"O grande problema é a indiferença religiosa e moral’, afirma cardeal Ravasi

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28 Outubro 2011

Escreveu – a mão – 150 livros, é um exímio comunicador – é colunista de dois jornais italianos, tuiteia diariamente frases da Bíblia – e é o homem que Bento XVI escolheu há quatro anos para ocupar o cargo de "ministro da Cultura" do Vaticano. Considerado "papável" e caracterizado como "o cardeal dos ateus" porque costuma participar de debates públicos de sucesso ao lado de pensadores não crentes de todo o mundo, o cardeal Gianfranco Ravasi, de 69 anos, é um dos organizadores do encontro inter-religioso de Assis que Bento XVI presidirá nesta quinta-feira, no 25º aniversário daquele liderado por João Paulo II, em 1986.

A entrevista é de Elisabetta Piqué e está publicada no jornal argentino La Nación, 25-10-2011. A tradução é do Cepat.

Além de todas as confissões religiosas, neste encontro participarão também, pela primeira vez, quatro ateus. "Eu os escolhi... Mas é o Papa que quis os ateus em Assis, foi uma ideia dele", revelou Ravasi em uma entrevista ao La Nación, ele que é um homem muito afável e de imensa cultura. "Bento XVI demonstra grande consideração por um antigo ensinamento da teologia cristã: o homem é constituído de natureza e de uma parte sobrenatural. O sobrenatural não tira ou destrói a natureza, mas a aperfeiçoa. Ou seja, coloca-se como um elemento a mais, mas não elimina a natureza humana. No convite do Papa há, portanto, uma tentativa de reiterar a importância da relação entre fé e razão", indicou.

Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, para Ravasi é uma frase escrita pelo filósofo Soren Kirkegaard a que melhor pinta o momento atual: "O navio está nas mãos de um cozinheiro a bordo e o que o microfone do comandante transmite não é mais a rota, mas o que vamos comer amanhã". Para ele, o mais preocupante do secularismo que caracteriza a sociedade é que não é apenas um fenômeno estritamente religioso, mas cultural.

"Com a secularização tendencialmente se é levado a não considerar as grandes questões, mas antes a permanecer em um nível superficial. Hoje, o interesse fundamental é pela moda, pelos modos, pelas derivas consumistas ou pelo menos pelas perguntas que são as menos inquietantes", lamentou Ravasi, que destacou que o securalismo, assim como o ateísmo, tem dois rostos fundamentais.

"O primeiro é para mim o mais perigoso. O segundo é agressivo: é o que diz que é preciso eliminar qualquer símbolo religioso, como, por exemplo, o crucifixo... Nesse sentido, creio que está mal ver o problema apenas pelo âmbito religioso, porque é acima de tudo cultural. T.S. Eliot tinha razão quando dizia que se eliminamos os símbolos religiosos, toda a herança religiosa, não podemos entender nada nem de Voltaire nem de Nietzsche. Por isso, a Europa é tão frágil diante do Islã: afinal, quando se tira o crucifixo, quando se tiram as festividades, afinal este tirar é introduzir o cinzento. Para mim, esse é o secularismo mais perigoso, porque é inconsistente e é pela negação, por subtração.

Por ser politically correct...

Sim, mas no final das contas este ser correto se baseia somente no negativo: para não ofender, nada. O outro ateísmo é a secularização agressiva, a que combate explicitamente. Eu, pessoalmente, prefiro confrontar-me com alguém que nega, afirma, declara, com motivos: este é o que faz falta hoje. Ou seja, há um ateísmo que não é o ateísmo de Marx, não é o ateísmo de Nietzsche, que era uma visão de conjunto da realidade, alternativa. Há antes um ateísmo de subtração ou indiferença em nível popular, não um ateísmo coerente, lógico. Diria que a Igreja se confronta com isto.

Mudando de assunto, como "ministro da Cultura" do Vaticano, como avalia a cultura atual?

Em primeiro lugar, a cultura atual não corresponde mais ao conceito da palavra cultura que nasceu no século XVIII na Alemanha como "kultur", que era a cultura alta, isto é, as artes, as ciências, a filosofia, etc. Agora, o conceito de cultura é antropológico, é transversal. É o artesão, o folclore, a cultura industrial, a economia, é tudo, é a atividade humana autoconsciente... Então, voltaria ao ponto de partida: para os homens de Igreja e para os homens de cultura, o grande problema é a indiferença. Indiferença religiosa, e indiferença moral.

Como esta indiferença se reflete no cultural?

Do ponto de vista cultural é esta atitude do efêmero, que também se reflete na arte. Dou dois exemplos: terá ouvido falar do videoartista Bill Viola. Na primeira vez que falei com ele me disse que a arte contemporânea agora procura evitar duas coisas, que vê com horror, como negação: primeiro, a mensagem; segundo: a beleza. Isto é paradoxal! A beleza e a mensagem, duas coisas que absolutamente não devem aparecer! E outro exemplo: uma das expressões artísticas mais significativas é a performance. A performance em si é linda. Miguelangelo sabia que sua obra era para os séculos vindouros, mas a características agora é que deve morrer... No máximo, ficará dela uma fotografia ou uma filmagem, e nada mais.

Mudando novamente de assunto: muitos católicos lamentam que a Igreja não ouve seus pedidos de modernização e abertura...

Sim. Eu sempre digo que de um lado estão os princípios que devem ser afirmados. Os princípios para afirmar são absolutamente indiscutíveis, ou seja, são as grandes afirmações de fundo, que constituem um sistema, sobretudo para a religião. Portanto, é indispensável afirmar com força os princípios, sobretudo em uma sociedade como a atual, que é líquida, é fluida. Aqui não há consistências e no final das contas até aqueles que são totalmente indiferentes, antes as grandes perguntas humanas reclamam os princípios. Quando uma mãe de repente tem um filho que tem um câncer fulminante e não há nada que fazer. Nesses momentos fundamentais é deles que se necessita. Talvez se chegue à blasfêmia, mas, nesse caso, sempre terá afirmado um princípio ou afirmado uma pergunta última. E isto vale para a Igreja também de maneira positiva.

Quando se vive uma forte experiência estética, um enamoramento autêntico, nesse momento se escolhe um caminho de princípios. Lamentavelmente, a ruína da sociedade contemporânea é que boicota isto. A sociedade contemporânea reduz a experiência do enamoramento a uma mera questão de pele, a pura sexualidade. Nem sequer o eros é dado. O eros não é apenas beleza, mas também o sentimento, a ternura, a paixão. Agora os jovens consumam o ato sexual, já o verbo é significativo. Ou seja, os princípios, que são os grandes valores, aparecem nos momentos fundamentais da existência. Mas, no outro aspecto, eu também entendo que o concreto da experiência pastoral exige ter em conta as situações, porque o cristianismo também conhece o tema do perdão, da misericórdia, da compaixão, da compreensão, razão pela qual há também este aspecto. Mas não se pode reclamar das grandes instituições religiosas – e falo da maneira mais genérica possível, não apenas do cristianismo – de não afirmar os princípios. Porque, caso contrário depois essa generosidade, essa compreensão na cotidianidade, não mais faz sentido se não estiver motivada profundamente pelos princípios.

Muitas igrejas protestantes americanas, porque existe esta flexão de fiéis, adotaram este sistema de baixar o nível: não mais fazer declarações de princípios, apenas o indispensável, o mínimo de caridade, o mínimo de oração. O resultado não é que as igrejas estão cheias, mas que se esvaziaram completamente. Em todo o caso, buscam em outros lugares a experiência. Porque, como também acontece nas escolas, quando se reduz e parte do denominador mínimo comum, se fará o mínimo.

Mas como se explica neste marco que, mesmo assim, a Igreja perde fiéis, e, por exemplo, na América Latina, as seitas têm grande sucesso...

Este é um fenômeno típico quando se vai para o mínimo. Sabe qual é na Suécia a porcentagem da participação no culto dominical? É de 1,5%, ou seja, não vai mais ninguém. Na Dinamarca, 3%, e assim em toda essa zona da Europa, onde concederam tudo nas questões sexuais. Na América Latina, ao contrário, há um fenômeno que indica que na realidade não é certo que se está totalmente secularizado. Agora há uma inversão da tendência. Mas quando se sente a necessidade religiosa, como viveu longamente em uma sociedade laica secularizada se fez o paladar da televisão, não pode ir às grandes igrejas porque servem pratos muito fortes e exigentes. Por isso o sucesso destes movimentos que te enredam, que te dão experiências místicas, que te dizem que se te sentes bem, é um sinal de que Deus te abençoa... Ou seja, toda uma série de elementos pelos quais se entra em um ventre protegido. Claro, isto certamente coloca também a Igreja em problemas. Mas também digo que nestes casos seria da ideia de escolher antes a via das grandes perguntas. Não é preciso colocar-se nesse nível. A Igreja não deve renunciar à sua função, não apenas não deve renunciar aos seus princípios, mas também às suas dimensões sociais.

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