação com o planeta. Vivemos a era do antropoceno, em que a presença do ser humano abarca todo o planeta. A espécie homo-sapiens é a única que está em todos os espaços, do Polo Norte ao Polo Sul", aponta Moema. Disso decorre não somente uma ocupação dos espaços em todos os paralelos, senão a imposição da derivação mais devastadora do antropoceno, o "capitalceno", neologismo utilizado pela conferencista. "Pela primeira vez na história um modelo econômico – o capitalismo – afeta toda a estrutura do planeta. Das questões ambientais ao acesso a bens como a água. O capitalismo é hegemônico e determinante da forma como estes seres humanos estão no planeta", critica Moema. O evento, realizado na noite da terça-feira, 29-03-2016, no Auditório Central da Unisinos, integra a programação do Ciclo de atividades. O cuidado de nossa Casa Comum.

 
Moema Miranda durante conferência no Auditório Central da Unisinos (Foto: Cristina Guerini/IHU)

 

Produção de desejos

Para a antropóloga, vivemos atualmente em uma aldeia global sob uma forma de produção e consumo hegemônicos, mas não somente de bens materiais senão de desejos: o capitalismo. "Há ideia, inclusive apoiada na Gênesis 1, 28, de que o planeta foi criado para os seres humanos, mas certamente não para todos. Primeiro para os homens, depois para as mulheres. Mas não pensem que foi assim fácil. Foi primeiro para os homens europeus, depois para as mulheres e só depois para os outros homens, os negros e os indígenas, por exemplo", pondera e ironiza Moema.

Irracionalidade científica

A partir de Francis Bacon, um dos pais da chamada Ciência Moderna, no século XVI, desenvolveu-se a ideia de que que a ciência deveria servir ao homem. As descobertas científicas definiram a partir de então um tipo de relação com o planeta terra que é o de exploração. "A ideia de desenvolvimento gestada nesse período levou à nossa profunda crise ambiental", destaca Moema. "Alguém pode dizer que esse é o custo do progresso, mas o problema é que esse desenvolvimento gera destruição ambiental e passa de todos os limites possíveis em termos de recuperação do planeta", complementa. O fato concreto nisso tudo é que os países que consomem mais que a capacidade de produção tendem a explorar os demais países mais empobrecidos. "Alguém acredita que isso se dará de modo pacífico?", provoca Moema.

Concentração de renda

Segundo dados apresentados por Moema Miranda, no ano passado 62 pessoas tinham fortuna equivalente à soma total da "riqueza" de 3,5 bilhões pessoas. Esse fenômeno está relacionado ao que David Harvey chama de "acumulação por despossessão". "Para que estas 62 pessoas possam ser ricas, há milhares de miseráveis. A distribuição que o chamado progresso e desenvolvimento gera é extremamente concentrada. Temos um contexto de opulência e pobreza crescente", lamenta a conferencista.

"Essa pobreza não é natural, mas resultado de um dado sistema de organização social. A humanidade cria riqueza e bens para que toda a população coma bem, se vista bem, viva bem. A questão, aqui, é que a concentração de renda e a destruição do planeta são coisas intimamente ligadas, como sustenta o Papa Francisco", pontua Moema.

Uma só crise

Ao analisar o cenário, Moema reforça o discurso de Bergoglio de que há uma grande crise em curso. "Não há duas crises separadas, uma social e outra ambiental. Há uma única crise socioambiental", frisa. "Não é possível salvar os filhos e as filhas da terra sem salvar a Terra. Nós, absolutamente, dependemos do planeta que vivemos. A questão das mudanças climáticas é a ponta do iceberg", reforça.

Planeta, um ser vivo

Foto: Cristina Guerini/IHU

Em 1972, James Lovelock criou a hipótese de que o Planeta é um ser vivo e vivente. Cinco décadas antes Einstein já tinha apresentado a teoria de que tudo é energia. "Lovelock escolheu o nome de uma fêmea para a Terra, porque é mulher e dá a vida. A fêmea leva mais tempo para se ofender, mas quando ela se revolta é muito violenta. O problema é que a intrusão de Gaia não atingirá somente os países mais poluidores, atingirá todos e os moradores das ilhas serão os primeiros a serem afetados", problematiza Moema. "Para cada iate daquelas 62 pessoas, lembrem-se de que há milhares de africanos mortos no mar a caminho de Lampedusa", pontua.

COP 21

Diferente dos outros anos, a 21ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – COP 21 foi marcada por uma adesão massiva dos países ao acordo sobre as mudanças climáticas. "Cada nação chegou à mesa e disse quanto ia reduzir voluntariamente a emissão de gases de efeito estufa, mas nenhum país disse como fará isso para manter o aquecimento nos próximos 84 anos em até 2°C", critica. "Esse é um acordo entre governos. Se nós, como sociedade civil, não assumirmos o compromisso de fiscalizar as ações, ficaremos sempre nesse padrão de desenvolvimento sustentável que beneficia somente uma parte da sociedade", alerta.

Agnotologia

"Precisamos prestar atenção ao que Robert Proctor disse há 50 anos, ao analisar os discursos sobre a indústria do tabaco: 'A ignorância não é apenas o que não é conhecido, mas é também uma manobra política, uma criação deliberada por agentes poderosos que não querem que se saiba os efeitos de suas políticas'", parafraseia Moema. A agnotologia, explica a conferencista, é um tipo de ciência que estuda os processos de construção de certos níveis de ignorância, de obscurantizar e relativizar a verdade.

É possível recomeçar? Tem como mudar essa história?

Para a antropóloga há, sim, saída para a situação crítica que vivemos em termos ambientais. "A primeira percepção que devemos mudar é passar da visão ego para eco. Todo o cosmos, com os outros planetas, todas as estrelas e tudo o que há é parte da criação. Precisamos perceber que nosso corpo é feito de terra e água", pondera.

Ecologia Integral

Ao finalizar sua conferência, Moema sublinhou a importância da Laudato Si' e da proposta apresentada pelo Papa Francisco, a Ecologia Integral. "É preciso uma mudança profunda na forma como nos relacionamos com o planeta. Devemos ter consciência cidadã para identificar o que precisamos mudar para salvar o planeta. Precisamos criar um amplo movimento ecológico popular, com massiva participação urbana", reflete Moema. Com a força de quem acredita na transformação da vida, Moema finalizou invocando proteção. "São Francisco e Santa Clara, rogai por nós!", concluiu.

Quem é Moema Miranda

Moema Miranda (Foto: Ricardo Machado/IHU)

Moema Miranda é antropóloga, com mestrado e pós-graduação em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Integra a direção colegiada do Ibase. Participou do Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20. É membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. Coordena o projeto "Diálogo dos Povos – Uma articulação Sul-Sul", com a participação de entidades e redes da América Latina e da África.

Em julho de 2015, participou da conferência sobre a Encíclica Laudato Si', intitulada "As pessoas e o Planeta em primeiro lugar: imperativo a mudar de rumo". O encontro realizado no Vaticano foi promovido pelo Pontifício Conselho da Justiça e da Paz junto com a Aliança Internacional das Organizações Católicas para o Desenvolvimento - CIDSE.

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