''Sorores carissimae et admirandae'': a presença feminina no Concílio Vaticano II

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18 Setembro 2012

Pela primeira vez na história, 23 mulheres fizeram parte de algumas sessões de um Concílio e, embora respeitando a ordem de se calar nas assembleias gerais, souberam encontrar as ocasiões certas para pronunciar palavras eficazes.

A opinião é do leigo católico italiano Andrea Lebra, cofundador da associação Liberazione e Speranza, que ajuda mulheres a sair da violência e da prostituição. O artigo foi publicado na revista Settimana, n.32, 09-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Há poucas semanas, chegou às livrarias, pela editora Carocci (julho de 2012), um agradável e instrutivo estudo sobre a presença das mulheres no Concílio Ecumênico Vaticano II. Sua autora é Adriana Valerio, teóloga e escritora, uma das fundadoras da Coordenação de Teólogas Italianas, professor de história do cristianismo e da Igreja na Universidade Federico II de Nápoles, estudiosa de temáticas referentes à presença das mulheres no cristianismo.

Como escreve Marinella Perroni, presidente da Coordenação de Teólogas Italianas, na "apresentação", o livro, intitulado Madri del Concilio: Ventitre donne al Vaticano II, foi escrito para "finalmente tirar fora dos arquivos da memória os rostos e as vidas de 23 mulheres que, pela primeira vez na história, fizeram parte de algumas sessões de um Concílio e, embora respeitando a ordem de se calar nas assembleias gerais, souberam encontrar as ocasiões certas para pronunciar palavras eficazes".

Quem havia desejado o aumento do número de "auditores  leigos" no Concílio e que fez com que esse incremento incluísse mulheres foi, no dia 22 de outubro de 1963, o cardeal Suenens, ao longo de um vigoroso discurso seu sobre os carismas na Igreja. Paulo VI, acolhendo o convite, havia decidido admitir às sessões conciliares algumas representantes das ordens religiosas femininas e algumas representantes qualificadas do laicato católico: no total, de setembro de 1964 a julho de 1965, foram chamadas 23 auditoras (10 religiosas e 13 leigas). Das 13 leigas, nove eram célibes, três viúvas e uma só casada: todas (exceto uma, Gladys Parentelli), rigorosamente vestidas de preto com um véu sobre a cabeça.

"Amadas filhas"

É sintomático que, no dia 14 de setembro de 1964, para a inauguração da III Sessão do Concílio, quando papa saudou as auditoras ("as nossas amadas filhas em Cristo, as quais, pela primeira vez, foi dada a faculdade de participar de alguns encontros do Concílio"), na realidade não havia nem a sombra de auditoras na sala. O motivo? Elas ainda não haviam designadas: de fato, as primeiras nomeações oficiais ocorreram depois do dia 21 de setembro. Por que – se pergunta a autora – essa clamorosa incoerência dos tempos?

"É difícil dizê-lo, senão hipotetizando a resistência de algumas personalidades da Cúria em fazer com que as mulheres participassem" de uma assembleia constituída unicamente por homens. O fato é que a primeira mulher a entrar na sala no dia 25 de setembro de 1964 foi uma leiga francesa, Marie-Louise Monnet, fundadora do Miasmi (Mouvement International d’Apostolat des Milieux Sociaux Indépendants), irmã de Jean, um dos pais fundadores da União Europeia.

Embora Paulo VI, no dia 8 de setembro de 1964, em Castel Gandolfo, tivesse falado de representações femininas no Concílio certamente "significativas" mas "quase simbólicas", não tendo direito nem de palavra nem de voto, bem logo essas 23 extraordinárias "mães do Concílio", saudadas enfaticamente por alguns "padres conciliares" com as palavras "carissimae sorores", "sorores admirandae" ou "pulcherrimae auditrices", encontraram a forma de participar de modo ativo e propositivo nos grupos de trabalho, apresentando memórias escritas e contribuindo com a sua cultura e sensibilidade para a confecção dos documentos, particularmente daqueles que se referiam a temas como a vida religiosa, a família e a presença dos leigos (homens e mulheres) na Igreja e na sociedade, ou, mais simples e prosaicamente, convidando para o almoço bispos influentes para comunicar seus próprios desiderata. Nisso encorajadas pela Secretaria de Estado que, em setembro de 1964, esclareceu que a sua presença não devia ser entendida em sentido passivo, tendo sido convidadas a dar uma contribuição de estudo e de experiência às comissões encarregadas de receber e de emendar os esquemas destinados às sessões conciliares.

Uma contribuição significativa

A mais vivaz das auditoras leigas foi sem dúvida a espanhola Pilar Bellosillo, presidente da União Mundial das Organizações Femininas Católicas (UMOFC). Por nada menos do que duas vezes, em nome da proibição paulina de 1Cor 14, 34 "as mulheres calem na assembleia", citado pelo secretário do Concílio, Pericle Felice (parece que por dificuldade de dirigir a palavra às auditoras, embora só para saudá-las), foi-lhe impedido de falar na assembleia geral, apesar de ter sido expressamente nomeada porta-voz do seu "grupo de estudo".

A segunda rejeição lhe foi oposta perto do fim do Concílio: na ocasião, ela havia sido simplesmente encarregada de expressar aos padres conciliares a gratidão sua e das colegas pelo privilégio que lhes foi concedido de participar do Concílio. Mais uma vez a recusa foi motivada com o anacronístico e ridículo "mulieres in ecclesiis taceant".

Ao grande teólogo dominicano e perito conciliar Yves Congar, que, no âmbito do grupo sobre o esquema do apostolado dos leigos, queria inserir no documento uma elegante expressão com a qual as mulheres eram comparadas à delicadeza das flores e aos raios do sol, a (fisicamente) minuta mas enérgica auditora australiana Rosemary Goldie disse, como um respeitoso puxãozinho de orelhas: "Padre, deixe as flores de fora. O que as mulheres querem da Igreja é ser reconhecidas como pessoas plenamente humanas".

A mexicana Luz Maria Longoria, presente no Concílio com o marido José Alvarez Icaza, pôs em discussão o que os manuais de teologia, em uso antes do Concílio, definiam como fins "primários" e fins "secundários" do matrimônio, em que primária era a procriação dos filhos e secundário era o remédio à concupiscência do ato sexual. A copresidente do MFC (Movimento Familiar Cristão), muito ativa dentro do grupo que devia examinar o "esquema XIII", pediu para que se libertasse o ato sexual do sentimento de culpa e que se restituísse a ele a sua motivação de amor inerente. A um padre conciliar, ela disse: "Perturba muito a nós, mães de família, que os filhos sejam fruto da concupiscência. Eu, pessoalmente, tive muitos filhos sem nenhuma concupiscência: eles são o fruto do amor".

Perto do encerramento do Concílio, no dia 23 de novembro de 1965, auditores e auditoras leigos publicaram uma declaração conjunta, para prestar contas do trabalho feito. Conscientes de terem sido testemunhas de uma etapa histórica de abertura da Igreja ao seu componente leigo, sublinharam a importância vital de alguns documentos aos quais haviam dado uma significativa contribuição com discussões e trocas de ideias. Em particular, fizeram referência ao capítulo IV da “Lumen gentium”, dedicado aos "leigos", às partes da Gaudium et spes referentes à participação dos crentes na construção da cidade humana e ao decreto sobre o apostolado dos leigos, “Apostolicam actuositatem”.

Na declaração conjunta, auditores e auditoras também chamaram a atenção ao fato de que, graças a eles, o Concílio havia tratado de questões como a construção da paz, o drama da pobreza no mundo, a existência de desigualdades e injustiças que exigem uma distribuição mais justa das riquezas, a defesa da liberdade de consciência, os valores do matrimônio e da família, a unidade de todos os cristãos, de todos os crentes e de toda a humanidade.

No dia 3 de dezembro de 1965, quiseram redigir um comunicado de imprensa no qual reiteraram o seu papel ativo desempenhado, apreciado pelos padres conciliares que muitas vezes haviam se dirigido a eles para buscar conselhos e às vezes fizeram eco das suas opiniões na sala conciliar.

Nomes e sobrenomes

Consciente do grande empenho profuso no cumprimento da tarefa que lhes havia sido conferida, no dia 7 de dezembro de 1965, Paulo VI, recebendo auditores e auditoras, manifestou sua própria satisfação "pela colaboração preciosa" assegurada por uns e por outras, de modo "discreto e eficaz", "aos trabalhos dos padres e das comissões".

Nomes e sobrenomes das 23 "mães do Concílio", que já retornaram, quase todas, à casa do Pai, devem ser devidamente lembrados.

Auditoras religiosas: Mary Luke Tobin (EUA); Marie de la Croix; Khouzam (Egito); Marie Henriette Ghanem (Líbano); Sabine del Valon (França); Juliana Thomas (Alemanha); Suzanne Guillemin (França); Cristina Estrada (Espanha); Costantina Baldinucci (Itália); Claudia Feddish (EUA); Jerome Maria Chimy (Canadá).

Auditoras leigas: Pilar Bellosillo (Espanha); Rosemary Goldie (Austrália); Marie-Louise Monnet (França); Anne Marie Roeloffzen (Holanda); Amalia Dematteis (Itália); Ida Marenchi-Marengo (Itália); Alda Miceli (Itália); Catherine McCarthy (EUA); Luz Maria Longoria (México); Margarita Moyano Llerena (Argentina); Gladys Parentelli (Uruguai); Gertrud Ehrle (Alemanha); Hedwig von Skoda (Tchecoslováquia).

Lendo as suas biografias, reconstruídas por Adriana Valerio com material inédito, um dado emerge com suficiente clareza: apesar do decisivo reconhecimento, em nível teórico, realizado pelo Concílio à dignidade da mulher e do papel insubstituível que ela pode e deve desempenhar, por força do batismo, na comunidade eclesial, assim como na sociedade civil, resta muito a fazer para redimensionar, em nível prático, o monopólio clerical e androcêntrico sobre a história e sobre a vida da Igreja em nome da verdadeira igualdade que vige entre todos os membros do povo de Deus.

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